quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3595: Estórias avulsas (23): O Cuco (Jorge Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (*), ex-Fur Mil que esteve na Guiné entre 1968/70, com data de 4 de Dezembro de 2008 :

Caro Luís
Aqui vai mais uma estória das minhas, que se achares por bem podes colocar no blogue.

O Cuco

Não me refiro à ave, em geral, mas sim a um homem que fez parte do meu Pelotão.

O Cuco, sobrenome, - tantas vezes escrevi o nome dele e hoje que o quero recordar, não me lembro - era a pessoa mais pacata, amigo de todos os companheiros, de todas as bajudas, de todas as lavadeiras, de todos os meninos, de todos os africanos, enfim, de todo o mundo, que não conheci outro igual. Não havia zangas com ele, mesmo que o aperriassem por tudo e por nada ou quando bebia uns copos. Dava o que tinha, e que me lembre nunca tinha nada, e o que não tinha. Quando recebia o pré, dava cabo dele num instante, com os camaradas ou com a população, pagando umas cervejas ou um copo de vinho no Taras Buba, ou em qualquer outro "bar" de Catió. Distribuía pesos pelos meninos, pelas bajudas, só pelo prazer da conversa. Não adiantava nada chamar-lhe a atenção do aproveitamento que faziam da sua maneira de ser.

O Cuco queria estar em todas. Evitava escalá-lo para saídas, mas ficava zangado e aparecia sempre na hora da partida. Por vezes com a arma sem carregadores. Ou os carregadores sem munições. Para ele também não era importante. A G3 era um acessório. Um patrulhamento, uma segurança, um reabastecimento ou outra acção, para o Cuco era igual. O que precisava era de estar com a malta. Esquecer-se da arma em qualquer picada, numa bolanha ou numa tabanca, era coisa corrente. Por isso o Cuco tinha sempre um guarda-costas com ele.

Nos desafios de futebol lá estava ele, mesmo sem ser convocado. Era o segundo guarda redes efectivo ou entrava em campo quando o adversário corria para a nossa baliza isolado, para o tentar desarmar. Nada era a sério com o Cuco. Melhor, tudo era a sério para ele.

Notava-se, mesmo para leigos, que o Cuco precisava de evacuação, ou no mínimo, de consulta externa de psiquiatria. Demorou a conseguir-se esta consulta, com o seu consentimento pois claro, mas no dia da partida o Cuco não partiu. Pura e simplesmente desapareceu.
Assim, o remédio foi aturá-lo o resto da comissão.

Quando chegámos a Lisboa, o Cuco não tinha ninguém a esperá-lo. Disse-me certa vez, que vivia em Lisboa, só com a mãe, senhora idosa, creio que doente. Mas foi sempre difícil, talvez impossível mesmo, saber algo de concreto sobre ele. Não escrevia nem recebia correspondência. E alguma que recebesse era de uma possível madrinha de guerra que um camarada lhe tentava conseguir; mas nada a que o Cuco desse continuidade.

Despedi-me dos rapazes e lá os consegui meter nos camiões directos a Tomar para a desmobilização, onde depois das formalidades do desembarque, expedição das coisas deles, etc., fui ter no dia seguinte para a minha própria desmobilização. Acabada a burocracia, fui despedir-me dos meus açorianos, que aguardavam ordem de marcha para o próximo barco - acreditam que estavam alojados em tendas de campanha? - e quando não foi o meu espanto, vi o Cuco com eles. Não os quis largar até embarcarem. Não achava justo que ficassem ali sozinhos. Claro que não adiantou nada pedirmos-lhe para vir comigo, pois o traria para Lisboa.

Naquela altura, o meu sentimento era esquecer aqueles dois anos infindáveis. Nunca me lembrei de tomar nota das moradas dos rapazes com quem vivi aquele período da vida. Todo o meu fardamento ficou em Lisboa, pois nem isso quis trazer para o Porto.
Hoje em dia, a esperança de encontrar algum deles é muita. Mas o Cuco seria talvez de todos, aquele que eu mais gostaria de abraçar.

Jorge/Portojo
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3587: Controvérsias (12): Chicos, furras e ripanços em Catió, 1968 (Jorge Teixeira)

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3202: Estórias avulsas (22): Missão Católica ou Missão Heróica? (José Nunes)

2 comentários:

Anónimo disse...

Jorge Teixeira
Depois de ter lido isto tudo e pensando que estive em Catió entre 68 e 69, que pena tenho de não ter conhecido o soldado Cuco.
Um abraço
Alberto Branquinho
(CART 1689)

Anónimo disse...

Jorge Teixeira
Parabens.É uma Estória bonita e até comovente. E é uma bela Estória de Natal.
Tanta Gente que precisa de um Cuco!! e eles cada vez são mais raros nesta Civilização que se diz evoluida!
Parabens mais uma vez e um obrigado pela Estória
Luis S Faria