terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3472: Da Suécia com saudade (7) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (7): Zés Marias, feridos no corpo e na alma


Câmara de Estocolmo, vista do lago

Mensagem do José Belo (ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) com mais um contributo para as Guerras Coloniais a serem ganhas.

Primeiro Contributo

José Maria chamava-se o Soldado. Transmontano, de aldeola perto de Chaves. Pastor. Baixote, encorpado, espesso patilhame, falando um português da serra que, por vezes, o tornava verdadeira caricatura de revista.

Numa das formaturas na madrugada, de preparativos para "porrada certa", vi o Zé Maria, sozinho, a uns metros do pelotão, sentado num cunhete vazio de granadas de mão.

Olhava pensativamente as botas já mais que gastas. Eu saíra do refeitório, e ao vê-lo tão concentrado e distante, procurei gracejar:
- Ó Zé Maria, deixa lá as miúdas, pá! Este não é momento para recordar namoradas!Sorriu com a boca, não com os olhos.
- Mê Alferes, quando saí da terra para a tropa, e deixei a minha mulher - e acentuou mulher! - e filhinha, botei o coração dentro da bota. Tenho desde então caminhado sobre ele! São já longas as passadas. E estas botas, mê Alferes..., estas botas estão a arrebentar!

Não eram só números mecanográficos, números de Batalhões, de Companhias, nem mesmo só alcunhas de guerra nos Pelotões.

Tínhamos Nomes. Zé Maria,"aquele" abraço!


Segundo Contributo

No escuro porão das cargas, vínhamos bem lastrados com urnas. Encaixotadas para mais discretas. Quantas foram embarcadas? Quem eram os que se envergonhavam dos seus mortos? Escamoteados pela escuridão, como se de lixo se tratasse!

Mas não eram só os mortos! Que recepção tinham as centenas de feridos que iam quase diariamente chegando ao aeroporto de Lisboa, sempre altas horas da madrugada, em verdadeiros carregamentos de dor? Quantas vezes, após a longa viagem aérea, aguardavam horas dentro dos aviões, discretamente parqueados longe das luzes, para não "perturbar" os turistas à sua passagem pelo aeroporto.

Literalmente "passados", como se de contrabando se tratasse, para ambulâncias discretas que, pela calada, lá os iam levando para o Hospital.

Que "raio de cambada era aquela" que pretendia não ver os cegos, os mutilados, os paralisados?

Se honestamente se julgavam com razão, se tinham o exclusivo do patriotismo, se estavam tão certos da vitória da justa causa que defendiam, porque não a assumiam frontalmente? Porque se recusavam a aceitar as consequências de uma política "de Império", nos seus mortos e estropiados? Defensores da Civilização Cristã… contra a opinião publicamente expressa pelo chefe máximo da Igreja, dos seus Bispos, e pela maioria dos seus Sacerdotes!

Defensores do "Ocidente" contra as correntes do pensamento do mesmo, e porque não dizê-lo, dos "interesses" do dito Ocidente! Defensores de um tipo de sociedade para os Portugueses que diziam tão bem representar...mas a quem nunca se atreviam a escutar em eleições livres!

Eram estes dignos senhores, politicamente responsáveis pela tal guerra colonial "a ser não perdida", que na força da sua razão, caíram em Abril sem um assomo de dignidade.

Lutar? Eles?

E as urnas lá vinham, escondidas, envergonhadas. Mas por nós nunca esquecidas!

José Belo
Estocolmo, 16 de Novembro de 2008

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Nota de vb:

1 comentário:

Anónimo disse...

Onde estás Camarada? Em Estocolmo! Pois! Eles foram e voltaram, mais polidos, mais refinados, mais...e agora, alguns, lastimam a perca de um ou outro milhão. Vidas! O "teu" Zé Maria é igual aos tantos Zés que, foram despejados pelo império.Fiquei a recordar um ou outro e falava deles...ainda os sinto. Aquilo fica. Ainda ontem li o que o Alberto Branquinho escreveu -P3470. Parei e recordei demoradamente. Raios partam a que raça pertencemos? Vimos aqui ao blogue e, mais em terapia, quantas vezes demasiado intimista, não é lida só por camaradas,contamos ou lemos estórias, com ou sem agá,que sentimos baterem como murros na boca do estomago...Abraços Torcato