domingo, 29 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4097: Dar uma aula, em Coimbra, aos poetas que escrevem sobre (mas não fizeram) a guerra (Vasco da Gama)

1. Mensagem de Vasco da Gama (aqui na foto, no lado direito, num briefing local com Spínola, no dia 14 de Abril de 1973, em Cumbijã) que, por razões de saúde, tem estado infelizmente afastado do nosso blogue.

Recorde-se que o Vasco, reside na Figueira da Foz, tendo sido Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74:


Comandante Luís Graça,

Não te vou referir novamente a debilidade que me tem impedido de participar activamente na nossa Tabanca. Cinjo-me apenas à informação que acabo de receber respeitante ao seminário de amanhã na Universidade de Coimbra, subordinado ao tema Poesia da Guerra Colonial.

De pronto me inscrevi! Não sei como me vou deslocar, mas lá estarei, desarmado. Sim desarmado! No meio daquela intelectualidade toda, o que vai fazer um artista como eu que é incapaz de fazer um verso? Vai ouvir e, se for caso disso, dizer dos inúmeros poetas que o nosso blogue tem. Dizer das inúmeras poesias que temos publicado na nossa Tabanca e da pena que sinto da nossa Tabanca Grande não estar representada, no mínimo, para dar uma aula aos poetas que não fizeram a guerra. Somos, neste contexto, A OUTRA FACE DA POESIA! (**)

Vou levar debaixo do braço o Tigre Vadio do Mário Beja Santos e servir-me dos Doze contos do barqueiro de Caronte (Luís Graça) ?
Vou levar alguns versos do Zé Manuel de Mampatá? (***)
Vou referir-me ao nosso bardo Manuel Maia?
Vou aconselhar a leitura do nosso magnífico José Brás?

Porventura calar-me-ei e serei mais "um flamingo branco, tingido de vermelho" (Luís Graça) (****)

Um abraço

Vasco da Gama

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Vasco:

Vai, vai, que desanuvias, que te faz bem... Vai e representa-nos, o melhor que souberes e puderes, a todos nós, tabanqueiros, que aqui se expressam em prosa ou em verso. Lamento não poder estar contigo, amanhã, na Lusa Atenas, para ouvir os poetas e os seus críticos, os que falam da guerra que tu e eu fizemos... Não vais estar só: o Josema, o nosso Zé Manel, da Régua, também irá ter contigo. Precisa de ir a Coimbra levar a filha que é estudante e entregar vinhos a clientes. Aproveita então para ir amanhã de manhã.

Podes apresentar aos senhores Professores de Coimbra o nosso poeta de Mampatá, de Nhacobá, de Colibuía, de Salancaur, tudo lugares que não fazem parte da geografia nem do imaginário dos poetas da Academia... Diz-lhe que havia um poeta, no sul da Guiné, que escrevia um poema para cada dia, nos já idos anos de 1972, 1973 e 1974... E que um belo dia, numa fúria autodestruidora, já na erssaca da guerra, destruiu pelo fogo dois terços do seu espólio literário... É poesia chã, singela, intimista, mas que cala fundo no peito da gente... Diz-lhe que temos mais malta que escreve versos, desde o Zé Teixeira ao Magalhães Ribeiro... Diz-lhe que até temos Cancioneiros populares, onde se escrevia poesia com erros de ortografia... Poderemos não ter direito a antologia, mas já escrevemos um dia (ou ainda escrevemos hoje) versos onde a guerra destila pelos poros... Dá um abraço à nossa madrinha de guerra, Cristina Néry. Deseja-lhe bom trabalho. Agradece-lhe a atenção que nos tem dedicado. Um Alfa Bravo para ti e para o Josema. Boa viagem.

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4093: Agenda Cultural (5): Poetas da guerra colonial em conferência internacional, Coimbra, CES/UC, 30/3/2009 (Cristina Néry)

(**) Vd. postes da série Blogpoesia:

27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4087: Blogpoesia (33) : O bardo de Cafal Balanta (Manuel Maia)

25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4078: Blogpoesia (32): João, 20 anos, apto para todo o serviço... (José Brás)

15 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4037: Blogpoesia (31): Quando eu era menino e moço... (Manuel Maia)

9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3858: Blogpoesia (30): Em Cutima, tabanca fula... (José Brás / Mário Fitas)

31 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3688: Blogpoesia (29): Este ano não mandei cartões de boas festas a ninguém (Luís Graça)

28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3672: Blogpoesia (28): O Menino Jesus chinês (António Graça de Abreu)

25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)

26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3243: Blogpoesia (26): 35 anos de Guiné-Bissau: A minha contribuição para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)

11 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3193: Blogpoesia (25): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra (Luís Graça)

6 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3178: Blogpoesia (24): A minha pequenez é que era uma tristeza (Rui A. Ferreira)

4 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3169: Blogpoesia (23): Amálgama de sentimentos e emoções...(Rui A. Ferreira)

6 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3115: Blogpoesia (22): No mesmo navio, piscina e música em camarote de 1ª, suor nos porões...(José Belo).

[Houve um salto na numeração, de 10 para 22]

30 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2701: Blogpoesia (10): Olhando para uma foto minha, no Mato Cão, ao pôr do sol, com o Furriel Bonito... (Joaquim Mexia Alves)

27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2589: Blogpoesia (9): Sangue derramado (José Manuel, Mampatá, 1972/74)

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro

16 de Outubro de 2007 > Guiné 63774 - P2180: Blogpoesia (5): O vigésimo sexto aniversário de um gajo nada sério, Missirá, 6 de Novembro de 1970 (Jorge Cabral)

23 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)

30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2009: Blogpoesia (3): Explorador ? Mineiro ? Não, um Soldado ! (Jorge Cabral)

18 de Julho de 2007 > Guine 63/74 - P1964: Blogpoesia (2): O Combatente (Magalhães Ribeiro)

17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1963: Blogpoesia (1): O embondeiro do Cachil (J. L. Mendes Gomes)

(***) Vd. a série Poemário do JoséManuel (o único de nós que escrevia diariamente poesia, durante a sua 'comissão de serviço' no CTIG, entre 1972 e 1974):

Vd. último poste > 11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

(****) Vd. também blogue de poesia de Luís Graça >Blogpoesia

Vd. algumas dos poemas de temática ligada, directa ou indirectamente, à guerra colonial:

A morte do pássaro de areia

Alá não passou por aqui

Cais de partida(s)

Conto(s) do barqueiro do Geba

Descansa em paz, Iero Jau

Esquecer a Guiné

Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra

Jogava-se à bola, domingo à tarde, na minha aldeia

Luanda (re)visitada

Morreu um pretinho da Guiné

O Relim não é um poema

Os meninos da Ilha de Luanda

Quando os ventos sopram em Assuão

Rua da Conceição, nº 100, ou o poema do marinheiro sem mar

SOS, Mare Nostrum

Uma estranha forma de morte

War is over, baby

2 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Junto um poema meu.
Está no meu Diário da Guiné, Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2007 pag. 11


Durante dois anos, nas terras da Guiné,
a espingarda a tiracolo, aos pés da cama.
Lá fora, o calor, o canto das cigarras, o cheiro da guerra.
Éramos uma pátria infeliz combatendo um pobre povo,
na bolanha, no mato, no tarrafo dos rios.
O medo, os suores, a coragem, a amargura, soldados retalhados, queimados, encharcados em sangue,
homens sem cor e sem ventura.
Imberbes e puros como os guerreiros de Alcácer-Quibir,
as espadas de fogo dilacerando o bater dos corações.

Regressei um dia,
lavando a alma na espuma das lágrimas.

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Desculpem continuar, mas fui buscar outro poema meu, este inédito.


No monumento aos combatentes das guerras de África, Belém, Lisboa


Venho de manhã cedo pela névoa fria de Dezembro.
Belém, a torre branca apontando o sul,
a maré vazia, o balbuciar da prata no Tejo.
No monumento, rasgado a meio pelas lágrimas,
ninguém, apenas o silêncio e o vazio.
Na parede crua, o nome dos amigos mortos,
João, David, Rodrigo.
Eram então quase meninos como eu,
rasos de sonho, nervo e alegria.
Caíram na terra quente,
de braços abertos para a luz.

Guerras que o império entreteceu,
água nos meus olhos,
mágoa no meu sangue.

António Graça de Abreu