quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)

1. Mensagem do Beja Santos, com data de 8 do corrente:

Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário


A Minha Jornada em África
António Reis

Editora Ausência

FUI ENFERMEIRO NO HM 241

Por Beja Santos

António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).

Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:

“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.

Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:

“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.

Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:

“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.

Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:

“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.

Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:

“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.

Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:

“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.

As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...

Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:

“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.

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