quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)


Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú

(Continuação)

iv-Alimentação

A alimentação, embora, de algum modo, repetitiva, podia considerar-se, dadas as circunstâncias, razoável. Em situações de guerra não se espera comida de hotel, nem, tão pouco, uma confecção à base de produtos frescos, que a distância dos centros onde os havia tornava impossível. Ainda assim, consumindo, é certo, muitas conservas, tínhamos possibilidades de conseguir dietas de peixe fresco, de carne das mais variadas espécies, adquiridas aos indígenas, marisco da bolanha e até caça, como se sabe.

O peixe que era pescado junto à costa e nos canais (ou braços de mar) e rios que recortam o território guineense, e não no mar alto, não era, como é obvio, de grande qualidade, pois andava à volta da tainha (em grande parte) e, de quando em vez, de alguma corvina. Provinha de pescadores indígenas que, com as suas tarrafas (redes artesanais que em Portugal também se chamam chumbeiras) e em cima de frágeis canoas que construíam dos troncos de grandes árvores, não muito longe dos métodos usados pelo Homem do Neolítico, conseguiam grandes quantidades de pescado. Esses pescadores, a quem se comprava o produto da sua faina, eram credenciados pela Companhia.

Claro que às tantas já estávamos enjoados das conservas, mas também da tainha frita, que, é bom dizê-lo, não agradava por aí além. As restantes alternativas, por acontecerem de longe a longe, sabiam a pouco.

Foto 12 > Por um dia eram esquecidas as salsichas e as sardinhas de conserva

O modo como se faziam as compras dos animais para suprir as necessidades, que eram muitas, de carne fresca, envolve algumas curiosidades. As galinhas, que eram excelentes (penso que nunca mais comi aves daquela qualidade) e criadas ao ar livre em redor das tabancas, praticamente só iam à mesa dos graduados, que tinham, como sabem, uma messe à parte, dotada de verbas diferentes, ou seja, a importância que o Estado atribuía, por dia, para a alimentação, a uma praça, não era a mesma que cabia a um oficial ou mesmo a um sargento.

Como as galinhas eram sempre poucas, tornava-se impossível fazer-se com elas refeições para a messe geral. Mas como eram então compradas? Normalmente as populações das tabancas não queriam vendê-las, fosse por que preço fosse.

As “brigadas” de compra, chefiadas por um furriel (responsável pela messe, nesse mês), levavam consigo o famoso cão Galinheiro, que a Companhia anterior nos legou, treinado (não por nós, juro) para caçar galinhas sem as estragar. À ordem de: “agarra”, o cão investia e abocanhava a maior que descortinasse. O dono, vendo o galináceo na nossa mão, acedia imediatamente a fazer negócio, pagando nós a importância que ele exigisse. Recorrendo sucessivamente a este estratagema, voltávamos ao quartel com galinhas suficientes para o jantar de domingo.

Claro que o capitão Ritto não sabia nem sonhava como conseguíamos comer tantas vezes galinha de chabéu, pois, de contrário, acabava-se o petisco. A uma distância temporal destas, já nos podemos permitir confissões que, à altura, seriam incómodas.

Quanto aos carneiros, porcos e vacas, esses negócios eram assunto para o vagomestre, na pessoa do nosso amigo Teófilo Silveira, visto que se destinavam a ser consumidos no rancho geral. No entanto, lembro que as vacas provinham da ilha de Melo, onde viviam em liberdade, apesar de terem dono, e eram transportadas até à península de Cabedú em canoas, num trajecto considerável e arriscado.

De qualquer modo, garantia-se a compra a quem decidisse lá ir buscar um ou mais animais, independentemente de a quem pertencessem, para assim aumentarmos a manada que já tínhamos em carteira. Havia até uma pessoa encarregada de tratar dos bovinos, o nosso companheiro “vaqueiro”, de quem não recordo o nome.

E com esta diversificação conseguia-se uma alimentação, como disse, razoável e equilibrada, que não estava ao alcance da maior parte das companhias. Ainda assim, havia quem não se sentisse confortável com o que comia e, pelo contrário, os que nunca se tinham alimentado tão bem na vida.

Como a imagem abaixo testemunha, fabricava-se pão nas nossas instalações. Era um excelente produto resultante da mestria de três camaradas nossos que davam o melhor de si próprios, para que, todos os dias, o tivéssemos bem fresco às refeições.

Foto 13 > Os três padeiros em acção

Um episódio, no mínimo hilariante, aconteceu durante o almoço num dia de visita do comandante-chefe, brigadeiro Louro de Sousa, à nossa unidade em Cabedú. Estavam os soldados espalhados pela parada, com as suas marmitas entre as mãos, saboreando o repasto, que, naquele dia, constava de grão-de-bico, com não sei o quê. O brigadeiro, aproximando-se do nosso companheiro, que eu, francamente, não me recordo quem fosse, mas que tinha sempre resposta pronta para tudo, faz uma observação: “com que a então a saborear um belo dum gravanço. Está com um belíssimo aspecto”.O soldado, que não era da mesma opinião, quanto à qualidade do pitéu, não se calou: “Pois é, meu brigadeiro, é pena é o grão estar cru; está bom é para meter na G-3 e servir de balas”. Perante a risada geral, o comandante-chefe, com um sorriso amarelo, meteu a “viola no saco” e desandou. Não quer dizer que as palavras proferidas fossem, exactamente, estas, todavia, o sentido do diálogo corresponde inteiramente à verdade.

Como consta doutro capítulo, havia um grupo que ia muito à caça, que se traduzia quase sempre, dada a abundância de espécies, em belas caçadas, passe a redundância. Todavia, o entusiasmo levava-nos, por vezes, a pôr a nossa segurança em perigo, ao afastar-nos muito do perímetro considerado aceitável para um pequeno grupo (dois, três militares), se arriscar.

Recordo que um dia ultrapassei esse limite, acompanhado pelo nosso guia, Mamadú Canté, chegando até próximo da tabanca de Cacisse, onde havia uma bolanha, que quase sempre tinha gazelas a pastar. Um tiro certeiro fez tombar uma que, pelo seu elevado peso, não foi possível, a mim e ao meu acompanhante, transportá-la até à base. Assim, enquanto ele próprio foi à tabanca procurar alguém que nos auxiliasse nessa tarefa, eu esperei só, já de noite, junto do troféu. Dois habitantes de Cacisse, bem musculados, lá levaram a gazela até ao quartel, onde já tinham dado pela nossa falta e, com a noite a cair, havia até uma certa preocupação, enquanto o autor do leviano acto e o seu cúmplice respiravam de alívio. Confesso que nesse dia tive medo e jurei a mim mesmo que nunca mais cometeria semelhante loucura. Facilmente podíamos ter sido apanhados.

Fui, como não podia deixar de ter sido, censurado e bem pelo capitão Ritto, que, a partir daí, preocupado, começou a limitar-nos o campo de acção nas surtidas da caça. Por fim, quando já estava próxima a partida para Bissau, para embarcarmos, proibiu mesmo qualquer militar de sair para a caça, pois, pelo que nos disse, recebera a informação de que o IN se preparava para nos “caçar”. Episódios que acabaram bem, mas que podiam ter “dado para o torto”.

Ainda dentro da problemática da alimentação, às vezes, o azar aparente transforma-se em sorte para uns tantos. Tínhamos, como se sabe, uma boa reserva de galinhas que o Galinheiro e os seus mentores tinham criado e que estavam à espera de melhor ocasião para fazerem parte daquele chabéu, que um pequeno grupo costumava saborear ao domingo. Num dos vários ataques a que estivemos sujeitos, durante os quase dois anos em Cabedú, uma morteirada, talvez do famoso 82 mm, acertou em cheio na capoeira que ficava perto da secretaria. Resultado: todas as galinhas mortas, algumas despedaçadas. Mas, e esta é a parte agradável do acontecimento, estavam todas em condições de os cozinheiros fazerem com elas um excelente almoço para todos, ou seja, mesmo para aqueles que não estavam destinados a “meter-lhe o dente”, e que assim festejaram o tiroteio de véspera.

A hora das refeições, nomeadamente entre pessoas amigas ou conhecidas, comporta sempre um ritual que as retira do afã do dia-a-dia para as colocar num ambiente que envolve alguma serenidade, descontracção e, sobretudo, comunhão de sentimentos. Em plena guerra e nas matas da Guiné, com todas as diferenças que essas circunstâncias originavam, esse estado de espírito não era assim tão diferente. Porém, o clima de tensão que esse ambiente proporciona requer sempre, da parte de todos, uma actuação cuidadosa, em que o bom senso prevaleça, de modo a evitar conflitos ou a resolvê-los quando surgem.

Guardo um desses momentos demonstrativos da hipersensibilidade a que estávamos sujeitos: estava-se a servir o almoço ao pessoal e eis senão quando, por alguma falta de cuidado do cozinheiro que distribuía pelas marmitas a refeição ou, eventualmente, por o nosso companheiro, que não consigo identificar, ter desviado a mão que a segurava, a verdade é que parte do almoço, que, como é compreensível, estava bem quente, caiu-lhe em cheio no braço. Porque o soldado estivesse, eventualmente, num dia mau, no que respeita a esse stress, que nos afectava a todos; porque tivesse achado que o cozinheiro teria feito aquilo de propósito; enfim, por qualquer sentimento que só o protagonista poderia explicar, criou-se ali um momento de alguma violência física, que envolveu não só os dois actores principais, mas muitos outros que acorreram, tentando sanar o conflito. Uma cena de uma certa altercação, que acabou por ensombrar o ambiente de acalmia e confraternização que o almoço sempre proporcionava. Terei presenciado este episódio (não posso precisar) por estar de sargento-dia, que assistia à distribuição do rancho, ou então por ter passado por ali, aquando da eclosão deste momento um pouco mais quente.

Precisamente por ter reflectido sobre o assunto, tenho uma explicação que vai um pouco mais além das que, normalmente, nos acorrem numa situação destas. Como sempre acontece numa companhia militar composta, como se sabe, por diversas especialidades e funções, que em situações de guerra estão sujeitas a diferentes graus de perigosidade, sentia-se uma tensão latente, embora controlada, entre os que saiam constantemente para operações militares (os atiradores e os conhecidos elementos de apoio) e aqueles que raramente, ou nunca, tomavam parte nessas acções, não se expondo assim ao mesmo perigo que os primeiros (os cozinheiros, por exemplo). Sem se poder atribuir a culpa a ninguém, já que as funções correspondiam à especialidade que se tinha, mesmo assim, todos os momentos eram bons para expressar esses sentimentos. De qualquer modo, este tipo de acontecimentos, dentro da tal tensão referida, foram muito poucos e sem expressão visível.



v-Acontecimentos marcantes

Durante dois anos numa guerra de desgaste permanente, quer físico, quer psicológico, há sempre momentos que marcam para o bem ou para o mal a vida e a memória de quem os viveu.

O primeiro momento, penso eu, difícil e marcante para o grupo que o sofreu, foi o ataque ao barco em que viajávamos para Cabedú, em frente da ilha do Como, já atrás referido, até pelas consequências que teve: um nosso companheiro atingido gravemente por uma bala, que o terá incapacitado, segundo julgo saber, para o resto da vida. Também por ser, digamos, o nosso baptismo de fogo, que acaba por gerar sempre momentos de grande emoção.

Um outro momento, e não sigo uma ordem cronológica, terá sido a grande operação do Cantanhês, com fuzileiros, pára-quedistas, força aérea e marinha, durante alguns dias, com um desgaste muito grande para todos, apesar de não ter resultado em grandes danos físicos para os grupos de combate.

Provavelmente, o primeiro ataque ao quartel, quer pela novidade que constituiu, embora o esperássemos mais dia menos dia, quer como teste à nossa capacidade de reacção, que acabou por ser boa, embora fosse uma incógnita, dada a ansiedade que percorre cada ser humano, nos momentos difíceis, melhor controlada por uns do que por outros, também resultou num marco importante na nossa vida de combatentes.

Uma ou outra operação mais complicada que, a esta distância no tempo não posso precisar, entraram igualmente como referências no conjunto de memórias que guardamos. Porém, recordo uma em que até a nossa companhia não entrou, mas em que a pista de aeronaves serviu não só de base para o eventual reforço de homens e material, mas também de evacuação de mortos e feridos. Guardo o sentimento de tristeza que senti ao assistir à transferência de vários jovens mortos ou muito feridos, que iam chegando no helicóptero para a avioneta estacionada, para seguirem para Bissau. Para quem, como nós, está numa situação em que corria um perigo semelhante ao daqueles infelizes companheiros, é deveras traumatizante assistir a um espectáculo desta natureza. A operação referida ter-se-á realizado numa área junto do rio Cacine, se bem me recordo.

A queda de uma avioneta ainda no perímetro do quartel, levando a bordo um tenente do exército, um sargento e um cabo da força aérea, ao levantar voo, depois de terem recolhido mensagens de Natal para serem passadas na rádio, e que resultou na morte horrível dos três militares, carbonizados dentro da aeronave, em virtude do incêndio que deflagrou, após o seu contacto com o solo, terá sido o momento mais dramático vivido em Cabedú. Tudo isto se deu à nossa vista, poucos minutos após os três militares, que pertenciam ao sector encarregado destas acções meritórias destinadas a porem os combatentes em contacto com os seus familiares, se despedirem com grande simpatia da Companhia 555. Assistir ao dramático acidente sem poder fazer absolutamente nada por eles, marcou-nos, posso afirmá-lo, durante bastante tempo. A exumação dos cadáveres foi feita em Cabedú, onde os corpos permaneceram até serem transportados para Bissau. A guarda de honra foi feita por secções, em sistema de roulement. Até as próprias refeições dos dias seguintes, pelo menos para alguns (os mais sugestionáveis), foram fortemente afectadas. Havia sempre quem tivesse brincadeiras de mau gosto, lembrando o que eles sabiam condicionar esses tais mais sensíveis. Enfim, a juventude a tudo se permite. Eu conto isto, porque pertencia ao tal grupo que suportou, com uma paciência infinita, as “bocas” desses inveterados brincalhões.


vi-Dificuldades / Contras

África foi sempre e continua a ser um continente muito susceptível de, no seu território, se desenvolverem muito tipos de febres, provavelmente devido às características do clima, à má qualidade das águas, à possibilidade de mordedura de muitos insectos, ou mesmo à falta de higiene na confecção dos alimentos. O paludismo é uma dessas febres e aquela a que os militares mais estavam sujeitos. Porém, dada a boa cobertura de vacinações, os medicamentos disponíveis no âmbito das Forças armadas, o cuidado que se tinha em nunca beber água sem a submeter a filtros, fervura ou desinfectantes, evitou que esses problemas de saúde assolassem a Companhia. Tirando um caso ou outro, não foi um problema sério que tivéssemos de enfrentar. Mesmo assim era um risco que esteve presente, e com ele tivemos que viver durante todo o tempo da comissão.

O clima quente e húmido e um tanto ao quanto insalubre, o terreno pantanoso que nos criava obstáculos muito sérios na movimentação de tropas, (veja-se o caso de todos conhecido e que poderia ser complicado se a intervenção não fosse rápida, em que o Joaquim Rézio ficou enterrado num lamaçal, ao atravessar um rio na maré baixa e já não conseguia, por si só, sair dali, sendo então puxado por cordas e libertado da situação embaraçosa em que se encontrava), a pluviosidade abundante na época das chuvas, alagando muitas zonas por onde teríamos que passar, algumas carências alimentares (pouca diversificação e falta de produtos frescos), um inimigo aguerrido e razoavelmente bem equipado, foram dificuldades já apontadas ao longo deste trabalho.

Ao elenco de contrariedades sentidas pelos militares em terras guineenses há a acrescentar, apesar de parecerem marginais e até caricato enunciá-las, a acção maléfica de certos insectos, que no mínimo nos faziam a “vida negra”: as melgas, as matacanhas, as formigas (térmitas) e as abelhas africanas. Provavelmente haveria outros que também incomodariam o suficiente para merecerem aqui referência, porém é a estes, e com graus de nocividade diverso, que pretendo dedicar algumas linhas.

As melgas, esse bichinho “simpático” que nos punha os nervos em franja, merecem, da minha parte, uma referência especial, dadas as noites terríveis que me fizeram passar, não muito diferentes daquelas que proporcionavam aos meus colegas. Quando se dormia no aquartelamento, o mosquiteiro colocado nas camas obstava a que o “massacre” se realizasse, mas nas operações em que se tinham passar uma ou várias noites fora e em plena mata, onde a concentração desses insectos era enorme, aí, sim, sentia-se, e de que maneira, a sua presença. No que a mim diz respeito, confesso, com risco de parecer demagógico, que temia mais uma noite passada no exterior, em que tinha a certeza que ia ser mordido em todos os centímetros quadrados do corpo, do que o próprio inimigo. Refira-se que elas conseguiam morder mesmo através do camuflado, não havendo, portanto, nada que conseguisse travar os seus maléficos intentos. Havia uma rede que se levava para colocar na cabeça e sobre as partes descobertas, mas que não evitava, como se disse, que fôssemos atingidos seriamente. A época das chuvas era a pior no que respeita a este flagelo, já que a humidade, aliada ao calor abafado que se fazia sentir, proporcionava o ambiente ideal para o seu desenvolvimento.

As formigas, se tínhamos necessidade de nos abrigarmos atrás duma termiteira, essas construções curiosas (conhecidas por montes baga-baga) que erguiam para suas moradas, para nos protegermos dum ataque inimigo ou para melhor tomar posição para fazer fogo contra esse mesmo inimigo, e de alguma forma intervir no seu afã constante de reforçar o seu stock alimentar, podiam seriamente causar danos a esses incautos ou vítimas involuntárias. Estas formigas são perigosas, se atacam em conjunto e em simultâneo, de tal modo que podem causar a morte a essas pessoas. Porque só acidentalmente se poderia ter contacto com estes xilófagos insectos, não eram de molde a constituir grande problema, se para tal houvesse a devida atenção.

Quanto às abelhas, e quase pela mesma razão, que se traduzia em que só muito acidentalmente e por algum descuido se podia assanhar o enxame que, normalmente, se localizava em árvores velhas e carcomidas, poucas vezes houve incidentes, que não foram, mas podiam ser muito desagradáveis. É conhecida a ferocidade destas abelhas que, tal como as formigas, podem levar à morte de quem, incautamente, interferir no trabalho da colónia.

As matacanhas privilegiavam os pés que estivessem em contacto com a terra, portanto, o chão. Ou seja, as vítimas eram quem andasse descalço. Constava duma larva que se alojava no interior da pele dos pés. Tornava-se incómodo, mas evitável se houvesse algum cuidado. Para a sua extracção recomendava-se uma pequena cirurgia, que o Dr. Matos Ferreira ou o nosso amigo Rafael Mendes (carinhosamente alcunhado por nós de “Pastilhas”, pelos LM’s que receitava para toda e qualquer doença que surgisse), com toda a mestria executavam.

Os rios também ofereciam alguns perigos que, se atravessados em certas zonas, podiam ser efectivos. Na Guiné os crocodilos infestam a maior parte dos cursos de água, portanto este sáurio é sempre uma ameaça para o ser humano. As piranhas, muito abundantes na ex-colónia portuguesa, podiam igualmente potenciar alguma preocupação, se utilizássemos regularmente os rios e canais para fazer atravessamentos, o que não era o caso: os nossos espaços de actuação eram, preferencialmente, a mata e a bolanha.

Quanto a animais selvagens e ferozes, nem vê-los: algumas cobras, e pequenas (lembro-me apenas de uma, de um porte razoável, que encontrámos e matámos), uma onça ou outra fugidia e mais nada que mereça referência e que a minha memória retenha.

E, quanto a perigos e dificuldades, não me recordo de mais nada que mereça ser referido. Normalmente, recordamos mais e mais facilmente aquilo que nos correu menos bem, todavia aqueles momentos sérios que, digamos, fizeram mossa, não foram assim tantos como isso. Consequência dum bom planeamento e duma boa actuação, como já foi amplamente dissecado? Provavelmente, sim.


vii-A despedida

O regresso a Bissau para aguardar embarque para a Metrópole (2º e último grupo), que se dá em finais de Setembro de 1965 foi, não só no que a mim diz respeito, mas também pelo que senti em relação a companheiros nossos, um misto de alegria, já que significava o início do regresso a casa, e de nostalgia, para não dizer tristeza, de deixar pessoas que confiavam em nós e que nos consideravam amigos. Vi gente a chorar (os Mamadús, por exemplo), parecendo já, de algum modo, antever o drama que se haveria de abater sobre eles, a partir de 1974. Como é sabido, a colaboração com os militares portugueses havia de custar-lhes muito caro, o que implicou, segundo julgo saber, na maior parte dos casos, a perda da própria vida. Foi um dos assuntos mal defendido ou, de todo, irresponsavelmente negligenciado pelo Estado português (potência colonizadora), aquando das negociações para a independência da ex-colónia.

Aquela comunidade identificou-se muito connosco, provavelmente pela política da Companhia, que foi sempre a de eleger a componente psicossocial como prioritária para resolver, ou ajudar a resolver, um conflito que tinha vindo para ficar e levou àquilo que todos conhecemos.

Quem acha que o teatro de guerra não permite relações sociais equilibradas, amizades profundas e humanidade no tratamento daqueles que, duma maneira ou de outra, se encontram no campo do inimigo, está redondamente enganado. Será, admito-o, uma característica tipicamente portuguesa, que nos distingue de outros povos e de outras culturas, e que é o darmo-nos e sentirmo-nos bem em qualquer ambiente e situação e conviver sem preconceitos com outras culturas, religiões e etnias muito diversa das nossas, mas também o de termos um comportamento humano para com os nossos inimigos.

Foto 14 > Cumprimentos de despedida: o comandante com alguns “homens-grandes”

Há a ideia generalizada e assumida, mas nunca é demais lembrá-la, de que as populações civis são sempre as maiores vítimas das guerras, sejam elas de que tipo forem, em que época e em que lugar se desencadeiem. Encontram-se entre os dois fogos, são olhadas com desconfiança pelos contendores e sofrem as represálias de um ou de outro lado, conforme optam por colaborar com qualquer parte do conflito. A guerra de África e, concretamente, a da Guiné foi, neste particular, exemplar no passar à prática esta teoria. Foi uma realidade, a nível da Província, nem sempre bem compreendida pelos militares portugueses, talvez pela situação vivida, pelo stress que a guerra origina em todos e em cada um de nós. Cabedú, também nesse aspecto, pelo menos enquanto estivemos lá, foi diferente e, quanto a mim, desenvolveu a melhor política.

Por vezes interrogo-me se os que nos substituíram seguiram os métodos desenvolvidos pela CCAÇ 555 ou se, pelo contrário, abandonou à sua sorte aquelas comunidades indefesas e à mercê de métodos pouco ortodoxos e desumanos que os independentistas utilizavam para as obrigar a ter do seu lado. Tenho na memória o que fizeram, num período já muito próximo da nossa partida, ao incendiar a tabanca Sosso, obrigando os seus habitantes a refugiarem-se junto ao quartel e a ficarem sob a nossa protecção e responsabilidade.

Assim sendo, o que me resta? Falar de sentimentos (meus e dos demais) da tal dualidade de sensações que refiro, da tristeza que vi estampada no rosto de muitos, da incerteza no amanhã que adivinhei nos semblantes daqueles que nos foram acompanhar ao cais onde embarcaríamos numa lancha da marinha com destino a Bissau.

Ao afastar-me do tarrafe que cobre as margens do riozinho, ou braço de mar, que permitia que os barcos entrassem e saíssem de Cabedú, dei comigo a interrogar-me qual o futuro que caberia àquela terra e àquelas gentes já martirizadas pela guerra, mas que ainda iria durar mais nove anos e, agora sabemo-lo, pelo que se iria seguir que, como constatámos e continuamos a constatar, não foi e continua a não ser risonho.

Ainda a propósito dessa despedida, não consigo esquecer a atitude do guia Mamadú Canté (e será também por isso que eu guardo o sentimento que aqui expressei) ao pedir-me que o trouxesse connosco para a Metrópole. Passava, se bem me lembro, ele próprio por uma fase de algum abatimento psicológico, o que tornava as coisas menos fáceis para quem partia e deixava um colaborador fiel em todas as circunstâncias, inclusivamente, nas já comentadas aventuras, que ambos vivemos nas caçadas às gazelas e às galinhas de mato. Todas aquelas pessoas que, ao fim e ao cabo, nos ajudaram a suportar os dois anos de guerra com a sua colaboração, com a sua companhia, com as sua histórias, que ouvíamos com muito interesse, e (porque não?) com a sua amizade, e nos viram partir, estou certo, com mágoa, deram-nos certeza que algo fizemos, ou ajudamos a fazer, de útil por elas, o que constitui um marco positivo e muito importante da nossa passagem por terras guineenses.

Gostaria muito de descrever esses momentos do adeus a Cabedú com pormenores, concretizando atitudes, discursos, acções, enfim, produzir um relato que nos transpusesse para aquele dia, vivendo-o com muita realidade. Todavia, isso é, de todo, impossível: aquilo que se passou já se apresenta aos meus olhos dum modo difuso, muito distante no espaço e no tempo.


5 - Conclusão

A mobilização para a guerra de África provocou nos militares reacções de receio, mas também de curiosidade. Os portugueses em geral ainda tinham de África, por altura dos princípios da década de 60, ideias povoadas de mitos e fantasias construídos acerca de populações estranhas, que habitavam lugares infestados de animais selvagens e, portanto, perigosos. Passou a acrescer a essa realidade, em certa medida virtual, a situação de insurreição armada lançada a partir de 1961, essa sim real, que obrigava os militares a enfrentarem um inimigo perigoso, até em certos momentos, sanguinário. Todo este caldo de cultura não ajudava em nada a moral de jovens camponeses e citadinos, que se prepararam o melhor possível, mas, porventura, não o suficiente, para viver e combater no teatro de guerra africano.

No que respeita à Guiné, e concretamente a nós, Companhia 555, pouco a pouco foram-se desconstruindo os clichés, as ideias criadas pelo desconhecimento e, não raras vezes, pela ignorância de quem as difunde e começa-se a ter contacto com uma realidade que não é bem aquela que nos tinham vendido, nem tão pouco a que pensávamos existir. Só o perigo se mantinha e, provavelmente, maior do que julgávamos ser possível. Mas até esse interiorizámos bem, tomando as medidas que se impunham para que os dois anos em contacto com essa realidade não interferissem negativamente no regresso, que se desejava feliz.

O dia-a-dia, o nosso dia-a-dia no quartel do mato passava-se, como ficou amplamente expresso, entre as tarefas da segurança, as operações militares e a rotina dos longos dias. Felizmente que a pressão da guerrilha não nos tirava duma normalidade que construímos e que cultivávamos em cada dia que passava (lembram-se do içar e do arrear da bandeira, com honras militares, como se estivéssemos num quartel normal na Metrópole?), como parecia não acontecer em certos pontos da Guiné.

Assim, os dias cumpriam-se no contacto com as populações, nas idas ao bar, na troca de correspondência com os familiares e a namorada, na prática de algum desporto e até na caça. Tudo isto intervalado de perigos iminentes, de descargas de fogo impiedosas, de morteiradas, de lançamentos de granadas foguete, dum lado e do outro, de tiros de canhão.

Os quartéis do mato e, concretamente, o de Cabedú, reproduziam um pouco, se estivermos atentos, a cultura e modo de ser e estar dos seus ocupantes, ou seja, de nós mesmos. Não se lembram das vacas que pastavam, ali mesmo, junto ao arame farpado? Das galinhas que haveriam de ter um fim triste? Da horta que se cultivava? Enfim, daqueles rituais transportados das nossas aldeias e também cidades para o interior da mata guineense.

Chegados a casa, interrogámo-nos se daquele tempo que passámos na guerra tirámos algo de útil para as nossas vidas futuras. Pondo de parte aquele princípio, que não se discute ou, pelo menos, não se discutia, e que era o termos a certeza do dever cumprido para com a Pátria, não haveria mais nada, além disso? Pessoalmente acho que sim, que beneficiámos com a passagem pela guerra. Senão vejamos: não teremos crescido como homens? Quanto valem as amizades que fizemos, que perduram até ao fim das nossas vidas? O próprio conhecimento de terras muito diferentes da nossa, de culturas estranhas e, por vezes, exóticas, mas dum valor enorme para a nossa própria formação? O contacto com uma flora e uma fauna riquíssimas?. Costumo dizer que ganharam todos os que conseguiram regressar vivos e com saúde; perderam os que tiveram a infelicidade de as coisas para eles não correrem da melhor maneira. Para esses e para aqueles que já não estão entre nós, resta-nos curvar-nos perante a sua memória.


6 - Glossário

Bajuda: rapariga indígena ainda virgem
Bate-estrada: aerograma
Bolanha: terreno plano e alagadiço para cultivar arroz
“Cana”: aguardente de cana-de-açúcar
Chabéu: molho de baga de palmeira para cozinhar frango
“Chuvas“: anos de vida
“Homens-grandes”: chefes de etnia ou de tabanca
“Maçarico”: militar com pouco tempo de guerra
Matacanha: larva africana que se infiltra na pele dos pés
Tabanca: aldeia guineense
Tarrafe: vegetação rasteira junto aos rios ou braços de mar


7 - Mapa da Guiné

Foto 15 > Mapa da Guiné

Norberto Gomes da Costa
Mestre em História
Ex-Fur Mil Inf
CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65

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Nota de CV:

Vd. Postes anteriores de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)

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