sexta-feira, 25 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3093: Estórias do Zé Teixeira (30): Uma Vida que Deixei Fugir (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro CCAÇ 2381 Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70
 
1. No dia 17 de Julho de 2008, recebemos uma mensagem do nosso Enfermeiro José Teixeira, com mais uma das suas estórias.

Caros editores.
Mais uma estória minha, que é de nós todos.

Abraço fraternal
José Teixeira


2. UMA VIDA QUE DEIXEI FUGIR

Por José Teixeira

Saímos de Buba pela seis da manhã com destino a Aldeia Formosa, próximo poiso da CCAÇ 2381 durante alguns meses. Como companheiros tínhamos a CCAÇ 1792 - Lenços Azuis, que nos veio buscar a Buba.

Na coluna, seguiam cerca de três dezenas de viaturas carregadas de mantimentos para as tropas estacionadas em Aldeia Formosa, Mampatá, Chamarra e Gandembel, incluindo os três obuses de 14cm que iam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes

A estrada (picada) está num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros, foram percorridos em oito horas e meia.

A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os piras concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de picadores, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam. Ouvidos atentos aos sinais toc-toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente, numa ansiedade indescritível.

Por vezes a descoberta de uma raiz ou uma pedra, provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena núvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado e me arrastou para o meio de uns arbustos ali na mata. Ele foi a mão de Deus que me protegeu das picadas das abelhas. Não sei se o voltei a ver alguma vez, mas estou-lhe muito agradecido, pela lição que me deu, a qual não só me salvou de umas dezenas ou centenas de picadelas desta vez, como da outra em que eu voltei a cair em situação idêntica.

Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo...

Que culpa teria aquele jovem que me morreu nas minhas mãos, sem eu lhe poder valer, que os homens não se amassem? Que os políticos não se entendessem?

A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

Estava a comunicar via rádio com Buba a informar que se tinha passado uma zona considerada perigosa, o entroncamento da estada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro.

Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos.

Logo atrás vinha o primeiro Obus de 14, um dos três que se destinavam reforçar a defesa de Aldeia Formosa e áreas limítrofes.


Foto 1 > Um dos Obuses já colocado em Aldeia Formosa.

Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o Obus.

Dos quatro camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu. Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado.

Foto 2 > Os três enfermeiros da CCAÇ 2381 – António Lemos, o Jorge Catarino e o Zé Teixeira. Falta o Marques da Companhia dos Lenços Azuis a CCAÇ 1792, que connosco partilhou estes momentos.

Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face.

Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começa a tomar conta dele e de nós os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinha rebentado vasos sanguíneos internos, que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado:

- Já não vejo! Já não vejo! Vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me!

Impunha-se uma evacuação urgente, mas como?

Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações via rádio foram destruídas pela mina.

- Que raiva, meus Deus!

De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e... talvez as orações de alguns.

A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.

O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficámos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista.

Isto foi a guerra... a dura guerra que vivi!

Zé Teixeira

Fotos e legendas © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2920: Estórias de Zé Teixeira (29): Um aborto e o porco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

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