terça-feira, 22 de julho de 2008

GUiné 63/74 - P3083: Os Nossos Regressos (12): Vagabundo e os outros fantasmas dos Lassas que lá ficaram na Região de Tombali (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS do BART 1913 (Catió 1967/69) > Álbum fotográfico de Vitor Condeço > Catió - Vila >Foto 36 > "Militares [?] na esplanada do Bar Catió, em fundo, a casa do Sr. José Saad e as lojas deste".

Foto e legenda: © Vítor Condeço (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Mário Fitas, com data de 5 de Julho: (Recorde-se que o Mário Fitas - de seu nome completo, Mário Vicente Fitas Ralhete, - foi Fur Mil da CCaç 763, connhecida pelo nome de guerar Os Lassas, Cufar, 1965/66; natural de Elvas, é autor de dois livros sobre a guerra colonial da Guiné, misto de memórias e de ficção; criador de uma notável personagem, uma mulher guineense, balanta, exemplo de grande coragem e dignidade, a quem ele deu o nome de Pami Na Dondo) (1).

Assunto - Os nossos regressos!


Caro Luís:

Tenho dúvidas se esta minha ideia se coaduna com o tema. Mas julguei ser o momento próprio, para prestar homenagem a três Homens (Irmãos). Eu e eles sempre estivemos juntos. Dois já partiram mas deixaram muito: Luís Manuel Tavares de Melo –Açores, Micaelense de Raça; António Pedro dos Santos Garcia Lema - Matosinhense (de quem a minitertúlia lá de riba se pode orgulhar) não só como Homem, mas pelo que a Pátria lhe pôs no peito.

O outro, Francisco José Gameiro Pedrosa, um homem da Vieira de Leiria, amigo comum, julgo eu, meu e do Joaquim Alves Mexia. Vamo-nos telefonando e encontrando conforme as oportunidades.

Por eles, vai muito da vontade com que humildemente participo no Blogue.

Caro Luís, Briote e Vinhal para vós e toda a Tabanca, aquele abraço de sempre do tamanho do Cumbijã!

Mário Fitas





Capa do livro de Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra (2000).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Transcrição do livro Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente > Capítulo XV- Adeus à Guerra

Fixação do texto: L.G.


A 10 de Novembro de 1966, completamente rota, a CCAÇ 763 começa a ser rendida para regressar a casa. Os primeiros dois grupos de combate partem para Catió, no dia em que é inaugurada oficialmente, pelo Rev Capelão do Batalhão, a Capela construída exclusivamente por elementos da CCaç. Assiste à cerimónia a maioria da Companhia. O restante pessoal seguirá dois dias depois.

Não sabemos quando embarcaremos, mas já estamos desarmados. Resta saber se ainda vamos para Bissau, ou como será?...

Finalmente sabemos que as lanchas nos vêm buscar no dia 18 e que faremos a viagem directamente para o barco, que mais tarde viemos saber, ser o “Niassa”.

Bem nos fornicaram! Tiraram-nos tudo e, para não recordarmos, nem um bibelô de madeira ou outra bugiganga qualquer de missanga podemos adquirir. Temos de nos cingir ao mercado de Catió onde os preços sobem em flecha imediatamente. Compram-se alguns tapetes pelo dobro e triplo do preço normal, ficando os militares desorientados sem saberem o que levar para pais, esposas, familiares e amigos.

Vão eles! Que melhor recordação se pode levar? Foi a melhor prenda que Francisca Fitas e António Vicente receberam: o regresso de seu filho.

O regresso de uma guerra é fim de drama que geralmente ocasiona problemas. Os soldados, festejando o regresso à sua terra natal, e desfazendo-se dos “pesos” que não lhe servirão para nada, encharcam-se e esgotam os stocks de cerveja e whisky.

São bebedeiras colossais! Começamos a tentar controlar, não vá haver problemas. Os soldados não largam a casa da Libanesa, e pressente-se que vai haver bronca. Felizmente as coisas não correram muito mal, uma dezena de blenorragias e embarcamos em Catió directamente para o “Niassa”.

Nas lanchas que transportam o pessoal, há um misto de alegria e tristeza, reflexo do estado de espírito que antecede os grandes momentos. Incrédulos, os soldados olham-se num sonho de abandono ou retorno à guerra?!

Vagabundo vai olhando para as margens com o tarrafe e a floresta, entrando rio dentro em maré cheia. A Natureza pode agora ser admirada na sua plenitude, e verificar-se como é linda esta terra.

África! Mistério! Tu que prendes o homem e o fazes ligar-se por um feiticismo indefinível, fazendo-o sentir uma atracção especial por esta terra!... O Sol esconde-se e podemos continuar apreciando-te sob o teu feiticeiro luar como se dia foss, todas as tuas estranhas e selvagens belezas.

Embalado pelo ronronar do barco, o furriel Vagabundo puxou por um cigarro, e deixou-se escorregar suavemente, e o seu cérebro começou deambulando no sonho ou realidade!?

Vagueando a sua mente navegou a seu belo sabor.
........

Vagabundo está encarcerado nas paredes da sua prisão, com falsas janelas e portas, símbolos de ilusões e indefinidas perspectivas. Está encarcerado nos seus limites, sendo um homem completamente livre. A sua alma está tão ligada à de Tânia que não necessita dela só para se abrir, mas mais… muito mais para existir. Mas vê-se caminhar só, numa turbulência de sobe e desce. O vazio escurece-lhe a alma e desce mais do que sobe.

No amolecimento deslizar da lancha, encostado ao saco de lona verde, sente-se livre da Guerra, mas… olhando para as suas mãos, estas apresentam-se sujas de sangue, vazias, cheias de nada. Nestes últimos anos tudo tentou, mas nada encontrou. Maria de Deus? Não! Apenas a dor e a Guerra! Quem o ajudará a encontrar a tão necessária estabilidade de que tanto carece? Puxa novamente outro cigarro instintivamente, sem o pensamento se lhe ir. Se ao menos uma companheira, amante e amiga, lhe estendesse a mão e apenas pronunciasse:
- Vem! O tempo é agora todo nosso, repousa no meu ombro, e varre da mente toda a lama da Guerra!

Não, não será assim! Apenas sua paciente mãe Francisca o ajudará e sofrerá a sua recuperação de homem, esquecendo a máquina de guerra em que se transformou.

Se a morte existisse neste momento, a união seria perfeita. Há duas coisas que merecem ser desejadas: o impossível e a realidade, mas sente-se por desconhecimento, desejo do impossível.

A fama da Guerra na Guiné alastrou cedo entre os militares e não só! Ao próprio Povo incógnito também chegou essa informação, como ao tio Chico da Camioneta. Só quem não queira, se faz ignorante de que a simples mobilização para a Guiné era condenação pura próximo de vinte e dois, ou vinte e três meses de apodrecimento, enraizados na lama das bolanhas, pântanos, e rios de maré, piores que quatro anos de meio barril às costas, subindo a ladeira da Fonte do Marechal ao Forte da Graça em Elvas!...

Resta, após a partida, o desejo que o regresso não seja entre tábuas, de muletas, carrinho de rodas ou completamente cacimbado.

Só quando se chega à Guiné, se conhecem os nomes assombrados das matas do Cantanhez no sul e do Oio-Morés no norte. Recordando, o furriel faz mais uma vez a comparação das matas com a solidão.

Solidão!... Degradação de existência não compartilhada!... Dementação de espírito que se destrama no escorregadio carreiro da mata, inspirando o seu nauseabundo odor a morte. Neste estádio, apenas as figuras sombras dos companheiros da frente, e a pressentida presença dos que nos precedem. Momentos cruéis de stress, sentindo olhares de seres invisíveis trespassando-nos em minuciosa tomografia computorizada, esperando o momento ideal para clicarem o botão (gatilho) que nos queimará a carne.

São estes os momentos em que a mente, em louco desprendimento, se desapega do corpo e vagueia em sonhos de realidade distante. Mortificando, são estes os momentos que nos trazem os mais excêntricos pensamentos da vivência existida e daquela que é túnel escuro do amanhã que se espera...

Cansado o guerreiro, esgotado o cérebro, o homem duro adormeceu. Vinte e quatro anos! Quanto pesarão estes dois últimos dois na sua vida!?...

Chegada a Bissau, ao princípio da tarde do dia seguinte. Há que embarcar e distribuir o pessoal pelas camaratas _colchões colocados nos porões. Os oficiais e sargentos ocuparão os camarotes. O “Niassa” largará na maré cheia que acontecerá pela madrugada. Os oficiais e sargentos, que não estejam de serviço, são autorizados a sair até à meia noite impreterivelmente.

Chico Zé, Vagabundo, Jata e António Pedro saem juntos e abancam no Tropical. Camarão de Quinhamel, ostras e cerveja até encharcarem. Fartos como brutos, bêbedos que nem cachos, cada um sonha com a chegada a Lisboa. Próximo da meia noite, António Pedro, já amparado por Chico Zé e Jata, sobem as escadas do "Niassa", mas o peso de António Pedro é cada vez maior. Vagabundo, a meio das escadas, manda sentar o pessoal e diz para Chico Zé:
- Porra! Não cantamos um fado à despedida desta Terra? - Silêncio! Os camaradas não respondem.
- É, cambada!... ninguém diz nada, cabrões?... Senão falam então ouçam a minha Florbela! (2)

Parecendo que o álcool lhe tornava a voz suave e profunda, recitou:

"Almas de Vagabundos
Onde há charcos e lagos
Pântanos e lamas…
Onde se erguem chamas
Onde se agitam mundos,
E coisas a morrer…
E sonhos… e afagos…

Almas sem Pátria,
Almas sem rei,
Sem fé nem lei!
Almas de anjos caídos,
Almas que se escondem para gemer
Como leões feridos!”


- Merda! Já acabou tudo!?... Amen!

Jata pede a Vagabundo que dê uma ajuda, este estende o braço mas escorrega e cai para dentro do portaló. Dois vultos indefinidos rolam no escuro pelas escadas do "Niassa". Um mergulha nas águas do Geba, o outro dilui-se.

Silêncio absoluto. Nenhum marinheiro gritou:
- Homem à água!...

Na sua voz pastosa e alcoolizada, António Pedro perguntou:
- O Queeee… foooi?

Calças de Palanco, agora já em pé, respondeu:
- Foi o Mamadu que não quis abandonar a sua terra e preferiu ficar nas águas e lama do Geba!
- Que fique em paz na lama, a sua sombra!

Saiu em uníssono da boca dos quatro militares.
- E o Vagabundo?

Voltou para Cabolol para recomeçar a Guerra.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)


(2) Vd. poste de 12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (22): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

(3) Vd. Vidas Lusófonas > Florbela Espanca (Vila Viçosa, 1894; Matosinhos, 1930). Poetisa trágica, pôs termo à vida no dia em que fez 36 anos. Justamente em Matosinhos, onde vivia.

4 comentários:

Anónimo disse...

As palavras são demais, ou são de menos, para comentar a força, a beleza deste texto, por isso apenas deixo o abraço do camarigo
Joaquim Mexia Alves

Anónimo disse...

Nesta descrição do seu regresso, parece ser oportuno,
sem outras palavras, reproduzir o comentário produzido após a minha leitura da Autobiografia do Mamdu:

PUTOS;GANDULOS E GUERRA

LOUVOR

LOUVO O FURRIEL MILICIANO RANGER, MÁRIO VICENTE FITAS RALHETA, OU VAGABUNDO, OU MAMADU, DA CC763, EM CUFAR, PELA CORAGEM, LUCIDEZ E CARÁCTER COMO DESCREVE O DECORRER DA SUA INFÂNCIA E JUVENTUDE, DA GUERRA QUE NÃO DESEJOU, DA CORAGEM E MEDOS, DA ESTRELA QUE SEMPRE O GUIOU DESDE AS TERRAS DO NORTE, DA HONRA QUE PRESTOU À SUA PLANÍCIE...
PORQUE SOMENTE OS POBRES DE ESPÍRITO, AS GERAÇÕES RECENTES E OS "NOVOS" POLÍTICOS DESCONHECEM O QUE REPRESENTA "ESTA É A PÁTRIA MINHA AMADA", A QUEM ELE TUDO DEU; COM ENORME SACRIFÍCIO, POR DEVER; NÃO SABEM, NÃO QUEREM RECONHECER OS FEITOS E OBRAS ESCRITOS COM VERDADEIRO SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS.
"NÃO EXISTEM SANTOS, OU HERÓIS, NA SUA PRÓPRIA CASA".
A CRUZ DE GUERRA, SÍMBOLO DE LATA, EXISTE, MAS QUASE NADA REPRESENTA: A VERDADEIRA CRUZ, ESTÁ SEMPRE PRESENTE E É BEM REAL.
"PUTOS, GANDULOS E GUERRA" NÃO É UMA OBRA PRIMA DA LITERATURA. ANTES UM DOCUMENTO DE TRABALHO HISTÓRICO, A SER CONSULTADO, INVESTIGADO E DESENVOLVIDO POR AQUELES QUE DEVEM REESCREVER A HISTÓRIA DE PORTUGAL.
CONSIDERO DEVER INCENTIVAR QUE ESTE EXEMPLO SE REPITA E LEVE A OUTROS DESCREVEREM A SUA PARTE NA GUERRA.
A GERAÇÃO DOS VETERANOS QUE VIVERAM A GUERRA; ESTÁ A TERMINAR. NÃO SE DEIXE QUE OS QUE NADA SABEM, POR FALTA DE VIVÊNCIA, VENHAM MAIS TARDE A ESCREVER; POR NÓS, SEGUNDO A SUA VISÃO. OS NOSSOS FILHOS SAIRÃO DEFRAUDADOS.

Santos Oliveira

Anónimo disse...

Eh lá...mandei agora um mail aos comentários de ontem...louco como convém...abro o blog leio e eh lá...pois gosto, Li, parei e reli a saborear.Gostei e mais não digo. Escreve!
Um abraço Torcato M

Anónimo disse...

Luís,
Não vale! A tua idéia de pores no blogue a seguir ao meu regresso a minha adorada Florbela: São horas mortas...A planície é um braseiro...
Tem pena de mim!
Podes crer que todo o povo Alentejano ao passar pelo Blogue e rever a vida de Florbela vai chorar.
Obrigado Luís, foi das melhores prendas que tenho recebido!

Em nome de toda a Planície que adora Florbela muito obrigado!

Do tamanho do Cumbijã e Guadiana juntos, aquele abraço.

Mário Fitas