terça-feira, 21 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4226: FAP (25): Encontros quase imediatos ou como a pista de Cacine se tornou curta (Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Reformado, com data de 16 de Abril de 2009:

Carlos
Sem pressa de o ver publicado, para descanso dos leitores, aqui vai mais um texto relativo a um episódio passado na Guiné com este aviador.
Li uma vez no blogue que temos a tendência para facilmente expor as nossas fraquezas e falhas, em contraste com os nossos antigos oponentes, que referem mais os aspectos positivos das suas acções, às vezes exagerando-os, até.
É capaz de ser verdade, mas a experiência diz-me que podemos aprender menos com a História dos grandes feitos do que com a descrição dos nossos erros ou insucessos e os ensinamentos que daí podemos tirar. É que são estes que nos levam normalmente - assim o queiramos - a procurar fazer melhor na próxima vez que tentarmos.

Um abraço.
Miguel


ENCONTROS QUASE IMEDIATOS

A esquadra 121 da BA 12 operou nos últimos anos do conflito na Guiné três tipos de aeronaves. A actividade de voo prevista para cada piloto da Esquadra apontava para a necessidade de todos saberem voar mais que um tipo de avião, de maneira a rentabilizarem ao máximo a sua disponibilidade para voo.

Ao chegarem à Base, os pilotos vinham qualificados pelo menos num de dois tipos de avião ali existentes - T-6 ou Fiat G-91. O DO-27, o terceiro avião do plantel, sendo um avião relativamente fácil de voar, deveria ser operado por todos os pilotos da Esquadra, motivo porque uma das primeiras tarefas que nos davam era a qualificação neste tipo de avião. Isso era feito utilizando os pilotos mais batidos para instruírem os novatos (vulgo piras) na arte de dominar aquela cavalgadura.

Por norma a única experiência dos pilotos dos Fiat G-91 com aviões convencionais (os que têm aquele pauzinho à frente...) tinha sido no início, na instrução elementar de pilotagem, onde tinham voado o pequeno Chipmunk (bilugar monomotor de asa baixa), passando depois para os jactos, numa sequência lógica que os fazia passar por qualificações sucessivas no T-37, T-33 e F-86, culminando numa adaptação ad-hoc ao Fiat G-91 - no meu caso pessoal 25 horas voadas na Base Aérea 5 (Monte Real) - antes de embarcar para o fim do mundo.

Pessoalmente não senti dificuldades significativas nessa adaptação ao DO-27, dado que, ainda antes de ser brevetado na Força Aérea, já tinha obtido o meu brevet civil no Aero-Clube de Portugal, onde voei essencialmente o Auster, um avião ligeiro de asa alta. Este avião tinha em comum com o DO-27 uma característica que não era muito habitual noutros aviões militares. Sucedia que o piloto, voando do lado esquerdo e tendo a manete do motor a meio do tablier, tinha que usar a mão esquerda para controlar os comandos do avião, o oposto daquilo a que ele estava habituado. Essencialmente o que se verificava era uma menor sensibilidade na execução das manobras, principalmente na fase de descolagem e aterragem (particularmente nesta última). Mas não era nada que não se ultrapassasse com algumas horas de voo no avião. No meu caso nem senti esse problema, pois estava habituado a pilotar de modo igual com qualquer das mãos (mas provavelmente pouco com a cabeça, como se poderá ver mais à frente...).

Tive a sorte de me calhar um instrutor de primeira, o Comandante do GO1201, Ten Cor Brito, o qual me ensinou em rápidas e elucidativas demonstrações como poderia dominar o avião sem danos significativos no mesmo... E a partir daí fiquei apto a desempenhar todo o tipo de missões no DO-27.

Estarão a perguntar-se para que serviu toda esta conversa até agora. Dois motivos me orientaram: Primeiro, a história que tenho para contar resume-se em poucas palavras e assim o texto fica mais composto com esta introdução; segundo, sempre é uma oportunidade de os leigos lerem alguma coisa sobre a Força Aérea e perceberem que isto de trabalhar sentado não é necessariamente coisa fácil...

Entramos finalmente na história que estou há mais de quanto tempo para contar. Expliquei que me sentia à vontade a voar o avião; mas sei hoje, pela minha experiência, que quanto mais à vontade, maior a tendência para a asneira, por sobrevalorizarmos as nossas competências e ultrapassarmos os limites do razoável.

Tem isto a ver com a missão que me levou num DO-27 até à pista de Cacine, isto já no tempo do míssil Strela, o que me obrigou a fazer o percurso até lá a baixa altitude. Mandavam as regras que nesses casos, quando se chegasse ao destino se fizesse uma volta em espiral a subir de modo a posicionar o avião apontado à pista, tentando pôr-se o estojo no chão o mais depressa possível, para evitar ser alvejado.

Assim fiz, mas a volta que executei deixou-me um bocado mais alto do que devia em relação ao início da pista. Prossegui aumentando a razão de descida, o que fez aumentar a velocidade do avião, mesmo com o motor reduzido (i.e., na rotação mínima) - isso tem como consequência natural aumentar também a distância percorrida na aterragem até conseguir imobilizar o avião (a que chamamos "corrida de aterragem").

Até aqui, mal nenhum, porque qualquer aviador esperto sabe que pode tentar uma segunda vez: mete motor, volta a subir e dá a volta (procedimento a que chamamos "borregar") e faz uma nova aproximação à pista, de preferência melhor que a primeira...

Entram então aqui os factores envolventes que por vezes condicionam o discernimento do aviador e o levam a pensar com os pés, conduzindo-o ao desastre. Neste caso, poder-se-iam considerar três: primeiro, o facto de, voltando a subir, ir expor o avião a qualquer atirador entretanto alertado pelo barulho da aproximação inicial; segundo, o facto de no fundo da pista estar estacionado um outro DO-27 que tinha transportado o Gen Spínola até ali, com o piloto descontraidamente encostado ao avião enquanto aguardava o seu regresso do quartel - ninguém gosta de fazer figuras tristes à frente dos seus...; terceiro e último, a presença na pista de um bom número de militares que esperavam igualmente o regresso do Gen Spínola - e o que é um facto é que ninguém gosta de fazer figuras tristes à frente de quem quer que seja...

Assim, por uma questão de brio (neste caso, mais propriamente falta de humildade) resolvi prosseguir para a aterragem. Como era de calcular, aquele excesso de velocidade levou-me a tocar o solo bastante mais à frente do que o habitual, o que me levou a calcar desesperadamente os travões, tentando reduzir rapidamente a velocidade do avião. O facto é que começava a aproximar-me rapidamente do fim da pista... e também do DO que lá estava estacionado, bem no sítio para onde o meu avião apontava.

Tudo indicava que, embora já com velocidade reduzida, não conseguiria parar completamente o avião até chegar lá, pelo que decidi provocar o que se costuma chamar um "cavalo de pau", alterando rapidamente a direcção em que o avião avançava, fazendo um pião em que o avião rodasse 180º, ficando aquele virado em sentido contrário. E assim foi - muito resumidamente, que não gosto de me lembrar disto - travagem forte no pedal direito, fazendo o avião iniciar uma rotação brusca para esse lado, logo seguida de uma travagem brutal com o travão esquerdo, obrigando o avião a rodar para a esquerda; finalmente, quando o avião estava quase a completar os 180º de rotação, uma travadela final com o travão direito para parar a rotação (e para acabar com o resto dos travões...). A verdade é que o avião acabou parado, de costas para o outro DO e a poucos metros dele... um bambúrrio de sorte que eu dificilmente poderia voltar a ter.

O pessoal de Cacine pareceu-me ter ficado impressionado com a demonstração de performance cá do aviador, mas o olhar que o outro piloto me deitou esclareceu-me perfeitamente quanto ao risco parvo que tinha corrido; e nem quero pensar no que teria sido o meu futuro como piloto se o Gen Spínola, no seu regresso, tivesse deparado com os dois aviões enfeixados...

Miguel Pessoa
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de > 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4217: FAP (24): Afinal quem foi o camarada artilheiro do PAIGC que me 'strelou' em 25 de Março de 1973 ? Caba Fati ? (Miguel Pessoa)

2 comentários:

João Seabra disse...

Tenho podido apreciar a produção poética de alguns camaradas, segundo os mais variados géneros, estilos e escolas. Quase todos manifestam, como dizia um personagem queiroziano, um "robusto talento".
Todavia (questão de mera preferência pessoal) nada me tem agradado tanto como a prosa límpida e alegre do Miguel.
Nos tempos que correm, então, é um autêntico refrigério.
O que me intigra é o emprego, a propósito de manobras aéreas, de termos típicos dos desportos equestres ("borrego", "borregar",...).
Será que na FAP há (ou houve) muitos amadores como eu?

Miguel disse...

Caro João
Não posso garantir de onde vêm os tais termos "equestres" na Força Aérea; mas, se nos lembrarmos que no início da sua formação muitos dos pilotos foram recrutados na Arma de Cavalaria, do Exército, talvez seja daí que venha a ligação.
Já o termo "cavalgadura" que uso nesta história é de minha exclusiva autoria, e no caso presente tanto se pode aplicar ao avião como ao aviador que o pilotava...
Um abraço. Miguel Pessoa