quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3262: No 25 de Abril eu estava em... (5): Gadamael e depois Cufar (José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152/73)






Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974 tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC com vista ao cessar fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa). Nas duas fotos de cima, vemos um camarada nosso, o ex-Fur Mil José Manuel Lopes, celebrando a esperança da paz e da reconciliação com os guerrilheiros do PAIGC. O mesmo aconteceu, mais a sul, em Gadamael, conforme o depoimento do José Gonçalves, que hoje vive no Canadá.

Fotos: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem enviada em 24 de Fevereiro de 208, por José Marcelino Gonçalves, ex-Alf Mil Op Especiais, CCAÇ 4152 (Gadamael e Cufar, 1973/74). Vive no Canadá e faz parte da nossa Tabanca Grande desde 24 de Junho de 2008 (*).


Assunto - Mais um tertuliano fã do nosso blogue


Caro camarada Luís:

Apresenta-se o Alferes Miliciano de Operações Especiais, José Gonçalves.

Antes de mais tenho que pedir desculpa pela acentuação e ortografia uma vez que vivo no Canadá (já lá vão 33 anos). O meu teclado não tem acentos e a minha língua agora é o ingles.

Sei que ou te encontras na Guiné ou vais em breve para a Guiné para o Simpósio sobre Guileje. Espero ler o teu parecer sobre este acontecimento.

Tenho vindo a acompanhar este teu/nosso blogue que aprecio muito, e dou os meus parabéns a todos os responsáveis e participantes pela capacidade de reviverem da sua memória com toda a emoção que lhes vai na alma a sua história da Guiné que por vezes é bastante dolorosa.

Também é emocionante a galhardia como muitos dos nossos camaradas prestam homenagem aos seus companheiros de batalha. Pela minha parte decidi desde início esquecer tudo aquilo que para mim foi algo traumático, principalmente pelo esforço e sacrificíos inúteis que todos nós fizemos por uma Pátria que valorizava mais um helicóptero ou um jacto do que um dos seus filhos a morrer no mato. Todos estas experiências e recordações foram esquecidas e raramente contadas porque não via razão para recordar tais experiências. Achando e lendo este blogue muitas coisas me vieram à mente e aqui encontrei coragem de recordar e de uma certa maneira reviver alguns momentos que julgava perdidos. Também pensei que poderia juntar algumas passagens pós- 25 de Abril que ainda não vi contadas.

Eu, como a maioria dos participantes deste blogue, também estive na Guine em Gadamael Porto desde Janeiro de 1974 até Junho do mesmo ano quando o mesmo quartel foi entregue ao PAIGC. De Gadamael a minha companhia, a CCAC 4152, foi para Cufar e aí também entregou o quartel ao PAIGC.


Gadamael: 27 ataques no primeiro mês, Janeiro de 1974...


As minhas experiências em Gadamael, apesar de não serem as mesmas do pessoal que ali esteve em Maio e Junho de 1973, também não foram das melhores tanto no aspecto bélico como no aspecto de condições de vida.

No espacto bélico tivemos 27 ataques (bombardeamentos) no primeiro mês que ali morámos (se se pode dizer que morávamos ali) mas a pontaria do PAIGC não era muito boa nesse tempo, uma vez que era raro alguma granada cair dentro do aquartelamento e quando caía nós respondíamos com tudo o que tinhamos à disposição (3 obuses nessa altura).

Nós sabíamos onde eles também moravam (do outro lado da fronteira) e havia sempre um obus apontado para lá e pronto a disparar. Se a pontaria deles estivesse fraca, nós raramente respondíamos e pensavamos que eles também assim o entendiam. Apesar de não acertarem no quartel, isto tinha um efeito muito grande no abastecimento (que só vinha de Cacine através de LDM durante o dia e quando a maré estava alta). Ora o PAIGC sabia disto e em quase todas as oportunidades de abastecimento eles faziam o seu bombardeamento o que não deixava o abastecimento acontecer.


As granadas de obus e a nossa contabilidade criativa


Na altura em que estive em Gadamael também havia muito controlo sobre a quantidade de granadas de obus utilizadas principalmente em batida de terreno. Estas batidas eram altamente necessárias para que o PAIGC não se sentisse à vontade na nossa zona. Nós sempre fizemos batidas, mas fazíamos uma contabilidade muito criativa. No relatório dos bombardeamentos contávamos as granadas de resposta (O que muitas vezes não acontecia e se ripostávamos contávamos mais granadas do que as utilizadas) e depois usávamos essas granadas nas batidas. Só o exército português poderia fazer guerra desta maneira.


Fominha, muita fominha: "Comeremos cães assim que os gatos se acabarem"


A falta de mantimentos ia cada vez aumentando e tive bastante problemas (quando estava a comandar a companhia devido à ausência do capitão que tinha ido de ferias) porque os soldados fizeram uma demonstração contra as condições alimentares pois só tínhamos arroz e salsichas para cozinhar.

Lembro-me que uma vez o cozinheiro improvisou e fez arroz de tomate com ketchup que ainda havia, pois não havia hamburgers para o utilizar mas o arroz estava intragável. Foi-me dito que alguns soldados tinham começado a caçar gatos e a fazer petiscos com os mesmos.

Foi desta forma que a minha companhia era conhecida em Bissau pelo pessoal de secretaria como a "companhia dos Gatos”, caso que constatei quando fiz a liquidação da mesma. A razão desta alcunha é que eu tinha mandado um telegrama para Bissau com a autorização do comandante do COP 5 (com conhecimento geral) que dizia mais ou menos isto:

“Mantimentos estão-se a acabar. Pessoal presentemente comendo gatos o que também se está esgotando. Comeremos cães assim que os gatos se acabarem.”

As condições de vida também tinham muito a desejar no que respeita a acomodações que nos foram dadas (7 meses depois do desastre de Guileje): estavam pacialmente destruídas e a primeira coisa que tivemos que fazer foi reconstrui-las para podermos pôr um tecto que nos protegesse das chuvas que viriam em breve.

Granadas de bazuca que faziam... pluff!!!

A companhia que fomos render tinha feito algo mas tinham-se concentrado principalmente na construção de abrigos e valas que agora havia por todo o lado. O quartel ainda estava repleto de granadas inimigas que não tinham rebentado e ali se encontravam apropriadamente marcadas com um pau espetado no chão. Algumas destas a poucos metros do paiol de munições (por vezes havia sorte).

No que respeita a material bélico também estavamos muito mal. Eu lembro-me de ter que pedir granadas emprestadas a outro pelotão porque não havia o suficiente para podermos is fazer patrulhas. A companhia anterior à nossa tinha distribuido rockets de bazooka por certas zonas estratégicas para defender certas áreas através de bazooka.

A aparência destes rockets não era da minha confiança e resolvi um dia ir testar umas quantas para verificar se elas estavam funcionais e também para treinar o atirador de bazooka. Fomos para o cais e eu disse ao bazuqueiro para atirar uns quantos rockets para o rio em direcção ao rio Cacine que se via do cais. Qual foi a minha aflição quando o rocket não disparou totalmente e ficou ardendo dentro do tubo e o bazuqueiro a gritar e querendo atirar a bazooka para o chão e fugir. Tive que lhe dar um grito e ordem para se manter de pé com a bazooka apontada para o rio. Ele assim o fez mesmo tremendo como uma vara verde e, passado uns segundos, o rocket ardeu bem e saiu do cano, caindo aí a 50 metros em frente. Ao mesmo tempo começaamos a ouvir rebentamentos, o que era mais um ataque. Fui participar o acontecido ao comandante e a resposta foi que essas eram os únicos rockets que tínhamos.

Passado um mês em Gadamael fui ferido (em acidente com um canhão sem recuo nosso, uma outra estória para contar) e passei quase 2 meses em Bissau a recuperar.

Enfim há muitas estorias para contar como todos nós as tivemos mas a mais interessante é a que conto a seguir.

Maio de 1974: Apresenta-se o senhor comissário político

Era em principio de Maio de 1974 pouco depois do 25 de Abril . Estava na messe de oficiais a beber o meu whisky quando o barman me diz que estava um preto a querer falar com o comandante. Eu fui ver o que era e deparo com um indivíduo, desconhecido, bem vestido e com muita cortesia me pediu para falar com o comandante. Perguntei-lhe quem era e o que queria do comandante. Para minha surpresa disse-me que era o comissário político do PAIGC para a zona de Gadamael e que queria falar com o comandante sobre o 25 de Abril. Fiquei de boca aberta, como é de calcular, e mandei-o entrar e pedi para chamarem o comandante.

O comandante chegou (o nome dele apagou-se da minha memória mas era um capitão tenente fuzileiro especial) e perguntou-lhe se tinha vindo sozinho. O comissário politico disse-lhe que não e que tinha vindo com 2 pelotões e que estavam escondidos perto do campo de aviação. O comandante disse-lhe que o pessoal do PAIGC não podia ficar nesse local e ou se retirava ou se apresentava.

O comissário então dirigiu-se para o mato e começou a falar em voz alta e começaram a aparecer soldados do PAIGC vindos da mata, armados até aos dentes. O comandante então disse-lhes que não permitia que ficassem ali armados, e que para entrarem tinham que nos entregar as armas. Qual não foi o meu espanto quando eles disseram que sim. Nós pedimos a um escriturário para fazer a escrita e começamos a recolher as armas.

Eles entraram e foram conviver com o pessoal que estava do "nosso lado”. Beberam e comeram e nós conversámos com o comissario, depois fomos apresentá-lo ao régulo e mostrámos-lhe o aquartelamento e a tabanca. Depois foi a vez de lhes entregar as armas para estes se irem embora para o outro lado da fronteira . Ouve pequenos desacordos porque alguns deles pensavam que tinham entregue mais munições do que recebiam mas como já estavam bêbedos a maior parte deles (pois os nossos soldados se tinham encarregado disso) e com a comando deles tudo se resolveu amigalvelmente.

Visita de cortesia dos nossos oficiais a Kandiafara, na Guiné-Conacri

Tive outra surpresa quando estes nos convidaram para irmos visitar o aquatelamento deles, em Kandiafara. Eu decidi não ir pois o meu treino de ranger fez-me um pouco incrédulo de tudo o que se estava a passar mas os meus camaradas foram. 

O que me contaram foi que quando passaram a fronteira as autoridades da Guiné Conacri tinham mandado que o PAIGC entregasse os portugueses que tinham passado a fronteira. A resposta do PAIGC foi que não o fariam porque eram convidados do PAIGC e que os devolveriam ao seu aquartelamento e caso a Guiné Conacri os quisesse prender teria que os ir buscar a Gadamael Porto. Claro que nunca vieram.

Depois deste incidente tivemos vários encontros todos eles em Gadamael Porto onde o PAIGC já vinha de Unimog, de marca russa. Nesta altura as negociações em Londres não estavam a correr muito bem e houve alturas onde nós pensámos que teríamos que voltar a lutar outra vez.

Tínhamos decidido entre nós que avisaríamos e daríamos a uns e outros 3 dias antes de reiniciar as hostilidades. Tudo isto foi decidido na messe de oficiais em Gadamael Porto entre uns bons copos de whisky. No pós-25 de Abril fomos militares e também diplomatas pois estávamos em contacto direto com o PAIGC. Disto não tenho a certeza pois os nomes da maior parte das pessoas me escapam, mas lembro-me de um dos dirigentes do PAIGC que veio sempre à paisana e que me parece muito com o Nino Vieira mas não posso afirmar pois nessa altura eu não tinha absolutamente ideia nenhuma de quem era o Nino Vieira.

Retirada de Gadamael sob protecção do... PAIGC

Também tivemos problemas com as milicias porque estes se voltaram contra nós (o que não é de admirar pois nós basicamente os abandonámos à sua sorte) e tivemos que ter protecçao do PAIGC quando nos retirámos de Gadamael. O mesmo não aconteceu em Cufar onde não houve problemas na retirada..

Por agora já chega de estórias e espero ter contribuido com algum conhecimento. Até agora não compartilhado com o blogue.

Se por acaso necessitares de mais alguma informação sobre o período em que vivi em Gadamael ou até fotografias do encontro com o PAIGC eu posso mandar.

Adeus e bom simpósio

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Gonçalves:

O teu texto estava meio esquecido, no nosso blogue, à espera de uma alma caridosa que o corrigisse. Infelizmente, como tu sabes, não temos profissionais, a tempo inteiro, a trabalhar no blogue. Somos todos voluntários e... amadores. Portanto, começo por te pedir desculpa, a ti e aos nossos amigos e camaradas da Guiné, por este hiato de tempo, excessivamente longo, entre o envio da tua mensagem e a sua publicação.

Enfim, já tinhas sido apresentado ao pessoal da Tabanca Grande (*). A tua presença honra-nos e enriquece-nos. Não és o único camarada que vive e trabalha no Canadá, de qualquer modo és mais um digno representante dos portugueses da diáspora (que se estima sejam mais de 5 milhões, dos quais não sabemos, infelizmente, quantos estiveram na Guerra do Ultramnar, e em particular na Guiné). Faz o que puderes por divulgar o nosso blogue e o nosso projecto de reunir os camaradas da Guiné, à volta das nossas vivências e memórias.

Gostei muito de ler o teu depoimento. O que tu contas, passou-se um pouco por toda a parte, nos nossos aquartelamentos, de norte a sul, de leste a oeste. Infelizmente, houve vencidos e vencedores, entre os guineenses, e não conseguimos acautelar devidamente os direitos dos homens que combateram do nosso lado (milícias, militares do recrutamento da província, tropas especiais...). Houve momentos altos e baixos neste processo. Não vamos fazer agora juízos de valor. Nem muito menos recriminar-nos uns aos outros. Interessam-nos reconstituir os factos, organizá-los, analisá-los, divulgá-los, contar como é que se fez essa transição (e depois a entrega dos aquartelamentos) entre as duas forças em presença, o PAIGC e as NT, etc. Como tu muito bem dizes, tivemos que ser soldados e diplomatas... 

Afinal de contas, a guerra é conflito entre duas partes. E geralmente nunca acaba com a aniquilação total ou a derrota, pura e simples, de uma das partes. Acaba em negociação, tarefa reservada aos políticos, Curiosamente, foi um general quem disse que a guerra é a continuação da política de Estado por outros meios... Faz-se a guerra, muitas vezes para melhorar, simplesmente, a capacidade de negociação de uma das partes... Temos que perceber o lado sociológico e estratégico da guerra como conflito... Foi isto, de resto, que se passou na Guiné... Mas tu estavas lá, no 25 de Abril de 1974, e eu não... Tens outra autoridade para falar...

Oxalá o teu depoimento tenha o mérito de pôr o resto da malta, do teu tempo, a falar deste tema: Onde é que estavam no 25 de Abril, e como é que foram os últimos dias de guerra e os primeiros dias de paz (**)...
 
Obrigado pelo teu relato objectivo, sincero e asssertivo, o que não te impediu de o enriquecer com observações bem humoradas. Se puderes, manda-nos imagens digitalizadas desse tempo, em Gadamael e depois Cufar. Material desse não abunda, e é pena que se vá perdendo com o tempo...

Boa saúde e bom trabalho para ti e para a tua família.

1 comentário:

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas: Genial, simplesmente genial, em termos de eficácia comunicacional, essa mensagem enviada aos senhores de Bissau: "Comeremos cães assim que os gatos se acabarem"!... Parabéns ao José Gonçalves e à restante malta da "Companhia dos Gatos", que esteve em Gadamael, entre Janeiro e Junho de 1974... Eles bem mereciam o prémio do humor em tempo de guerra... O Jorge Cabral adoraria tê-los conhecido, ao vivo... E essa de embebedar os gajos do PAIGC e roubar-lhes munições, também é de antologia. Vocês eram melhores que o Raul Solnado na guerra de 14... LG