quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

1. Mensagem de Joana Santos, com data de 16 de Fevereiro de 2009:

Caro Luís Graça,

Remeto mais um texto que a minha mãe escreveu para o Blogue.
Ela lamenta que seja um pouco chocante. Mas foi assim que se passou.

Cumprimentos,
Joana


2. Em Bissau, controlado desespero (III)

Inquieta quietude

[Título e fixação do texto: Editores C.V. / L.G.]

Começaram as visitas. Primeiro, as minhas; depois, as dele, que tinha licença para ver-me em casa. Vivemos tardes de amor. E eu, sozinha, passava as manhãs na rua, comprando cajus e cocos no mercado, algumas folhas de cola, uma curiosidade.

Diziam que aquilo dava força e experimentei. Dava mesmo. Da experiência científica soltou-se um energético e solitário charleston (não há mais divertida – e difícil – dança de precário equilíbrio de pés, do corpo todo, aparentemente desconjuntado!). Nesse estado me encontrou, uma vez, a bajuda. Deitei-lhe a língua de fora. E ela abanou-me, empurrou-me para a casa de banho. E, no espelho, vi uma palhaça, de língua encarnada, que ria, ria… Bastava de loucuras. Lavei, escovei, o vermelhão fora-se. Mas, no meu sistema, dissipara-se a moleza tropical.

Claríssimas manhãs de Bissau.

Insomne, já nem dois comprimidos me ajudavam, atravessava as noites e, cedo, postava-me à janela que se abria sobre o pátio, aguardando a chegada da Joana. Dava-lhe escassas ordens e partia, buscando o sombreado das árvores, atenta à inigualável beleza dos nativos, fulas, futa-fulas, mandingas, os mais belos. Às sabadoras brancas, ao colorido dos panos femininos, ao comportamento dos periquitos e maçaricos, às crianças com os pequenos rostos manchados de tinha, às vozes agudas, às risadas, ao meu leproso. Não comprava nada, nada me induzia aos gastos em sedas libanesas.

Pessoas havia que já me conheciam:
-Corpo s’tá bom?
-S’tá bom.

Conhecera uma senhora cuja avó ainda fora animista. Decidi perguntar à minha bajuda Joana, manjaca era ela. Fui ao pátio, coloquei os dedos na terra, acariciei um cacto, abri os braços, fiz de pássaro… depois, o sinal da cruz:
– Eu, cristã… e tu? – um dedo no seu peito. E ela, muito séria, persignou-se:
- Avemaria... - disse.

Que sabia ela do significado daquela oração? Afinal, de animismo nada aprenderia, e só, muitos anos volvidos, assistiria a uma prática de culto animista, numa longínqua montanha da cadeia do Pamir…

De resto, outras coisas me ocupavam. Como matar a fome? Que cozinhar? Como chegar ao hotel, para jantar, fugindo aos assobios e a um provável beliscão da tropa branca?

Em breve, muito em breve, o Mário chegaria a casa. Faria transportar duas camas do Q.G. e armá-las-ia no meu quarto, com grande estrondo.

Andava inquieto, expectante.

A poucos dias do seu aniversário (31 de Maio), consegui, por intermédio de um vizinho, bacalhau. E foi, enquanto preparava o enorme pirex de arroz, receita longa e complicada, que, súbita, irrompeu a estação das chuvas. O Mário não estava.

Chovia em catadupas. Corri para a rua, molhei-me toda, voltei ao forno, a roupa a secar-se-me no corpo.

Trinta e um de Maio de 1970. Quanta chuva, Mário? Vinte e cinco.

Um dia, dois dias, quantos, antes que ele partisse? Não recordo. Na sua ausência, um outro amor crescera – Bissau, a suja, colorida, mal crescida cidade africana, o cinzento opaco do Geba, junto ao cais, o céu atravessado de helicópteros, suspensas notícias, indo e vindo, silêncio povoado pelo longínquo matraquear do medo.

Nela aprendi que o belo não é o perfeito, que o belo pode ser, também, o feio em ignota desmesura, estado de alma, inquieta quietude, inesperada transigência.

Mas foi, talvez, no segundo dia após o seu aniversário, que o meu marido começou, à noite, a tirar, de cima do armário, malas e sacos (“Eh, menino, esse saco é meu!”, perdi-o). Atirava, lá para dentro, roupas, os livros, os discos, todos os seus pertences. Olhava, espantada, o renascer da obsessão. Que dormisse eu, disse. Ele iria muito cedo. Virou-se para a parede, adormeceu. Mas eu, não.

E muito, muito cedo, já vestida, ao canto da janela, aguardava o dia. Ele enfiava o camuflado, bem passado. Corri à casa de banho, arrebatei a gilette, o creme de barbear, a pasta, o pente, a água-de-colónia que lhe dera. Saco adentro! Um beijo de raspão na face do "adorado amor”. Corri atrás dele, batera com a porta, não a abriria eu.

Despi-me de novo, sem fome. Dois comprimidos de Vesparax chegariam? Chegaram. E fez-se noite.

Não dera por nada, por ninguém. Arrastei-me, ensonada, até à cozinha. O interminável bacalhau, lá estava ele, no frigorífico. E, com o pano dos tachos sobre a mesa, a colher de sopa na mão, comi-o gelado, de dentro do pirex. Lá iria, de novo, o meu manjar para o frio.

Peguei num livro, atirei-o contra a parede.

Há coisas que nos ficam na memória. Essa de me levantar e afagar a capa do livro é uma delas. E, depois, outra: as luzes apagaram-se, calou-se a ventoinha. Tacteando, lá descobri o copo e os comprimidos. Dois? Três? – Já não sei.

Foi só com o barulho da porta da entrada, que alguém parecia querer deitar abaixo, que acordei.
- Joana - gritava - A porta. O meu… o meu….

Não era capaz de me lembrar de como se dizia “roupão”. Mas a bajuda, certeira, percebeu e atirou-mo, saiu correndo, abriu a porta.

Ali estava, já tarde, na soleira, o Alexandre, boininha debaixo do braço, prazenteiro.
- Então o que era aquilo? - perguntava, e eu:
- Que dia é hoje? Quando é que o Mário foi?- E ele:
- Ontem, não te lembras? Feriste-te nos pés?

Não, não me tinha ferido. Olhei de relance para os pés e para o chão da sala. Sangue. Deve ter percebido alguma coisa que eu não entendia. Queria que chamasse a Inês? O David?
- O David - concordei.

Disse-me que era tempo de voltar para Lisboa, que ia tratar, quanto antes, da passagem. Estava eu de acordo? Estava.

Em que logro me deixara escorregar de alma e corpo inteiros? Onde era essa cidade de Bolama, que me fora vagamente prometida? O talvez? Que fazia eu ali? Impunha-se-me a lealdade: se o meu marido voltara para donde viera, seria porque não podia fazê-lo de outro modo.

Entretanto, a minha gente já se mexia em reboliço. A bajuda e a engomadeira tiravam lençóis, lavavam o chão, mas, na casa de banho, ainda havia mais pegadas. Talvez tivesse sido esse o primeiro dos meus abortos espontâneos.

Uma perda é o impossível, sem remédio.

Breves, os cinquenta e três dias estavam a chegar ao fim.

Cristina Allen

Fevereiro de 2009
__________

Nota de CV:

Vd. postes da série de:

9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...
e
8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

6 comentários:

Anónimo disse...

Minha Senhora,
As minhas palavras são comuns, vulgares, mas sinceras. Não tenho o dom nem a sabedoria para escrever outras.
Arrepiei-me ao ler o seu texto! Pela beleza da forma e pela crueza do seu conteúdo.
Sabe, ou fica a saber agora, da grande amizade e respeito que nutro pelo seu ex-marido. Daí que, sem qualquer ponta de bajulação, repita um lugar comum que vem do fundo da minha alma: Por trás, ou ao lado, de um grande homem há sempre uma grande mulher.
Vasco da Gama
ex soldado cadete do Alf.Beja Santos

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas:

Já todos nos demos conta do talento (literário) desta mulher, que foi mulher de um camarada nosso, e mãe das suas filhas... Há sempre algum pudor na partilha, em público, de memórias íntimas. Mas, um dia, estes textos da Cristina irão figurar numa antologia da literatura da guerra colonial...

O género também faz a diferença na escrita, em geral, e na escrita de (e sobre) a guerra, em especial. Quem disse que a nossa guerra foi só uma coisa de machos ?

Nenhum de nós saberia ou poderia escrever algo como este parágrafo, que nos faz arrepios na espinha:

"Um dia, dois dias, quantos, antes que ele partisse? Não recordo. Na sua ausência, um outro amor crescera – Bissau, a suja, colorida, mal crescida cidade africana, o cinzento opaco do Geba, junto ao cais, o céu atravessado de helicópteros, suspensas notícias, indo e vindo, silêncio povoado pelo longínquo matraquear do medo.

"Nela aprendi que o belo não é o perfeito, que o belo pode ser, também, o feio em ignota desmesura, estado de alma, inquieta quietude, inesperada transigência"...

Anónimo disse...

Belo,muito belo Cristina!

Quanto aos cinquenta e três dias

nunca vão chegar ao fim...

Abraço

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Só umas breves palavras:

Voltei a gostar do texto. A força, a outra face da guerra. Nos comentários anteriores, quase tudo, o que penso está dito. O V. da Gama foi "aluno"; eu fui contemporâneo e juntos "operamos" no Leste, como o Luís Graça e o Jorge Cabral, com o M. B. Santos.Camaradas e amigos no passado e presente.O L. Graça diz, bem como sempre, quase tudo o que sinto.O J.Cabral,como é seu hábito, em duas frases sintetiza um monte de páginas. Acredite Cristina - nunca chega ao fim-. Mais palavras depois de ler estas? Não!
Uma nota de rodapé:- não se enganou na vila, tem um rio a atravessá-la e, para poente, quinze ou vinte quilómetros o mar. Sines está a norte, logo ali, como são as distâncias no Alentejo. Estive muitos anos sem lá ir. Um dia voltei. A mais bonita praia alentejana esfumara-se...e não só. Progresso?! Não comento. Até vi, no meio de uma paisagem lunar, triste, deslocado, de forma irracional ou absurda, o "Infante D.Henrique" estacionado...
Já não navegava, nem podia rodeado que estava por escombros,transformado em hotel ou similar...saí rápido de lá.
Abraços
Torcato

Anónimo disse...

Após ler este texto só me resta transcrever Florbela!

"Quem vem?...
Esvai-se num sopro a procissão...
Silêncio! Nada! Ninguém!
Pasmo de coisas mortas!
Alucinação!
E o meu coração
Põe-se a bater às portas...

E não abre ninguém!
Ninguém! Ninguém! Ninguém!
(Florbela Espanca)


Guiné! Terra de mistérios!

Obrigado D. Cristina por esta maravilhosa forma de ver e contar realidades da Guiné. Terra de Mistérios!

Atenciosamente,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Chocante?! É belo e muito, muito humano!
Lembranças são todas as pessoas que passaram pela vida de outras pessoas. E deixam marcas.
Estes textos ajudam a ver o outro lado da lua.
Alberto Branquinho