domingo, 7 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3181: História de vida (16): A falsa Mariama, mandinga de Bambadinca, a sua filha, e o seu amigo... (Alberto Nascimento)

1. Texto enviado em 6 de Setembro, pelo Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) (1):

Amigo Luís Graça:

Esta história faz parte de várias que apenas se destinam às minhas recordações e, por ser pessoal, nunca tive a intenção de a enviar. A leitura do caso da Cadi e do seu filho (2) fez-me mudar de ideia e associar as possíveis dificuldades vividas pela Mariama e a filha ao longo de todos estes anos, se é que conseguiram resistir...

Não sei se cabem, nas regras da publicação dos postes, algumas observações que faço, mas, embora comedidamente, tinha que as fazer. É o único contributo que me é possível dar face a tanta insensibilidade dos governos da Guiné.

Se entenderes que pode ser publicado, força. Se não, também estás à vontade.

Um Alfa Bravo,

Alberto


2. Mariama,
por Alberto Nascimento


Fim de Novembro ou princípio de Dezembro de 1962, após o destacamento em Piche, primeiros dias em Bambadinca.

Nova terra, novas gentes e, à noite, as visitas à tabanca para os contactos com a população com quem sempre me senti à vontade nas diversas povoações onde estive destacado. De uma das moranças à entrada da tabanca veio um boa noite, que me fez aproximar. Eram duas mulheres ainda jovens com quem acabei por ficar a falar no meu péssimo crioulo. Uma delas foi acudir ao choro de uma criança no interior da casa.

Perguntei o nome à que ficou:
- Mariama... e tu?

Atirei com um nome que sabia que ela não aceitava como verdadeiro.
- Sou Mamadu Baldé - Rimos-nos, falou-me da origem do nome Mamadu e eu acabei por lhe dizer o meu nome verdadeiro.


Guiné > Zona Leste > Bambadinca > CCAÇ 84 (1961/63) > O Sold Cond Auto Alberto Nascimento, em convívio com a população mandinga de Bambadinca.
Foto: © Alberto Nascimento (2008). Direitos reservados.


Passei no dia seguinte pela casa e vi-a acompanhada por uma menina com cerca de um ano, sua filha, e tive oportunidade de ver que a Mariama era uma mulher bonita, fora do comum, mesmo na sua etnia, a Mandinga, cujas mulheres em geral são bonitas.

Passei a parar para a cumprimentar quando ia à aldeia onde já tinha feito amigos e algumas vezes demorei mais a conversar com ela e a brincar com a pequenita que rapidamente se afeiçoou a mim, tanto como eu a ela, depois poucas vezes passei da casa dela onde ficávamos a conversar sobre os costumes da sua etnia, costumes de que ela discordava em algumas práticas, e no que tinha o meu total apoio.

Um dia surpreendeu-me ao dizer com ar comprometido que não se chamava Mariama, que dava este nome a pessoas que não conhecia e com quem não queria muita confiança. Disse-me o nome verdadeiro. Falou da sua vida, do seu casamento contratado pelo pai com um indivíduo que nem sequer era guineense. Mais tarde o marido resolvera voltar para o seu país mas ela, alegando ter de tratar do pai já muito doente, recusou-se a acompanhá-lo. Preocupava-a a atitude que ia ter o irmão que, após a morte do pai, podia, se houvesse outro pretendente, voltar a “vendê-la”.

Foi uma amizade que me ajudou a alhear do que se passava na outra vida a que era obrigado, a das normas militares, das fardas, das armas, da violência que começava a desenhar-se e já se previa para um futuro próximo e do valor ideológico que me mandara para a Guiné.

Os dias passavam lentos na contagem decrescente para o regresso à metrópole e as nossas conversas convergiam sempre para o futuro. Parecia adivinhar que os dias de calma que vivera desde criança tinham acabado e se avizinhavam tempos difíceis, mas ainda estava longe, tal como eu, do que seria a realidade.

Soubera, do muito comentado entre a população, caso do padre Grillo (3), e tinha ouvido falar do que se passara em Samba Silate, em Poindom e também se apercebera dos prisioneiros que os militares tinham feito nestas povoações, sem uma única crítica, somente uma grande preocupação pela segurança e futuro da filha, e sem deixar transparecer simpatia por qualquer das partes já em conflito, ou eu não quis ou não consegui entender...

Alguns dias antes da partida de Bambadinca para Bissau, a Mariama disse-me que tivera conhecimento que um rapaz de quem era amiga, e já não via há bastante tempo, estava preso em Bafatá “por ser contra os brancos”. Pediu-me que se parasse em Bafatá falasse com ele para lhe dar cumprimentos. Não sabia se era possível ter acesso à zona onde estavam os prisioneiros, mas prometi que faria o possível.

No dia da partida fizemos realmente uma paragem em Bafatá e um camarada indicou-me a prisão e até me elucidou, julgo que com verdade, sobre o destino dos presos que tinham um trapo atado ao pescoço, a marca dos que foram considerados mais activos nas acções contra colonialismo e, por conseguinte, sujeitos a maior pressão nos interrogatórios, que podiam determinar o seu fim.

Frente à grade da cela, como não o conhecia, pronunciei o seu nome. Aproximou-se e transmiti-lhe o recado que ouviu com um sorriso e agradeceu. Ele tinha o trapo no pescoço.

Afastei-me e tomámos o caminho de Bissau.

Sentia uma sensação de alívio, não por ter dado o recado, mas por saber que não voltava a Bambadinca e assim não tinha que, olhos nos olhos, dar tão má notícia à Mariama, ou ocultá-la, o que não me faria sentir melhor.

Se ao tal rapaz aconteceu o pior, tal como o camarada de Bafatá havia dito, talvez a Mariama tenha tomado partido.

Ainda trocámos uma carta alguns meses depois da minha chegada a Lisboa, depois, com as alterações que a guerra deve ter provocado na vida daquela povoação e daquela gente, preferi, sem nunca esquecer estas duas amigas nem o tempo passado em Bambadinca, guardar a recordação num daqueles arquivos que todos temos na mente, para só serem consultados em certos momentos.

Este foi o momento.

Escrevi esta história há bastante tempo, mas sempre tive dúvidas do interesse que teria para o blogue, dado relatar uma situação muito pessoal, e certamente por essa razão, nunca a enviaria.

A leitura do poste 3167 – Morreu o Nuninho da Cadi, de paludismo, de abandono (2) – e as palavras dedicadas pelo Luís Graça aos amigos da Cadi, tocaram-me profundamente e mais uma vez dei comigo a pensar na Mariama, na sua filha e nas muitas mulheres e crianças que vão sobrevivendo na Guiné.

Se a guerra as poupou, será que a Mariama conseguiu vencer as muitas doenças que afectam os guineenses e contra as quais só podem contar com o apoio de algumas ONG e instituições religiosas? Será que tem a “sorte” de se encontrar no grupo dos 3% da população que consegue viver mais de 65 anos? A filha terá conseguido chegar à idade adulta ou aconteceu-lhe o mesmo que ao Nuninho?

Perguntas que doem e não se justificariam se os diversos governantes que dirigiram o destino da Guiné desde a independência tivessem como principal preocupação o seu povo, se fossem honestamente e bem geridas as verbas cedidas ao abrigo de acordos de cooperação com a Suécia, Dinamarca, Alemanha, França, Portugal e outros países, verbas destinadas a manter activa a assistência à saúde (paludismo, sono, cegueira da mosca, lepra, etc.), mas que nunca eram utilizadas totalmente para esse fim, sendo em alguns casos simplesmente desperdiçadas, talvez porque era dinheiro que não custava a ganhar.

Como diz o Luís Graça, a “Cadi vai lutar por um país, que sonhou e por que lutou o seu pai. Não tens outro jeito, Cadi”.

A minha solidariedade para com a Cadi e as muitas Cadis da Guiné.

O meu lamento pelo destino do Nuninho e de todos os Nuninhos, diariamente vítimas da insensibilidade e ganância dos adultos que dirigiram e dirigem o destino do povo guineense e não perceberam ainda que as crianças que hoje deixam morrer, seriam o futuro da Guiné. Os governantes de hoje já estão a perder o país de amanhã, a não ser que pretendam que a futura população da Guiné seja no futuro constituída pelos seus descendentes, aqueles que, pelo estatuto dos pais, tiveram direito a tudo o que os outros não tiveram.

Alberto Nascimento
3. Comentário de L.G.:
Decidiste em consciência, e decidiste bem. Podias levar esta história para a cova contigo, quando chegasse a tua vez (que dobres pelo menos o cabo da centena, são os votos que eu te faço...). Mas, não. Quiseste, finalmente, partilhá-lha com os camaradas e amigos da Guiné e os demais leitores do nosso blogue. Fico sensibilizado e agradeço-te.
A nossa história está intrinsecamente ligada à história dos homens e das mulheres da Guiné do nosso tempo, qualquer que tenha sido a sua posição e o seu papel durante os anos da guerra colonial (ou de luta de libertação, na terminologia nacionalista do partido fundado e liderado por Amílcar Cabral). Obrigado também pela solidariedade e sensibilidade. Espero que, a pouco e pouco, o dique da tua resistência ou relutância em falar destas coisas mais pessoais ou intimistas, se já desvanecendo...
_________


Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3044: Estórias avulsas (16): Os cães de Bambadinca (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)

14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3059: Memórias dos lugares ( 9): Bambadinca , 1963 (Alberto Nascimento, CCAÇ 84, 1961/63)
(2) Sobre o caso da Cadi, vd. postes de:
3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça)
3 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3168: Ser solidário (20): Bissau: O triste caso da Cadi e a ajuda extraordinária do Tino, que trabalha na AD (Nuno Rubim)
(3) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro amigo e camarada Alberto Nascimento, muito obrigado por teres partilhado essa tua história que muito me sensibilizou.
Hélder Sousa