quinta-feira, 7 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4297: (Ex)citações (26): Falando da condição feminina e das enfermeiras pára-quedistas (Luís Graça)

1. Caros camaradas, desculpem lá, mas interrompi outras coisas que estava a fazer, porque ao ler este comentário do nosso Editor-mor, não pude deixar de o publicar.
Esta lição que o Professor Luís Graça nos ministra até é de borla. Aproveitemos.

Recorrendo à série, por mim criada, Comentários que merecem ser postes, aqui vos deixo as doutas palavras do Chefe.
CV

2. Comentário de Luís Graça ao poste
Guiné 63/74 - P4295: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (9): O dia-a-dia de uma Enf.ª Pára-quedista na Guiné (Giselda Pessoa):

Obrigado, Giselda, por teres querido e sabido responder, com tanta franqueza quanto elegância, às perguntas directas, chatas, quiçá até um pouco voyeuristas do editor-mor do este nosso blogue...

Não é defeito de sociólogo, é feitio, é saudável curiosidade, é querer saber para poder também responder a perguntas que seguramente já fizeram os nossos tabanqueiros...

Começo por sublinhar que continua a ser, para nós, uma honra e um privilégio ter-te nas nossas fileiras, sempre atenta e empenhada, embora discreta...

Muito obrigado pelo teu testemunho, pelo teu depoimento sobre o vosso quotidiano em Bissau e no resto do CTIG...

Deixa-me elogiar-te a tua memória e o teu talento para contar histórias, mais uma vez aqui comprovado.

Adorei esta, que traduz muito bem como vocês se integraram e foram integradas na Força Aérea. Cito o teu poste:

(...) "Para mostrar a empatia existente, dou um exemplo curioso: Dirigia-me a pé para o Grupo Operacional quando passa por mim, a grande velocidade, um jipe com vários pilotos. Vejo o jipe dar a volta e travar bruscamente ao meu lado:
"- Anda daí depressa que já estamos atrasados!

"Pensando que se tratava de uma evacuação meti-me no jipe, mas acabei por perceber que nos dirigíamos ao terminal civil. Quando lhes perguntei o que se passava, explicaram-me que iam ver o avião da TAP que estava a chegar. Argumentei que tinha mais que fazer que ir ver a chegada do avião, pelo que um tentou esclarecer-me:
"- Vamos lá ver as mulheres (as hospedeiras de bordo...) que vêm no avião!.
"- Mas eu também sou uma mulher!, disse eu. E retorquiu-me o outro:
"- Eh pá, tu és igual a nós!"
... (...)

Uma delícia de história, short story, daquelas que eu gostaria de saber contar e a que costumo chamar histórias com mural ao fundo...

Os grupos humanos são exogâmicos, os machos saiem para fora do círculo íntimo do clã ou da família alargada para acasalarem... E as fêmeas funcionam como um bem precioso e raro, constituem uma verdadeira moeda de troca... Daí o dote, o dom, a recompensa, as reparações materiais e simbólicas a que tem direito ao pai da noiva...

E daí também o tabu do incesto... A interdição do desejo dos machos em relação às fêmeas do seu inner circle... As minhas filhas e as minhas irmãs são para eu dar a outros homens, de outros grupos, não são para mim... Por que o casamento é (era) um negócio, uma troca, uma aliança entre dois grupos que reforçam assim, pela cultura, pela economia e pelo parentesco, os seus laços...

Tudo este caldo de cultura socioantropológica para te dizer que é magistral a resposta dos teus matchos:
- É, pá, tu és igual a nós. A gente quer é cocar as gajas da TAP...

Se calhar era nas subunidades do exército, no mato, que havia uma atitude mais machista e marialvista em relação a vocês... Quando vocês apareciam no final de operações, para uma curta visita, para descansar ou tomar uma refeição...

As minhas recordações de Bambadinca têm mais a ver com esses breves momentos em que vocês eram verdadeiras estrelas na parada, e os tais matchos (do tenente-coronel ao major, do capitão ao alferes...) se desdobravam em salamaleques, disputando o vosso lado esquerdo, enquanto se atropelavam uns aos outros e vos encaminhavam para o bar...

Afinal, sempre fomos um país de cavalheiros... E no entanto é preciso lembrar que as primeiras enfermeiras pára-quedistas tinham obrigatoriamente que ser solteirinhas e boas raparigas, com robutez física, bom comportamento moral e teor de vida irrepreensível (sic)... Quando muito, podiam ser viúvas, sem filhos... Viuvinhas, alegres, ma non troppo...

Não seria tanto por serem pára-quedistas, mas sim por serem enfermeiras, mulheres... Deixa-me recordar aqui que foi em plena II Guerra Mundial, no auge do Estado Novo, que se começou a dar início à modernização do ensino e da prática de enfermagem, com o D. L. n.º 32612, de 31 de Dezembro de 1942.

No entanto, este diploma legal veio impor uma medida que alguns especialistas dos estudos de género (historiadores, sociólogos...) consideraram infamante: a proibição de casar...

No mínimo, era uma medida sexista, obscurantista, discriminatória, que só se aplicava às mulheres, e que só será revogada mais de vinte anos depois (D.L. n.º 44 923, de 18 de Março de 1963). Em suma, a enfermeira ainda não era uma verdadeira profissão, mas uma vocação, embora secular...

Sabemos que as enfermeiras pára-quedistas foram um corpo estranho ao Exército. E que foi a Força Aérea a abrir, em 1961, no início da guerra de Angola, as suas fileiras às mulheres (curiosamente por mão de um homem hoje classificado como ultraconservador, o Kaulza de Arriaga).

Historicamente é um exemplo pioneiro... Mas há ainda uma pergunta que eu ainda te queria fazer, desculpa lá estar a ser chato e abelhudo: essa proibição (de casar) ainda se mantinha, no teu tempo (1972/74) ?

Um chicoração. E um Alfa Bravo para o teu matcho.
Com humor e camaradagem,
Luís
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4216: Comentários que merecem ser postes (4): Homenagem à memória do Capitão Pára-quedista João Costa Cordeiro (João Seabra)

2 comentários:

Anónimo disse...

Luís
Na verdade não me lembro de ter visto nada escrito sobre a proibição de se casar, mas quando uma de nós o quis fazer, foi informada que tinha que sair para poder casar; e depois de casar disseram-lhe que afinal podia ficar... Mas não ficou...
Quanto às enfermeiras solteiras e viúvas, se bem me lembro houve uma que fez o curso, já era viúva, e ainda terá estado lá uns tempos.
Não penses que era só na tropa que os homens "cocavam" (como tu dizes) alguém do sexo oposto que lá surgisse. Naquela época (e não será hoje?), nos grupos em que as mulheres dominavam, na vida civil ou militar, era sempre apreciada a presença de um "matcho" (palavras tuas...) que tivesse a triste ideia de lá aparecer...
Um beijinho. Giselda Pessoa

Luís Graça disse...

Uff!... Ainda bem que não nascemos hermafroditas...

Obrigado, pelo comentário e explicações adicionais...

Já agora... Cocar é um termo da gíria oui até do calão, do meu tempo de menino e moço... Estar à coca, pôr-se à coca... Vigiar, espreitar, mira, deitar o olho...

Matcho é termo do crioulo da Guiné-Bissau...

Puff!, por hoje já chega de fazer o papel de prof!... O Carlos é um patife, o editor-mor não tem que aparecer sob as luzes da ribalta...