domingo, 5 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4144: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (2): Partiu vivo jovem forte/Voltou bem grave e calado... (Sophia) (Vasco da Gama)

1. Mensagem de Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, com data de 2 de Abril de 2009, falando da sua presença e da do Zé Manel na Conferência sobre Poesia da Guerra Colonial, Uma Ontologia do "Eu" Estilhaçado, em Coimbra, no dia 30 de Março de 2009 (*):






Meus Caros Camaradas da Guiné,

Animado pelo nosso Comandante Luís Graça, logo secundado pelo nosso camarada José Brás, lá foi o Vasco menos preocupado até porque sabia que o nosso José Manuel de Mampatá também iria estar presente. Ora, dois ex-combatentes da Guiné, daqueles de fora do arame, ainda por cima amigos, são indestrutíveis.

Saí de casa com uma hora de antecedência e dirigi-me à Faculdade de Letras, onde a minha companheira leccionou durante vinte anos. Encontrei a D. Fátima da secretaria que, a par de outros funcionários, não sabia de nenhum colóquio.

Andar para cima, descer ao piso dois, procurar anfiteatros e... nada. Lá um iluminado se lembrou:

- É no CES, sabe onde eram as urgências do hospital velho?
- Sim - diz o velho Vasco! Tentei um sprint e constatei que estou mesmo arrumado. Pesadão, dores nos pés ao tentar caminhar mais depressa, dores no peito e fico-me por aqui...

Cheguei mesmo em cima da hora e ao entrar na sala logo o boné identificou o Zé Manel. Sentei-me junto a ele, passei os olhos por toda a sala, olhei bem para os elementos da mesa e ia começar a conferência. Disse com os meus botões :

- Somos os únicos combatentes! Enganei-me, havia também um senhor general.
O título da conferência acima referenciado era seguido de : UMA ONTOLOGIA DO "EU" ESTILHAÇADO.

Ontologia? Estou lixado! Se nem o significado de ontologia sabes; o que estás aqui a fazer? Estamos debaixo de fogo, temos de raciocinar com calma e rapidamente! Enquanto o primeiro conferencista ia avançando na sua intervenção, eram as costureirinhas a cantar, lá se fez luz no Tigre do Cumbijã:

- logos= conhecimento; onto= ser. Está visto que podes continuar a assistir.

Curiosamente procurei, ao chegar à Figueira, a palavra na enciclopédia e não a encontro.

Seguiu-se à primeira intervenção, não muito fácil de acompanhar, a Senhora Professora Dra. Margarida Calafate Ribeiro que fez uma intervenção, na minha perspectiva brilhante, sobre o tema Guerra, poesia e trauma: leituras da poesia da Guerra Colonial. Achei de tal forma interessante que lhe pedi o texto para o enviar para a nossa Tabanca. Prometeu fazê-lo, mas até hoje ainda nada chegou.

Após o intervalo para o café falou a Dra. Cristina Néry Monteiro. A meio do discurso tive de sair para colocar umas moedas no parquímetro. Perdi parte da intervenção, mas apanhei o final, ao qual se seguiu o debate.

Ao botar faladura falei, apaixonadamente, do nosso blogue, da qualidade dos nossos poetas, dos versos que destilam guerra pelos poros, como disse o Luís, do mérito e da qualidade literária de muitos deles, de gente que tem obra publicada e premiada a quem a Universidade se devia abrir e dirigir. Quem melhor do que quem viveu a guerra pode poeticamente descrever o que por lá se viveu? Há, no entanto, quem não o entenda assim.

O nosso camarada Josema também fez a sua intervenção, tendo-se emocionado ao ler um poema. Fui em seu auxílio e relatei aos presentes que poesia não eram só versos, poesia é o que os meus camaradas da Guiné, referindo o Zé Manel em particular, fazem ao deslocarem-se sem interrupção há não sei quantos anos à Guiné, levando material para os hospitais, distribuindo cadernos, livros e esferográficas pelas escolas, poesia são as sementes que carinhosamente os meus camaradas para lá enviaram e que hoje, desabrochadas, matam a fome a muita gente. Que poema mais bonito existe que o poema da solidariedade?

Fui almoçar com o Zé à Munique e regressámos para o debate da parte da tarde. Dois italianos teorizaram temas difíceis, fechados, espessos para quem não é entendido na matéria.

Depois dos comentários finais do senhor Professor Helder Macedo, íamos assistir à representação do Projecto IGNARA # Guerra Colonial pelo Grupo Teatro Mosca num outro espaço.

Nas conversas de bastidores, tive o imenso prazer de constatar que o Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, é lido, melhor, consultado pela intelectualidade que vem fazendo trabalhos de mestrado e doutoramento. Para além da Dra. Cristina, conheci uma outra doutoranda da Lusíada que está a fazer uma tese sobre os nossos camaradas nascidos na Guiné e que combateram ao nosso lado. Se o Briote, ou outro camarada qualquer, ler este texto poderá dar-me pistas nesse sentido?

Através da minha pessoa poderão enviar alguns poemas que eu farei chegar, eventualmente em mão, à Dra. Cristina, até para discutir com ela a problemática ANTOLOGIA/ARQUIVO e da possibilidade da Universidade dar um empurrão ao nosso mérito poético.

Voltando ao Teatro sobre a Guerra Colonial.

Dois moços e uma menina, todos filhos de ex-combatentes, formam o Teatro Mosca. Leram, "o trabalho de casa", com uma dicção perfeita. Começaram a sua pesquisa, pois filhos da guerra que são, pouco, muito pouco souberam dela pelos seus pais. Gostei da forma e no final perorei sobre o conteúdo. Disse que não podemos ficar pelos Massacres, pelo filme da Diana Andringa e pelo filme do Joaquim Furtado. Falo nestes três items, pois foram por eles referidos.
Disse-lhes que no meu modesto entender o texto podia e devia ser enriquecido com a referência ao sofrimento dos nossos camaradas que por aí andam de mão estendida, numa vivência ostracizada, dos que carecem de tratamento médico, de uma voz amiga e solidária que a sociedade lhes nega e também da solidariedade que os ex-combatentes da Guiné dedicam ao povo. Os risos, os sorrisos, os abraços, as lágrimas vertidas nos encontros dos ex-combatentes com o povo da Guiné não são Teatro, são Realidade, só possível pela grandeza enorme de toda a malta da Guiné.

Meus queridos camaradas vou encerrar para obras por uns dias.

Peço desculpa pela extensão do texto, mas vou terminar com um poema dedicado aos nossos camaradas mortos na Guiné, dentro ou fora do arame farpado.

Guerra ou Lisboa 72

Partiu vivo jovem forte
Voltou bem grave e calado
Com morte no passaporte

Sua morte nos jornais
Surgiu em letra pequena
É preciso que o país
Tenha a consciência serena

Sophia de Mello Breyner Andresen

Camaradas
Adeus e até ao meu regresso,
Vasco da Gama
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4093: Agenda Cultural (5): Poetas da guerra colonial em conferência internacional, Coimbra, CES/UC, 30/3/2009 (Cristina Néry)

2 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4127: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (1): 4 anos, um milhão de páginas visitadas... (Luís Graça / Carlos Vinhal)

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro Camarada:estavas certo logos=conhecimento;e onto=ser, logo ciencia que estuda o(s) ser(es) em geral!? Complicam?Claro!
Mas não é para brincar. Há dias brinquei com o Luís Faria de Felgueiras: ele queria que eu dissesse serem os homens do norte, empreendedores, trabalhadores e eu brinquei e desviei-me...
Só para te mandar um abraço e outro ao Josema de cujos poemas sou forte admirador. É bom que se comece a falar dos problemas e dos traumas provocados pela guerra colonial. Em verdade, em relato feito ou apoiado por quem nela participou. A solidariedade para com guineenses (o povo das tabancas da Guiné)é de louvar mas, de modo algum pode, tal não acontece, suavizar o que está a acontecer a muitos camaradas nossos. Morreu mais um militar (ex- para os puristas não terem pruridos)da minha companhia. Cada vez somos menos, cada vez estamos mais velhos, cada vez mais fartos de tanto esquecimento para com os que ainda hoje sofrem. Porra digo sempre o mesmo e nada. Porra digo que não escrevo, não comento mas o bicho corroí e zás. Era só para te mandar um abraço, outro ao José Manuel e agradecer a vossa ida, o que fizeram para que tantos não sejam esquecidos. Só. Só e em nome pessoal. Abraços do Torcato Ah Antologia...pois...isso é outra história e, creio eu...daria uma melhor...percebes?Não digo mais porque não quero polémica entre onto e anto...Abraços

Anónimo disse...

Esqueci-me. O Eu Estilhaçado.
É mais onto que anto; é mais "ser"- o que existe. Haviam várias existências, vários seres em estilhaços. Repara:- estilhaços de atum, cavala, frango, dobrada liofilizada e etc...estilhaços de 82 e 81;de 61 e 60, de bazokas várias e rpg's 2 ou 7,de granadas e foguetões e á força de tantos, ao estrondo e efeitos dos mesmos, muitos que dentro de burakos não se acoitavam com algum dos ditos levavam. Tive um pequenino, muito pequenino,no pé e com ligeiro toque foi-se. Mas o EU o meu Eu, esse ficou mais fortemente marcado. Esse camarada não esquece. Também não perdoa. Pensou que tudo estava arrumado no fundo do sótão da memória e, ainda por cima em baú a sete chaves fechado. Puro engano. Um clique e antes um almoço, estilhaçaram baú e sótão...até quando? Esforço-me por não me intrometer em contenda, por suavizar ofensa ou deselegância, mas Caro Camarada Vasco da Gama é difícil.
Deixemos isso.
Se possível, em solidariedade, com determinação preocupemos-nos com os que continuam "com estilhaços", demasiados "estilhaços" no seu ser, no seu quotidiano e não permitamos que digam: é um tipo que veio do ultramar apanhado...
Por isso é positivo que haja-Poesia da Guerra Colonial e outros eventos para assim questionarem os porquês de tudo aquilo que por lá se passou.Abraços Torcato(que Chato!)

Anónimo disse...

Caro Vasco da Gama
Voltáste e ainda bem. Sinal de que estás melhor de saúde.
Pela minha parte agradeço a boa imagem que juntamente com o Josema deixaram dos intervenientes naquela guerra e os esquecimentos a que estão votados, aqueles para quem a vida, em muito como consequência do seu passado nesse inferno, foi madrasta. Infelizmente só agora parece haver sinais de abertura, mercê do trabalho árduo das Associações, como é o caso noticiado hoje no JN.
Transcrevo: [A Segurança Social dá prioridade no acesso a lares de idosos a ex-combatentes que se encontrem em "processo de recuperação" da condição de sem-abrigo e que estejam sinalizados pela Associação de Combatentes do Ultramar Português (ACUP). Esta orientação surgiu após uma auciência, em Janeiro, com a ACUP e explicada num ofício assinado pelo presidente do Instituto da Segurança Social.]
Ao fim de 35 anos do início dum novo regime, é muito tempo para se começar a fazer justiça...estariam convencidos que os antigos combatentes não durariam tanto?
Abraços
Jorge Picado

Anónimo disse...

Vasco da Gama

Ainda sou um "pira" nestas andanças da Tabanca que tenho o gosto de integrar, dando o meu contributo da maneira que sei e sinto, com verdade.

Daí o meu agradecimento pessoal, enquanto membro, a ti e ao J. Manuel por terem em Coimbra ,representado e divulgado ainda mais, a força e o interesse intrínsecos do Blogue, nas suas componentes Humana e Historiográfica entrosando a Poesia e a Narrativa como veículos transmissores para o Futuro, das vivências havidas à época por uma Geração que em grande parte se sente injustiçada ,usada ,abandonada e tantas vezes maltratada.

Um abraço
Luis Faria