segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite

Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74


1. Em mensagem de 29 de Julho, recebemos do nosso camarada Juvenal Amado, mais uma das suas habituais estórias (1).

Caros camaradas
Carlos Vinhal, Luís Graça, Virgínio Briote e restante Tabanca

Como já disse ainda estou .

Esta estória é um pouco a história de todos que embarcaram naqueles anos cinzentos.

Tão jovens depressa envelhecemos interiormente.

Um abraço para todos
Juvenal Amado

2. Pela calada da noite
Por Juvenal Amado

No campo militar de Sta. Margarida, o frio naquele mês de Novembro trespassava-me a ponto de me fardar com botas e tudo, depois deitar-me novamente.
Não foi pois com desgosto que disse adeus a CIME e ao seu comandante o Coronel Maçanita.

Nunca tive dúvida de que seria mobilizado. Em pensamentos antecipados pensava em Moçambique, onde tinha já prestado serviço militar o meu irmão mais velho.
Talvez Angola, onde até tinha família. Mas…

Fui mandado regressar a Abrantes já sabendo que tinha sido mobilizado, não sabia ainda para onde.
Depressa me tiraram as duvidas… Guiné esse nome tão temido.

Quando cheguei a casa com dois sacos verdes, a minha mãe olhou-me no cimo das escadas e perguntou-me num fio de voz:
- Para onde ?

Senti-me tentado em dizer-lhe, que ia para outro sítio qualquer. Não podia esconder-lhe e brinquei com o facto, tentando apagar o pânico que vi nos seus olhos.

- Mãe ainda vou fazer o IAO, depois ainda venho de férias e só depois embarco.

Tentei fazer passar a ideia, de que passaria o Natal e talvez para Fevereiro ou Março eu rumaria às terras da Guiné.
As férias passaram a correr, aliás quanto mais me aproximava da data de regresso a Abrantes, mais desejoso de partir estava. Sou incapaz de estar naquele meio termo.
O meu pai e a minha mãe pediram-me que escrevesse sempre. Despedi-me:
- Até para a semana, pois decerto venho passar o Natal a casa, menti eu.

Entrei na Porta de Armas naquela madrugada escura e cinzenta. O vulto da 4 L verde-escuro foi ficando mais longe, mas sempre um braço se agitava num longo adeus.
Dobrei a esquina da caserna, esperei um pouco e voltei a espreitar. Lá estava a 4 L imóvel, talvez à espera que o tempo voltasse a trás e eu entrasse nela, de regresso a casa.
Penso que eles se aperceberam que o embarque, já estava marcado e que não me voltariam a ver tão cedo.

Foram poucos os dias que tivemos até à data do embarque, mas deu para cimentar algumas amizades que ainda duram.
Quando entrei na caserna ouvi chamar com aquela pronúncia do Norte:
- Condutor, oh condutor, tens aqui lugar, traz as tuas coisas para a nossa beira.

Na verdade nós já nos conhecíamos, pois tínhamos vindo do RI 6 do Porto para Abrantes no mesmo combóio, quando todos acabamos as nossas respectivas especialidades. O Ivo, Ermesinde, Lo…pes, Silva, Félix, Ferreira, Passos, Dias e o Leo, todos do Pelotão de Reconhecimento e Informação.

Assim fui adoptado pelo Pelotão e só mais tarde vim a conhecer os meus camaradas da ferrugem. Ainda ouvi bocas de que eu tinha desprezado o meu Pelotão. Na verdade, acabei por ir parar a outro abrigo, onde se arrumaram os camaradas das mais variadas especialidades, que não tiveram lugar nos abrigos dos seus pelotões.

Mas voltando a Abrantes, todas as noites aquele grupo saía, bebíamos uns copos, só voltando para o quartel quando já estavam a fechar a Porta de Armas de vez.
Invariavelmente de manhã só me levantava após a visita de algum graduado e mesmo assim, quando ele virava costas deitava-me outra vez. Assim passava o capitão, batia na cama com uma varinha e chamava:
- Oh Zé das canas, então, não te levantas?

Estas visitas já faziam parte do nosso dia-a-dia.
Foi assim que uma manhã, o oficial de dia entrou com aquela desenvoltura dos Operações Especiais a gritar:
- Está a levantar e quem não se levantar rapidamente leva uma porrada, que vai parar à Guiné.

Chegou ao pé da minha cama e gritou-me:
- Oh nosso cabo, dê cá já o seu número.

Sonolento e cheio de frio, respondi-lhe que só lho dava se ele o mandasse dourar.

O Alferes Armandinho fingiu que não ouviu. Assim ele não tivesse ouvido a ordem que o levou ao encontro da morte mais os seus homens no dia 17 de Abril de 1972 na emboscada do Quirafo (2).

Mandaram que nós arrumássemos as nossas coisas e despejássemos a caserna até às 22 horas. Para não haver dúvida, passaram revista à e fecharam a porta à chave.
Ali ficamos sentados nos sacos e mais bagagem, até cerca da meia-noite.
As Morris, Berliets e Unimogs começaram a faina de nos acarretar para Estação dos Caminhos de Ferro, no Rossio ao Sul do Tejo.
É tudo feito pela calada da noite.

Metidos em combóio especial, só paramos em Lisboa em Sta. Apolónia ainda é noite. Já lá estão os transportes para nos levar até ao cais de Alcântara. Amanhece, mas é uma luz parda com névoa, que paira sobre o rio Tejo ali ao lado.

Uma cozinha de campanha distribui café com leite e pão para o pequeno almoço.

O Angra do Heroísmo já espera por nós. A cidade acorda lentamente, mas mais um embarque, depois de 10 anos a ver partir barcos carregados de jovens, já não causa qualquer interesse nem curiosidade.

Foto 1 > Lisboa 18 de Dezembro de 1971 > O Angra do Heroísmo espera por nós

Não tinha avisado ninguém da data da partida, mas à última hora deu-me vontade ter alguém a quem dar um abraço, que dissesse aos meus pais e irmãos que eu tinha embarcado bem. Telefonei ao meu tio Armando, que em 15 minutos já estava ao pé de mim. Veio com ele a minha prima. Conversámos, entreguei-lhe uma carta para ele meter nos correios, mas com a condição de não dizer que tinha estado comigo até a mesma chegar ao destino.

Quando os meus pais receberam a carta, já estava com dois dias de mar alto.

Vem a ordem para se começar a embarcar por Companhias, olho em volta o nevoeiro que não deixa ver para além de duzentos metros.
Subo para o navio, fico a olhar para o cais onde se dão os últimos abraços, ainda se contêm as lágrimas.
Já estamos todos a bordo.

O navio solta três vezes o urro das suas sirenes.
Um alarido percorre aquela mancha verde de soldados, já estamos afastados do cais. Um enorme e estrondoso silvo de assobios ecoa pelo cais, olho para esplanada do mesmo e vejo os lenços, a mole humana parece varrida por uma rajada, vão tombando aqui e ali as mães, irmãs e namoradas que tinham até ali resistido ao seu próprio drama.
O nevoeiro foi engolindo Lisboa, ainda se vê ou está gravado nos meus olhos aquela mancha cinzenta do cais com braços acenando.

Foto 2 > Já a bordo do Angra do Heroísmo, a caminho da Guiné

Quando voltar a esse lugar, será de certo num dia mais feliz, mas nunca apagará da minha memória a enorme tristeza da partida.

Juvenal Amado
ex-1º Cabo Condutor
CCS /BCAÇ 3872
______________

Notas de CV

(1) - Vd. último poste da série de 17 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3067: Estórias do Juvenal Amado (12): O longo abraço (Juvenal Amado)

(2) - Sobre a tragédia do Quirafo, Vd. postes de:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Juvenal Amado

O Oficial de Operações Especiais que refere neste post e que, infelizmente, juntamente com outros camaradas, morreu na célebre emboscada do Quirafo, em Abril de 1972, chamava-se Armandino Ribeiro e não Armandinho e era natural de Lamego. Em breve publicarei no blogue da CCAÇ3491, fotos em que ele se encontra.
Um abraço
Luís Dias
Ex-Alf.Mil. da CCAÇ3491