domingo, 12 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3298: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte II) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

1. Continuação do trabalho do nosso camarada Carlos Silva, ex-Fur Mil At Armas Pesadas da CCAÇ 2548, Jumbembem, 1969/71, baseado numa brochura do seu amigo e camarada Gabriel Moura, publicado no seu SITE http:/www.carlosilva-guine.com/(1)


Ataque ao Aquartelamento de TITE

6 - Ataque a Tite e período de guerra até o nosso embarque de regresso à Metrópole

6.1 - Descrição do ataque a Tite 23-01-1963


Quando eu vi os dois primeiros pretos a surgir, lá em baixo, vindos do mato, correndo em direcção ao cavalo de frisa, logo seguidos de muitos mais, só tive tempo de dar um "grito" em crioulo: "Jubi onde bó vai "?!...[tu onde vais]

No mesmo instante, atirei-me para o chão, quando do mato foram disparadas rajadas de metralhadora, na minha direcção, fazendo ricochete em vários pontos do caminho, levantando poeira, sem que nenhuma das balas das rajadas das metralhadoras me acertasse, [talvez, porque o ângulo do meu corpo, no chão, não fosse fácil para os atiradores e fizesse que os seus disparos errassem o alvo].

Nestes curtíssimos instantes, ainda acrescentei: "bó pára... gósse "! [pára já]. Este grito para os atacantes foi, juntamente com as rajadas que comecei a disparar contra eles, a " força que os paralisou "...].

Apertei, efectivamente o gatilho da metralhadora G3 e comecei a disparar, em direcção a uma pequena multidão de pretos que começou a rastejar para entrar no aquartelamento. Outros, os da frente, os que mais se aproximaram do cavalo de frisa, ainda conseguiram movê-lo e entrar no aquartelamento, indo pela parada, numa grande confusão, pelo medo que as rajadas da minha metralhadora estava a causar juntamente com as deles para mim.

Efectivamente a chama lançada, pela saída dos projectéis e a pouca experiência [dos atacantes e se calhar também, da minha] fez com que uma parte, se mantivesse no chão a rastejar, voltando para trás, mas outros avançavam para ultrapassar os arames farpados do aquartelamento e entrarem!...

De qualquer modo, eu também não conseguia fazer pontaria e os alvos eram difíceis, não sabendo quantos já tinha abatido, ou sequer ferido?...

Nestes minutos de início, todas as reacções do interior do aquartelamento, perante os atacantes que conseguiram entrar no aquartelamento foi lento e há medida que cada um dos militares ia acordando e saltava da " tarimba " [cama], em cuecas, para ver o que se passava.

Uns pensavam que era mais um dos casos " banais " da tentativa de fuga de um preto da "cerca " [prisão do aquartelamento] e que o militar de guarda à prisão o tinha abatido ou disparado para o intimidar a não fugir. Estas situações faziam com que, sempre que se ouvissem tiros ou até rajadas, já ninguém se punha a pé para ver e normalmente, a exclamação era: "Filho da p... que me acordaste" - " mais um que não faz mal a ninguém..." ou expressões próximas, conforme a interpretação e o aborrecimento de cada.

Por estas e outras razões, a maior parte dos militares, quer soldados ou mais graduados, todos em geral [chateados com este baralho], lá vieram cá para fora das "casernas" ver o que se passava. Salvo os colegas da "casa da guarda", talvez imbuídos pelo "subconsciente" do dever a cumprir, pois estavam de serviço e guarda, tendo as metralhadoras à mão, o instinto os impeliu para lançar mão da arma e, com ela, vir cá para fora, mais rapidamente se apercebendo do que se passava.

O Zeferino foi, pode dizer-se, o primeiro a entender e a começar a disparar, após quase 15 minutos de eu ter sofrido as primeiras rajadas de metralhadoras e porque eu me fartei de gritar a dizer que era um ataque. Ele que era considerado enrrascadinho, como "o Francisco sarapulho" [fartava-se de o amolar com estas e outras coisas da confiança de vizinho e amigo de Rio Tinto], lá começou, também, a descarregar os carregadores em direcção aos pretos que corriam de um lado para o outro, com as catanas e outros instrumentos mais ou menos manuais, pois as metralhadoras, as espingardas e as pistolas eram utilizadas pelos elementos do ataque, mais responsáveis, que estavam na retaguarda para " proteger os incumbidos do ataque e entrada no aquartelamento ".

A cada minuto que se passava, a confusão era maior. Os nossos camaradas naquela grande confusão, de uns a sair pelos estreitos corredores entre as camas, umas por cima das outras, que só cabia uma pessoa, se o de cima descia sem reparar no de baixo, caía em cima dele, ainda mais com as luzes apagadas, lá conseguiam ir buscar as armas às casernas [descarregadas, por vezes, por ordem "superior", sem algumas peças para evitar o roubo ou apropriação do "inimigo" e a sua utilização]. Deu, como era de esperar, uma grande "barraca"; pondo, os militares uns contra outros, com as casernas às escuras, uns com armas junto das camas ou nos armeiros"atrás do cu à mão esquerda", como se costuma dizer; o nervosismo aos montes, medo "até dar com o pau", a falta de experiência e alguns dos colegas a berrar feridos com estilhaços de granadas e furos de balas, ilustrava bem o cenário que se instalou. Aliava-se a isto tudo, o estrondo das granadas do inimigo e das minhas [apenas duas, pois só nos autorizavam a andar com duas granadas em serviço] da metralhadora que disparou até ficar sem munições, dos berros e gritos dos terroristas, [feridos e mortos] marcando aquele cenário dantesco em noite escura, acentuado ainda pela iluminação dos holofotes do aquartelamento, a que milhões e milhões de insectos e morcegos que giravam em voltas e reviravoltas, davam uma cor prateada escura, no efeito do corte brilhante das suas cores, nos focos das luzes, do susto causado pelos intrusos ao seu habitual bailado de um ritual, quase sempre mortal!...

Eu já não tinha mais munições, já tinha descarregado os dois cartuchos que era obrigado a ser portador, só me restando a G3 [vazia] e o punhal à cinta para me defender!!

Mas, o mal não era só o que vinha do mato!! O perigo passava a ser, talvez, mais o que vinha de dentro do aquartelamento, do que de fora, pois todos os militares que a pouco e pouco iam começando a reagir de metralhadoras, pistolas ou outras armas de fogo, logo que vissem vultos escuros ou não, no escuro, " todos os gatos são pardos ", atiravam para matar.

Como tinha rastejado pelo chão em direcção do arame farpado do aquartelamento, com a sombra das árvores que bordejavam a rua onde eu estava e a caserna da casa da guarda, "protegendo-me " um pouco do alvo dos atacantes que já não distinguiam também o meu corpo que já não estava a ser batido pela luz directa dos holofotes do aquartelamento, " rastejava como um sapo " na poeira da rua...

Com toda aquela confusão e indisciplina de defesa, os meus maiores inimigos passaram a ser os meus colegas que de uma forma ou de outra, viam que um vulto rastejava no caminho em direcção ao aquartelamento e, como na maior parte deles, os olhos ainda se " mantinham fechados " toca a mandar rajadas para lá.

Era uma diabólica situação, com os projécteis a bater junto de mim, não tinha outra alternativa se não, como se diz " meter o focinho pelo chão abaixo " para que nenhum me acertasse.

A minha preocupação era sair dali. Por um lado, fugir a que um atacante me "esquartejasse em picadinho " com a catana ou me cravasse de balas e, por outro lado, fugir pelo medo e a certeza de ser morto pelos meus colegas que cada vez iam" afinando mais a pontaria " [abrindo as pestaninhas do sono que não os largava, mesmo com aquela confusão toda...que o digam os meus camaradas...se tiverem coragem para isso, pois o tempo vai criando muitas e novas formas... de ver e rever o passado]. Felizmente, para mim, que eles, continuavam a tremer como "varas verdes" e os tiros saíam para a direcção que calhava. Por sorte, nenhum me acertou!

Como se diz, foi um " milagre extraordinário ", não havia qualquer dúvida!

Como sair dali?!.

Se me levantava, para correr para dentro do aquartelamento, de onde eu me encontrava até à "porta de armas " eram 30 metros, e, mais uns 10 metros até me conseguir colocar atrás das casernas, seria imediatamente morto. Para os meus camaradas que se iam inteirando do que de facto se tratava de um ataque terrorista, eu, no escuro, " era um preto " que eles matariam com todo o prazer, logo que eu tentasse entrar, pois ninguém estava em condições de avaliar, nem ver fosse o que fosse!

Os terroristas, esses iriam pagar-se da factura pelo mal que lhes fizera [involuntariamente] diga-se: moral, militar e tudo o resto.

Evitei que eles entrassem no aquartelamento e tomassem conta de todo o armamento, libertassem os prisioneiros da prisão, matassem todos os militares que se lhes opusessem e, com todos equipamentos, carros, armas, etc, marchassem para tomar conta do aquartelamento mais próximo: Fulacunda e depois Buba, [ainda na mesma noite] e, certamente, toda a Guiné, na medida em que o sector sul ficaria sob o seu controlo. O norte, não poderia lutar à força bélica de surpresa de ataques dos nacionalistas do PAIGC que, provavelmente, tomariam conta de Bissau, obrigando a abdicar o Quartel-General Português em Bissau [seriam todas estas e outras as intenções dos nacionalistas]?

Fui rastejando, de bocadinho em bocadinho, até me aproximar do arame farpado, com a metralhadora [como já disse, sem qualquer munição, pois as tinha gasto para evitar que os atacantes entrassem no aquartelamento].

Aproveitando a G3, meti-a por debaixo do arame farpado, nas primeiras fieiras de baixo e empurrando, consegui um pequeno espaço que me permitiu rastejar por debaixo, embora tendo ficado muito picado pelos arames farpados, consegui passar para o lado de dentro do aquartelamento.

Esta tentativa é que provocou o bom e o bonito, por parte dos meus colegas, onde alguns já se tinham apercebido dos meus gritos e berros na tentativa de " furar " pelo arame farpado para dentro do aquartelamento, principalmente, os meus camaradas de serviço daquela noite, que se começaram a aperceber que um de nós ainda estava lá fora. Como eu gritava, eles começaram a parar o fogo, embora alguns "chicos espertos ", principalmente graduados, na sua maior parte, desarmados a ver o espectáculo "felizmente, para mim" que eles gritavam: Olha ali, mais um terrorista a entrar, "fodei-o com um tiro nos cornos", etc, etc, enquanto alguns colegas lá com a sua arma pessoal ou a metralhadora, atiravam para ver se eu era ou não um terrorista?!..

Também aqui, a minha sorte ou o destino, ou a protecção divina, estava pelo meu lado, pois alguns deles nem dar um tiro sabiam e, se sabiam, tinham uma pontaria que " qualquer mosquito " era bem capaz de morrer assustado com a estalidos dos tiros.

O mesmo se podia considerar dos meus colegas, uns ainda deitados, [bem metidos pelo meio do capim ... masturbando-se, num sonho lindo, agarrados às tetas de uma bajuda ...] outros de pé, com o olho esquerdo a espreitar pela fenda da janela das casernas, mal conseguindo pôr as suas " metralhadoras " em funcionamento, na sua maior parte, nem sabiam bem como é que aquela coisa acertava de dia, como é que eles acertavam de noite e com aquela confusão toda?

Mas as balas andavam pelo chão e por todos os lados, pois estamos a falar de cento e tal militares, ainda que, para minha sorte, só uma percentagem pequena, é que estava a fazer fogo com as armas, já que, às escuras, poucos conseguiam ir às casernas buscar as armas e pô-las prontas a fazer fogo.

Parece caricato, mas não é!?.

O Comandante Pina aparece na parada, em vez de cuecas, em trusses, a perguntar: quem tinha deixado fugir os pretos?!. E, como ele pensava que eles, faziam tudo que ele mandasse, começou por os chamar: " bó bem cá!,... gósse, gósse!,..." - " Tua anda cá, depressa..." entre outras expressões e, para dar um ar de mais autoridade, até acendeu o cachimbo " de tabaco à preto ".

O Tenente Amilcar, que nós apelidamos de "tenente brinca", bem escondidinho atrás de um bidão vazio [ou melhor cheio de terra a fazer de floreira] perguntava: o que é que os pretos andavam a fazer até aquela hora?!..

Foram tantas e tantas as peripécias que cada um irá relatar a seu tempo...

O que refere o Armando Silva, no seu caderno Diário 1961/62/63

Noite de 22 para 23 - Estava de guarda no 2º turno, tinha-me deitado e despertei pelo detonar de granadas e pelas consecutivas rajadas que nos alvejavam. No silêncio que envolve a noite, alguém se aproxima do nosso aquartelamento, no intuito de nos chacinar e apoderar das armas para continuar os actos terroristas que abundam nas nossas Áfricas. Talvez, pela facilidade que apresentava a nossa guarnição, os ambiciosos se meteram a tal acto. Realmente era diminuta a força de segurança, composta apenas por três elementos atrás de uma " concertina " de arame farpado para a boa guarda de um Batalhão. [aqui, o Armando, está errado, pois guarda da frente do aquartelamento - um dos três elementos - era obrigado a fazer vigia fora do arame farpado do aquartelamento - concertina - conforme eu já referi.] Mesmo assim, com a vantagem surpresa, sabendo de antemão os nossos usos e costumes, com força quase igual à nossa, foram derrotados. Às duas horas menos um quarto, [1h e 45m] elementos terroristas protegidos pelas sombras, aproximaram-se. A sentinela ao notar estes movimentos, faz fogo provocando o alarme. Chovem em cima dele as rajadas inimigas que por milagre não o atingiram..."

O espectáculo tinha a montagem de várias cenas: aquela que era protagonizada pelos nacionalistas do PAIGC, partido que comandava o ataque armado ao aquartelamento de Tite; os militares portugueses, na sua representação de defesa dos altos valores da Pátria em terras de Ultramar e todo o reino animal, vegetal e mineral que " ria às gargalhadas com esta cow-boyada " montada por mãos de artista sublime e capaz de dotar estas cenas dantescas/grotescas com um dramatismo real, vivido intensamente por autores chamados ao palco, sem sequer saberem o seu verdadeiro papel a desempenhar, salvo, como de costume, alguns poucos artistas convidados, [patentes] "encenadores", "coreógrafos", etc, pois os seus autores, estavam bem longe e bem confiantes na sublime representação desta "paródia ".

Mas, como qualquer outra paródia ou comédia, o seu fim pode ser trágico/cómico. O que não deixa de ser dramático é o sangue derramado que, para os "espectadores " pode ser a fingir, mas para os artistas que tiveram o azar de serem feridos ou mortos com estilhaços de granada e de balas é bem real. Será que comparável ao sofrimento do menino bom, que se espatifou com a mota em alta velocidade, numa demonstração da sua "habilidade" ou, da madame, que no seu leito de veludo sofre com as dores da pedra na bexiga, ou" outras dores ", ou da matrona que chora lágrimas de sangue [ou de crocodilo] ao ver o seu "lulu" que, por vezes, não passa de um rafeiro tosquiado pelo "costureiro de alta roda", atropelado e com as tripas de fora, estendido em frente à moradia ou chalé e tantas e tantas outras cenas de grande "sofrimento e dor" ?!

E nós? O Daniel "sacristão" que ficou ferido na perna, o Raimundo e todos os outros, podem dizer qual o sofrimento, causado por aquele momento vivido sob o medo e a confusão da uma situação nunca por eles vivida, no meio do desespero, abandonados à sua sorte e da família, como bichos, no meio do mato, qual jardim zoológico humano, implantado por um sistema que teimava em manter este espectáculo de triste encenação...

E o Chamusca que teve o maior azar ao ser atingido e morto no tiroteio?

E os atacantes que ficaram feridos e mortos? Com os pés esfacelados, com os braços decepados, com a "barriga" perfurada, esventrados no corpo e nos seus direitos de viverem e serem livres.

E o movimento feminino onde estava para minimizar a dor e o sofrimento dos "seus afilhados", "protegidos" e jovens militares?

O que foi feito dos discursos inflamados de políticos com os punhos bem cerrados para mostrarem a sua força de apoio e incentivo na luta patriótica de defesa, contra os terroristas, dos sagrados direitos?

Onde estavam? [estava lá o Padre Rego, que, lá conseguiu vestir os calções de caqui até ao joelho e vir dar a sua opinião de desagrado por aquele" disparate de um ataque terrorista àquela hora!", os bispos, padres, "sacristãos" [estava lá um e coitado, levou com os estilhaços de uma granada na perna e na barriga - o Daniel] e todos os religiosos, que, lá longe, bem longe, com missas, "avé marias", "padre nossos" e muita "comunhão", apoiavam os nossos bravos mancebos no cumprimento do seu dever patriótico e, podiam até "partir desta para melhor" que já estavam encomendadas as suas almas para entrarem, directamente, no paraíso, sem terem aquela chatice toda de " prestar contas " que é de facto a pior coisa que podiam inventar: prestação de contas!?

Quem não tem medo, das burrices e maldades deste mundo ?!

Em todas as guerras, lá apareciam os capelães para dar apoio moral cristão e sufragar os últimos momentos de sofrimento dos militares do desapego da vida para a morte, salvando-os nesses momentos, pelo perdão e arrependimento, de caírem na fogueira do inferno [logo por azar, coitado do Veríssimo Godinho, [1] da Chamusca, que não teve tempo de se salvar, se calhar, pois ele nem era mau moço, era ribatejano, gordo, bonacheirão, comilão, amigo do amigo ...]

Mas como se diz: "estávamos no sítio errado e na hora errada", que culpa tinham esses outros?

Bem vistas as coisas, eles até acharam que se estivessem no nosso lugar tudo teria sido diferente. O que com uma "vassourada" no lombo daquela "pretalhada" e um par de bofetadas, eles nem saberiam "de que terra eram"! Vejam o caso da Padeira de Aljubarrota, só ela com uma pá deu cabo de 20 Castelhanos, o da Maria da Fonte, e de tantas outras mulheres de" pêlo na venta " que puxaram do seu tamanco, sapato, ou até chinelo e cascavam com ele naqueles toutiços, meios rapados, de riscas na carapinha, que eles até ficavam vesgos!?

Mas, que diabo! Não podiam ser mulheres, os militares eram homens de "barba rija" [haviam algumas mulheres, dos militares casados, que as tinham levado com eles, mas apenas serviam na sua missão matrimonial].

Mas nós lá, só éramos homens com barba ou de cara rapada que, diga-se de passagem pouco faltou para dar de "mão beijada" o aquartelamento aos "terroristas"...!!!

Que pouca-vergonha diziam os senhores de Bissau e até outros militares noutros aquartelamentos pelo mato fora!..

Que pena não ser connosco, diziam muitos e até se ofereciam voluntários para "fazer e desfazer" aquela pouca-vergonha!

Foi de facto uma página negra da nossa história! Por vezes dou comigo a pensar: esta página, de tanto negra que foi, por isso arrancaram-na da " história " dos nossos grandes e gloriosos Lusitanos. Podem verificar que no Arquivo Histórico Militar, a referência a este episódio, passa quase ao lado, estão a perceber o trocadilho?!

[1]- Veríssimo Godinho Ramos, natural do lugar e freguesia de Vale de Cavalos, concelho da Chamusca.
Primeiro morto em combate na Guiné e o primeiro que consta na relação do livro:
In, Estado Maior do Exército - Comissão para o Estudo das Campanhas de Áfica [1961-1974 ]
Resenha Histórico-Miltar das Campanhas de África [1961-1974]
8º Volume - Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro 1, 1ª edição, Lisboa 2001, pág. 23

Mas aconteceu comigo, que aliás seria o primeiro militar a ser morto no primeiro ataque à Guiné, pelas forças nacionalistas... Só que o azar deles, a sorte minha e de todos os militares portugueses ou a sorte deles, em não conseguirem os seus intentos, e o azar nosso, veio ditar os acontecimentos que foram reais e cujas consequências não podem ser esquecidas. Como tudo o que a seguir se veio a passar até à nossa saída da Guiné, no regresso à Metrópole, a nossa chegada e as dificuldades extraordinariamente más da vida que, em geral, viemos a ter de enfrentar - choque familiar, trabalho, desinteresse em estruturas políticas, militares, sociais e outras mais, tudo isto um o paradoxo.

Se calhar, o Veríssimo Chamusca foi "chamuscado", não pelas balas dos terroristas, mas pelas rajadas das metralhadoras dos nossos "exímios" atiradores ensonados que carregavam no gatilho, julgando que carregavam nas "tetas de uma bajuda" atirando para tudo o que viam e não viam [esta opinião foi a mais generalizada por nós, pois existiu autópsia, penso eu, portanto foram identificados os projecteis que mataram o nosso amigo Veríssimo!]

Coitado do nosso camarada, lá regressou de "pés juntos" para o seu torrão natal mais cedo do que nós. Pelo menos foi feliz nisto, não teve mais que aguentar todo aquele inferno que se veio a passar, onde as "queimadas" do capim pelos pretos apenas nos chamuscavam o corpo, porque a "alma" e os pensamentos, esses eram queimados por "ferros em brasa", nos procedimentos, atitudes e comportamentos do homem para com o homem!

Muitas feridas não se viam, mas elas eram, por vezes, as que causavam mais dor e nos dominavam, levando, por vezes, a princípios de “coma psicológica e moral ".

É evidente que esta situação, apenas é, por nós os militares, comentada e sabida, pois as estruturas e os responsáveis fizeram vista grossa de tudo. Para esses, não passava de uma situação normal, vista dos seus quartéis-generais, entre leituras e comentários estratégicos e de objectivos de trabalho. Aquele acto não passava de um "acto isolado" que as tropas, na sua grande Mise-en-Scène técnica e táctica iriam resolver "com duas penadas" [tudo isto, e muito mais, alvo de chacota e de risos sádicos, sobre tão pequena banalidade, lá para o Mato de Tite!?].

Só que, o que veio a seguir, e por muitos anos seguintes ao ataque ao aquartelamento de Tite, e que vitimou e fez sofrer milhares de militares na Guiné, justifica, plenamente, aquilo por que todos aqueles " macacos " que riram e desdenharam do nosso sofrimento, e que ainda hoje mentem com todos os dentes que têm na boca que não, que logo viram o que se ia passar. Mas é pura mentira, pois mesmo no local, o comandante Pina, o capitão Barreiros, o capitão Morgado e muitos oficiais com alguma responsabilidade nos " cartórios " achavam que no outro dia, ou até naquela noite, os caçava todos e com um castigo severo, que desse o exemplo forte, ficava tudo resolvido e em " águas de bacalhau ".

Garganta não faltou, depois na sequência dos dias, meses e anos [já após o nosso regresso ao continente] de outros contingentes tiveram na Guiné uma luta de guerrilha muito acima do que as palavras podem descrever ou demonstrar, na intensidade de muitos combates travados entre as tropas portuguesas e os terroristas. Que o diga quem teve de estar no palco de uma emboscada, no palco de um ataque, nas diferentes saídas quer de dia ou de noite, onde a carga emotiva e o sofrimento vivido no meio de um tiroteio, só os próprios podem descrever, à distância do tempo, que não é nada próximo, o que sentiram no momento vivido.

Ataque a Tite

Pés gretados
Mãos pegajosas e sujas pela lama da bolanha de Tite
Onde o arroz era o alimento principal daquela gente
Sofrida, mas amada pelo seu Deus que se erguia esguio e recto
Como palmeira virada para o céu
Cuja arma contra o opressor era a certeza de um dia
Poder pisar a terra dos avós, dos seus avós
Sem medo, nem dúvida de que era deles
Cada tiro saído da G3, disparado por nós
Eram flechas envenenadas que não matavam
Privavam apenas o direito à oração de súplica
Levantada num coro de melodia sofrida e doída na luta pela sobrevivência.

Guiné, 1961/1962/1963
Poesia de Gabriel Moura

Texto do Ten. Mil. V. Gouveia, que alude o ataque a Tite e a problemática nesse período.

Competia-me a mim cifrar ou decifrar as mensagens a enviar ou recebidas [recebi com esse fim uma ligeira explicação dada pelo meu antecessor]. Este trabalho aumentou bastante depois dos primeiros ataques às nossas tropas.

Aliás foi a guerra que quebrou o encanto desta terra, quando em 23 de Janeiro de 1963, houve o primeiro ataque ao quartel de Tite, sede do nosso batalhão.

As saídas nocturnas deixaram de fazer-se e as diurnas eram feitas com mais cuidado.

Não posso esquecer um homem dedicado que me tratou de tudo o que me era necessário: o meu impedido, um soldado nativo de bastante idade que me tratava de tudo com uma dedicação exemplar.

TERCEIRA MISSÃO: UMA COMPANHIA OPERACIONAL

BUBA

Cheguei a Buba no fim de Fevereiro de 1963.

Buba uma pequena tabanca, o quartel instalado junto ao rio Grande de Buba e um campo de aviação junto ao quartel.

Ficava a cerca de trinta quilómetros de Fulacunda e de cinquenta de Bedanda.

Estava aqui instalada uma companhia de intervenção comandada por um capitão, tinha um tenente médico e três alferes milicianos. Havia militares destacados em Aldeia Formosa, Bedanda, Cacine e Gadamael Porto. (...)

Houve, no entanto, uma situação curiosa. Os mantimentos eram pedidos para três semanas [malabarismo?], mas como o mês tinha quatro, a última semana era de fome, com soldados de sentinela, junto ao rio à espera que o barco chegasse.

Valia-nos o poder de improvisação que levou a fazer uma vedação num braço do rio. Quando a maré enchia, os peixes passavam e, quando descia, ficavam à espera que os fossem buscar. Nessa semana comia-se peixe de várias maneira, mas sem qualquer acompanhamento, a não ser algum resto de batatas liofilizadas e margarina derretida a substituir o azeite.

A guerra começava a avançar, embora lentamente e com armas ligeiras. Isto levou a que se blindassem as viaturas com chapas para as proteger dos tiros e as cobrissem com redes para evitar as granadas de mão. Em breve se verificou a ineficácia desta protecção pela impossibilidade de movimentação dos militares, em caso de ataque, e das dificuldades de progressão dos condutores.

Deixou também de se usar o capacete em combate, porque, embora pudesse proteger a cabeça, coarctava bastante a liberdade de movimentos.

0 comandante desta unidade não era de guerras e por isso a vida do quartel passava com certa tranquilidade, sem grandes saídas nem riscos. De vez em quando, porém, vinha ordem superior para cooperar em determinadas operações e então tínhamos que sair. Nestas circunstâncias tive que intervir em duas operações de vários dias [Nova Sintra e Empada], com toda a responsabilidade e riscos próprios. Felizmente, apesar das muitas dificuldades, não tivemos combates directos.

Tudo isto se deveu a um facto extraordinário. O comandante dum batalhão sedeado em Bissau, um tenente coronel presunçoso e pouco honesto [mais conhecido como o Rommel das bolanhas ], pediu ao Comandante Militar que o deixasse ir para o sul, porque ele, num mês [durou dez anos!!!], acabava com a guerra. Instalou-se em Catió, conseguiu uma avioneta para uso quase pessoal e começou a movimentar as tropas em vários sentidos.

Enquanto as tropas se deslocavam por terra ele comandava de avião e, quando o perigo aparentava ter passado, vinha por terra [fortemente protegido] ver o resultado das operações e fazia os relatórios como queria e lhe convinha, normalmente diferentes da realidade.

E apesar das destruições das povoações [habitualmente abandonadas nestas circunstâncias, embora os relatórios mencionassem sempre muitas mortes do inimigo] feitas pelas tropas ou pela força aérea, pouco ou nada conseguiu.

Deste tempo recordo duas grandes operações em que fui obrigado a intervir.

A primeira foi na área de Nova Sintra, localidade no cruzamento da estrada de S. João [próximo de Bolama] para Fulacunda com a estrada de Tite [a treze quilómetros]. (...)

BISSAU

Foi também aqui que sentimos o recrudescer da guerra, acompanhámos a chegada de cada vez mais tropas e fomos sabendo da morte em combate de alguns que pouco tempo antes connosco tinham convivido na messe.

Lembro que o Alferes miliciano de Bedanda, aquele tenente miliciano de S. João, o Alferes miliciano de Gadamael, meu ex-companheiro de estudos, entre outros.

[Trata-se do ataque que foi alvo a Berliet – ver foto 56 do Major Amilcar]

A intensificação dos combates, quer nos quartéis, quer fora deles, principalmente contra militares recém chegados, tornando, por vezes, a vida destes militares num verdadeiro inferno.

Quando a Companhia regressou a Portugal, em Outubro de 1963, obtive uma licença especial de cerca de um mês de férias. Ao regressar de férias, como não consegui colocação em Bissau, tive que voltar a Bedanda onde cheguei em Dezembro de 1963.

Com o início da guerra e dado que a Guiné era um território pequeno, conseguiram considerar toda a Província zona de guerra [incluindo Bissau onde nunca se ouviu um tiro] e, por esse facto, o vencimento foi aumentado em vinte por cento. Tanto ganhava quem combatia em Bissau com uma caneta como quem expunha a vida todos os dias no mato.

A vida dos militares, em Bissau, era bastante tranquila em nada diferente do que se passava na Metrópole. Cada um tinha o seu trabalho normal e, nos tempos livres, podia deslocar-se facilmente para a cidade, porque havia transportes frequentes em ambos os sentidos. (...)

Também participei no "ronco", numa das manhãs de domingo, com um pelotão cansado, destreinado e de farda coçada. É agradável ver este espectáculo como turista, mas um pouco diferente como actor. Assim, subimos desportivamente a avenida central, precedidos pela charanga militar, e, na praça em frente do Palácio do Governador, aguardámos que terminasse o render da guarda para continuar o espectáculo, avenida abaixo. Dado que esta cerimónia demorou bastante, pensei que era eu que estava em falta para pedir autorização para regressar e dei ordem para o "apresentar armas" que antecedia esse pedido. Eis senão quando, dou conta que me havia antecipado e num expedito desenrascanço gritei para o pelotão: "P'ra baixo"! Houve sorrisos e assobios no local, uma chamada de atenção superior, posteriormente, mas nada que nos tirasse a boa disposição. Levou, no entanto, os senhores do comando a pensar que depois de vinte meses de mato nos estávamos borrifando para os divertimentos dos senhores de Bissau.

6.2 - Algumas situações e questões após o ataque

É evidente que não foram só os momentos de luta que causaram sofrimento, foram muitos e muitos outros que envolvem a vivência no interior e no exterior do aquartelamento e nas saídas do patrulhamento, quer de dia, quer de noite.

Após este ataque todos os combates em que se participou, foram suficientes e não deixaram dúvidas a ninguém o que seria a guerra de guerrilha na Guiné-Bissau. Como diz a expressão "nem era preciso ser-se bruxo" para adivinhar o futuro que esperava às tropas portuguesas, aos nacionalistas e às suas populações.

Mas não foram, concerteza, somente os combates e emboscadas, foram todo um conjunto de situações militares que foram levadas a efeito, cujo desgaste e todo o tipo de pressões sobre nós, causou danos, nalguns casos irreparáveis.

Por exemplo, a ida de um pelotão de urgência a pedido de socorro a uma coluna militar que vinha de S. João para patrulhar a zona de Buba e Fulacunda e, no caminho, uma viatura com cerca de 20 militares foi apanhada por uma carga de "trotil" [explosivos] colocada no chão, projectando a viatura a cerca de 30 metros, ficando curvada pela potência dos explosivos que detonou

[ver foto cedida pelo Major Amilcar dos Anjos].

Nessa viatura, vinha a comandar o "tenente" que, segundo soubemos, terá sido um dos heróis ao "assalto à Pedra Verde em Angola" e acabou por morrer, apesar de ter sido evacuado de Tite, por avioneta, para o hospital central de Bissau.

Alguns dos militares ficaram irreconhecíveis, com ferimentos de tal modo horríveis que nós, que os fomos socorrer e transportar para Tite, dando apoio aos sobreviventes, completamente enlouquecidos e sujeitos a ataques dos terroristas, não eram capazes de o fazer.

A distância em que se encontravam do nosso aquartelamento ainda era de umas dezenas largas de quilómetros e as restantes viaturas que não foram apanhadas pela explosão da mina anti-carro, não tinham condições de continuar uma vez que não se sabiam se havia mais minas colocadas. A nossa missão era bater todo o caminho até lá, fazendo uma inspecção do chão e das margens no sentido de evitar qualquer ataque ou emboscada preparada pelos terroristas.

O barulho da detonação, apesar da hora a que se deu, era já noite, talvez, cerca de 23 horas, foi ouvida em Tite como se de uma coisa próxima se tratasse, quando de facto era a uma distância considerável, tal era a potência de engenho.

Segundo parece, este caso deveu-se a mais um acto de "heroísmo" selvagem derivado do facto de ainda os militares, principalmente os graduados e comandos, entenderem que a guerra era mais o medo dos militares subalternos do que outra coisa!

Mais uma vez eles, os protótipos de conquistadores dos sete mares, terra e ar, [sim, tudo que foi conquistado foi por homens célebres e fortes, com patente, de grande valor e comando ... os outros, a raia miúda, coitada, serviam para carregar as armas e bagagens, mulas de carga e pouco mais ... não há uma única conquista das terras portuguesas, cantadas na "Gesta Lusitana", que aponte ser obra dos "soldados valentes" - lá se coloca esta palavra, porque não suava bem dizer o contrário, na conquista dos Vascos da Gama, dos "Mousinhos de Albuquerque", etc...], [esta questão, foi caricaturada mas penso que, mesmo que eu quisesse, não conseguia dar-lhe a animação que merecia, portanto, vou avançando de forma a que cada um faça a sua caricatura, por defeito e não por excesso, podem crer, se o entenderem fazê-lo], continuavam a negar a verdade e a realidade, sujeitando, criminosamente, pessoas e coisas, ao seu entendimento do comando, obrigando a que militares, como foi o caso deste episódio da mina anti-carro, a fazer um caminho, sem qualquer batida prévia, para detecção de minas; [segundo nos relataram alguns dos sobreviventes], pois, certamente, o "herói de Angola", terra grande, onde o terrorismo era a sério, não ia dar, nem deu, crédito a coisa de "lana-caprina": Terrorismo, na Guiné, deixa-me rir!...Ah!...Ah...

Estes soldados labregos que aqui estão precisam de uma sacudidela para verem como é que é a guerra, com mortes e feridos, lá nos matos de Angola e Moçambique. Aí sim, as coisas eram a sério. Tiros de um lado, tiros do outro; cidades grandes, milhares e milhares de quilómetros de terra. Enfim uma guerra com pés e cabeça, nada do que se poderá comparar àquela "Aldeola" de "Quatro Palhotas" umas dúzias de pretos "armados aos cucos" que nem pegar na enxada sabiam!.. Vianda e mancarra é o que eles precisavam e o resto, com um "ponta pé no cú ", estava feito!...

Bom, o ataque, começava, para alguns graduados mais ponderados e medrosos [medricas] a ter contornos de alguma intenção e, apesar de ter sido frustrado, de que poderia arrastar para algumas sérias dificuldades [principalmente, pensavam alguns militares e grandes patentes, nas suas "belíssimas esposas" e outros familiares e muitos civis com responsabilidade e trabalho de valor em Bissau, que seria uma grande chatice ter de arranjar meios para os evacuar e que não conseguiriam resolver tudo de um momento para o outro; embora, lá no fundo, soubessem que os pretos do PAIGC ou quaisquer outros, não se atreveriam a tocar-lhes, nem que fosse num cabelo! ).

Era o que faltava, aqueles "pés descalços", terem o desplante de lhes tocarem!... Mas, como aquilo lá em Tite [não era muito longe de Bissau, a alguns quilómetros no canal do Geba], lá se resolveu à "vassourada" pelas tropas, "que chegaram a roupa ao pêlo daqueles nacionalistas de um raio", embora que os militares e até o comandante do aquartelamento, merecessem uma boa palmada no traseiro pela pouca e fraca atitude em os deixaram entrar no aquartelamento, [território sagrado a defender sob todos os sacrifícios] e andar por lá a " chapinarem "!... em terras de Portugal !... Isto era de facto, " muito cru para se engolir " por homens bravos e valentes, descendentes dos Afonsos ... Henriques, dos Vascos...da Gama e de outros, não menos valentes !!

Nunca se tinha visto tamanho desplante, umas dúzias de " maltrapilhos " afrontarem as tropas de um Portugal histórico, cheio de valiosos triunfos, por terra e mar, os Lusitanos, os Cruzados, os Combatentes da 1ª Grande Guerra, nas trincheiras das batalhas em França, Alemanha e outras guerras, outras batalhas, como contra os Castelhanos por exemplo... aqui é que se viam os homens morrerem pela Pátria, defendendo, nem que fosse, um "pedacinho de terra"!

Têm alguma dúvida que é uma afronta, pôr em comparação, " forças " com este historial, com aquelas "forças mortais", de tão reduzido valor?

É pedir muito aos líricos cantores da nobre gente lusitana, de "feitos e refeitos", nas grandes obras e por mares nunca antes navegados, cantarem estes "de...feitos" dos militares, lá por terras do Ultramar ?

Quem irá ter o desplante de relevar coisas tão mesquinhas de uma "tropa fandanga", sem a valia doutros tempos? Perde-se a Índia, Angola e Moçambique, ameaçada a Guiné dos cajueiros, das palmeiras esguias que gritam de braços erguidos ao seu Deus Negro; das suas bolanhas sujas e lamacentas, banhadas pelo Geba, do seu capim seco, perdido no infinito da dor do seu povo, criado em palhotas cobertas desse material desfeito de argamassa misturada de suor e de catinga, para a construção do espaço onde geravam e criavam os filhos, os bácoros, as galinhas e as vacas [proíbidas de serem comidas pela religião de Maomé…] e outros bichos e quem nos canta.

Quem irá ter piedade da nossa "fraqueza"?

Quem irá ter piedade por não termos mortos toda aquela "cambada" de pretos mal preparados e atrevidos que beliscavam a honra dos nossos valorosos mortos de outrora?

Era gente que antes quebrar que torcer, matar era uma honra, nem que fosse um indefeso indígena de arco e flecha, de pau ou catana !

O que era preciso era mostrar "valentia" ! para contar lá na terra.

Que importava ser uma mulher, de olhos assustados, com a criança presa pelo pano à cinta ?

O que era preciso era manter este grandioso Portugal de aquém e além-mar! As lutas eram " honestas ", onde os homens deviam matar outros homens em confrontos históricos, quer nas conquistas, quer nas defesas, quer em qualquer outra circunstância!

Voltando ao meu caso.

Como referi, conseguir ultrapassar o arame farpado da frente do aquartelamento, que tinha três fiadas sobrepostas em arco, amarradas e atravessadas pelo arame, tipo ramada, que por sua vez, era amarrado a troncos de palmeiras com um diâmetro de 10 cms e uma altura de cerca de 3 metros e cerca de 50 cms enterrados no chão e distantes de uns para os outros de 3 a 5 metros; o arame farpado, era de uma única fiada em volta, quase em toda a cerca, excepto na frente do aquartelamento. Deveria ter sido para criar uma ideia, a quem passava, de que aquilo estava bem guardado e defendido, pois da parte de trás [ou seja, para o lado do Calino] era apenas um simples arame farpado que, com um pé a carregar para baixo, ficava um espaço que qualquer pessoa passava pelo meio sem rasgar a roupa [que o digam os colegas, Filipe e outros, as vezes que entraram e saíram à noite para dormirem com uma preta ou cabo-verdiana ou para beberem umas cervejas no tasco do João]. Apenas na parte da frente [caminho principal] é que era reforçado e amarrado de tal maneira que de facto, não era possível com o esforço das mãos ou dos pés, arranjar uma abertura [só cortado].

Por isso, eu, numa reacção instintiva, quando empurrei para cima com a metralhadora G3, fazendo de alavanca contra o chão, estava longe de imaginar que iria conseguir uma nesga de espaço junto ao chão, para entrar no aquartelamento.

Com o desespero de sair do fogo cruzado, parecia até que alguém [mão divina] me ajudou, ajudaram a fazer um sulco suficiente para eu " deslizar " o meu corpo rastejando e pressionando contra o solo e por baixo poder entrar dentro do aquartelamento. Foi aqui que eu fui " barbaramente " atacado pelos meus camaradas que, apesar de continuar a gritar, eles faziam um esforço heróico de eliminar aquele " intruso ".

Mal grado para eles e sorte minha que, ao verem a erguer-me a cerca de 10 metros, expondo-me totalmente às rajadas que assobiavam aos meus ouvidos, não conseguiam acertar uma, e " milagre " para mim, consegui que eles, distinguissem a minha pessoa.

O Zeferino, o Santos, o Armando, o Alfredo, o Zé e os demais que estavam "entrincheirados" naquela parte do aquartelamento, quase pareciam que tinham ficado paralisados com a minha aparição; reagindo uns após os outros, abraçando-me como se eu tivesse " ressuscitado ".

Foram segundos de uma amplitude extraordinária e indescritível, impossível de retratar por palavras, naquele momento de difícil controlo emocional.

Foi assim que, com o andamento do tempo, todos, aos poucos, foram " acordando " e tomando consciência do que se estava a passar, naquela noite, onde as ordens de comando não existiam, "o homem de trousses" continuavam a não acreditar de que era um ataque e os seus mais directos colaboradores: o capitão Barreiros e o capitão Morgado não estavam em melhores condições de ajuizar a situação real, pensando que aquilo não passava de uma "encenação" abusiva de alguns pretos que precisavam era de umas boas chicotadas no lombo ou um par de bofetadas no "focinho" para apreenderem a respeitar os "galões" [como faziam aos "seus soldados", alguns oficiais do exército, resolvendo muitas contendas de "in"disciplina].

Foram curtos segundos, aqueles que mediaram a penetração no aquartelamento e o choque de me verem em frente deles, todo sujo, esfarrapado cheio de suor, de lágrimas e de revolta!

Ninguém mais pensou no medo e, saltando dos seus " esconderijos ", lançaram-se a mim, largando armas e munições num gesto de transcendência emocional ao reconhecerem-me e verem-me com vida [ou como fantasma, embora fosse esquisito, pois, se eu tivesse morrido, ainda nem sequer tinha tido tempo para apresentar as minhas contas lá no "altíssimo" embora que, quando se trata de coisas de alma, o tempo seja diferente ... mas penso que não teria dado tempo para tal ... salvo se fosse a parte que fica na terra, como acontece com algumas crenças, enquanto que a outra iria percorrer o seu percurso ... até o seu destino !]. Bom, foi efectivamente um choque, para todos, principalmente o Zeferino, que se lançou ao meu pescoço, com uma violência e aperto de homem nobre, onde o coração podia mais do que o homem e o medo; parecia que estava numa gare de estação a receber o amigo de infância que já estava há muitos anos ausente nas terras distantes...

Todos do piquete, que estavam ali, foram os primeiros a procurar segurar-me da minha "emocional loucura", e com palavras, tentarem convencer-me de que tudo era um pesadelo, embora eu ainda não "me tinha libertado do pesadelo"

Estava ali com eles. Os minutos seguintes foram de uma carga emocional, onde a razão não funcionava, onde todos nós não "ouvíamos" os tiros que assobiavam e as granadas que rebentavam, pois estávamos presos a uma certeza, que fora a dúvida, de ter conseguido ultrapassar o tempo em que eu sofri a "maldade" dos meus colegas, "aliados dos terroristas", numa luta de defesa/ataque ao "inimigo" [qual ?].

O trágico ou cómico desta situação é de que nem todos tiveram o mesmo comportamento, perante esta situação. Por exemplo, o Comandante Pina, talvez o mais "lúcido" e mais "desinibido" [pois continuava em tronco nu e de trousses de um lado para o outro] com uma espécie de "mata moscas" numa mão e na outra a pistola [ninguém sabe ... se matou mais mosquitos do que pretos ..., nem ele o sabe, em abono da verdade]. Para ele, que tinha o dever patriótico de defender a nação, os outros eram apenas peões ... que fariam parte da sua vitória, [também aqueles nacionalistas de uma figa, fazendo um ataque a sério, sem avisar... é preciso terem cá um desplante dos diabos...principalmente, tendo em atenção, estar lá o Comandante Pina!].

Amigos da onça, queriam pôr em risco o seu sucesso militar?...

Mal agradecidos é o que eles eram, para um comandante "amigo do seu amigo"!

É claro que não foi só ele, nem tão pouco foram só os oficiais, houve muitos "camaradas de luta" que continuavam a saltar de um lado para o outro, como se tratasse de um "balet" indígena, contracenando com os actores que tinham conseguido entrar no aquartelamento; outros houveram, que nem sequer ainda tinham acordado! ou estavam, como a avestruz "com a cabeça metida pelo chão abaixo"; bem "amarrados" à sombra de um cajueiro ou mangueira, com uma mão em baixo e outra em cima das tetas da Mariama, da Maimuna ou de uma cabrita cabo-verdiana, enfim, de acordo com a fantasia do sonho, semi- sonho ou com os olhos pregados no teto da caserna, masturbando-se...

Pode parecer caricato, mas não é, lá no fundo todos queriam ser heróis; e esta era uma oportunidade [até porque era o primeiro ataque armado na Guiné ao aquartelamento do Exército Português]. Lá no fundo dos seus subconscientes, eles queriam mandar dizer, lá para a terra que se não fossem eles a Guiné já não era portuguesa ou outras coisas de grande monta. Não ficava bem descrever a "realidade" para a madrinha de guerra, namorada, pais ou outros... que diabo, não era mais bonito do que descrever atitudes e comportamentos de cobardia e outras reacções do mesmo tipo? Bem vistas as coisas, sempre estiveram lá, fizeram "monte", como se costuma dizer e correram riscos. Por isso, relativamente, aos outros portugueses, tinham mais direitos à " honra e heroicidade", por terem defendido a Guiné !!!

O meu estado de choque era superior a qualquer força de controlo humano, sendo quase impossível exigir àqueles que me viam assim, terem um comportamento mais adequado, pois eles atravessavam, também, como eu, uma " fronteira " do medo e do desconhecido, onde a noite e toda aquela envolvente lhes forneceu os ingredientes para a completa loucura!

(continua)
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Nota de CV

(1) - Vd. poste de 11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3294: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte I) (Carlos Silva / Gabriel Moura )

1 comentário:

Anónimo disse...

A propósito do que escreveu o Tenente Miliciano V.Gouveia sobre a forma como se combateu a fome em Buba em 1963 e o estratagema adoptado de arranjar peixe de uma forma expedita, devo frizar que em meados de 1969 o problema também existiu temporariamente, quando estacionavam em Buba, três Companhias operacionais, uma de comandos, a 15ª, e uma de Fuzas.
Comia-se arroz com ossos de chispe ao almoço e ossos de chispo com arroz ao jantar, para variar um pouco. Houve então experiências de desenrrasque interssantes, tais como; a adopção do método já usado em 1963 de fazer emboscadas aos peixinhos que subiam na maré alta pelo braço de rio e na baixa eram apanhados numa rede indo de seguida "matar" a fome a alguns camaradas cheios de arroz com chispe até ao cocuruto da cabeç; Outros, iam à pesca com granadas. Depois de rebentarem na água, alguns valentões mergulhavam e traziam para a margem, tanto peixe quanto podiam. Isto aconteceu até o Major Fabião, ser incomodado pelo ruido provocado e naturalmente impedir tal abuso, logo substituido pelo rebentamento das espoletas, que ocasionando uma chacina menor da peixaria,aumentou o volume de granadas a utilisar para abafar a fome. Granadas tão necessárias para atirar ao IN. perdidas com os peixinhos sem culpa. Outros ainda, eu por exemplo, comiam umas ceboladas de batatas com batatas, quando não havia peixe apanhado nas artimanhas já descritas. Batatas essas, bem guardadas para a messe de Oficiais e Sargentos, e eram roubadas ao quarteleiro da C.Caç. 2317,( meu conteraneo e amigo, colega de carteira na escola primária) com a anuência deste, que também fazia de cozinheiro.Um belo dia conseguiu-se na Tabanca uma vaca,que logo foi abatida o que iria tirar a barriga de misérias durante algum, pouco tempo, dado a quantidade de militares na localidade. A pobre, coitada, mesmo depois de morta ficou "coxa". Alguém se aproximou sorrateiramente dos improvisados acougueiros e "rapou" uma pá, (eu vi a pá da vaca a correr a caminho de uma caserna)e nessa noite alguns camaradas tiveram petisco reforçado