segunda-feira, 25 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4413: Estórias avulsas (33): Buracos da vida, ou os dias mal vividos (Luís Faria)

1. Mensagem de Luís Faria (*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 23 de Maio de 2009:

Amigo Vinhal

Ao ler alguns postes passados, Bu…rakos…, Bandos…, arames… e outros, dei por mim a recordar como o espírito criativo conseguia valor acrescentado em dias que não eram senão isso mesmo: uma espécie de Bu…rakos.

Um abraço a todos
Luís Faria


Guerras confidenciais
(de Bando … já se vê !!)


Ao longo da estrada Bula – S. Vicente, a partir do quilómetro três (K3) considerávamos que a zona era já bastante perigosa aumentando essa periculosidade na razão directa do crescendo quilométrico.

As nossas emboscadas nas laterais dessa estrada, a partir de certa altura passaram a ser consideradas rotineiras (não esquecendo que a rotina era inimiga da segurança !) e proporcionavam por vezes situações diferentes, talvez pela originalidade, por certo subjectiva.

A noite

As, por norma, 24 horas que por lá passávamos, chegavam a ser fastidiosas especialmente a noite, dada a incomodidade da cama e a voragem dos borrachões dos mosquitos aos milhões que não se fartavam de beber litros do seu néctar preferido, que muitas vezes martelávamos com álcool, na esperança de que ficassem azoados e trombassem num qualquer embondeiro ou bagabaga, ficando fora de combate, de preferência em coma, quanto mais não fosse, etílico !!

Havia quem nos quilómetros mais baixos e menos perigosos (especialmente Km 2), optasse (à socapa já se vê) pelo uso do célebre e concêntrico lion-brandt de cor verde d(n)a esperança de os afastar e de não atrair uma outra espécie erecta, mais violenta e letal que também nos azucrinava a mioleira demasiadas vezes!

Houve até quem, nestes mesmos quilómetros, talvez por na altura ser mais esclarecido e já defensor acérrimo dos ecossistemas e da preservação em liberdade das faunas, não usasse nenhum dos métodos anteriores e antes - não sendo adepto do trabalho mais pesado – optasse e mandasse de forma amável e bonacheirona, que alisassem o chão e lhe armassem o mosquiteiro que lhe tinham transportado (já não recordo se com ou sem colchão, mas a almofada estava presente), pedindo à plebe que estivesse atenta e não facilitasse, acrescentando um ouçam o que eu digo, não olhem para o que eu faço !! Acordem-me se houver algum problema (!!!), seguido passados uns momentos, de uma ronca destinada a não deixar adormecer as sentinelas, digo eu !

Por vezes, para quem não era adepto das insuficiências nas alternativas anteriores e não sendo viável acrescentar o transporte da cama, se a mente lhe sussurrava melosamente pedido por maior comodidade para o corpo… passava a pasta e abalava com escolta para dossel quartelino ou morancino (?!), quiçá para o aconchego de uma botija natural (?!), regressando no dealbar seguinte, bem disposto e com ar feliz de gozador, pronto e retemperado para uma nova jorna!!

Não faltou quem, se calhar por estar convicto que todo o ser vivo (menos o turra belicoso) tinha direito à vida, liberdade, saúde e alimentação, oferecesse altruisticamente o seu peito desnudado para o pleno saciar das necessidades básicas daquela demoníaca turba voadora !

Por fim havia a maioria não silenciosa assassina que não fugindo, tampouco virava a cara ao perigo de um bom confronto continuado, ora se defendendo ora atacando com golpes de mão mortíferos, que ecoavam rasgando o silêncio da noite guardada pelo cintilar de miríades de luzes estelares.

Com é sabido, o corpo humano tem necessidade de dormir o que, pelo atrás descrito não era uma tarefa assim tão fácil! Atento ao problema, o ecossistema na tentativa de manutenção do seu equilíbrio, quase diariamente e como ajuda, oferecia-nos música Wagneriana executada em palcos aramados mais ou menos próximos que nos permitiam distinguir ou não outros instrumentos para além dos tímbalos que, com o seu rufar de diferentes intensidades, mas sempre audível, controlava o espectáculo de luzes psicadélicas visíveis na noite estrelada, o que proporcionava na verdade um outro espectáculo emotivo e quase surreal .

Elementos do 2.º GCOMB nestas emboscadas. Em primeiro plano o Gomes.
Na boina vêem-se os pionés referentes aos combates tidos, à altura

Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados


O dia

Durante o dia, as coisas passavam-se de modo diferente e havia que lutar contra o tédio, o calor abrasador e a sede, especialmente quando estávamos estacionados e a permanência era mais prolongada sem que contássemos. Algumas vezes o Esquadrão de Cavalaria foi obrigado a levar-nos água, nas suas Panhard. Eram uns bacanos aqueles homens! E tinham um bar… ?!?!

Qualquer minudência servia para gastarmos o tempo, mais ou menos entretidos.

Era o observar das formigas no seu labor contínuo e se preciso, praticar um pouco de sadismo interrompendo-lhe o carreiro de andamento com um risco no chão, o que lhes causava um desnorte tremendo durante minutos! Era interessante e gastava muito tempo, ver o esforço e técnica com que um grupo delas transportava um peso pesado!

Era o observar da macacada, quando por lá apareciam, nas suas brincadeiras, no alarido dos seus falares, nos atravessamentos da estrada de um modo que mais pareciam soldados, dada a maneira como o faziam - primeiro o chefe, que depois de inspeccionar, dava sinal para que o seguissem, de corrida e em fila!

Era ver as circunvoluções dos jagudis omnipresentes e horrorosos que de quando em vez mergulhavam em voo picado sobre qualquer presa finada ou até por vezes (assisti) em mergulho suicida sobre o campo de minas, falhando a refeição e provocando o rebentamento de uma qualquer encrier (mina) que o estraçalhava e ao mesmo tempo tirava o pessoal da modorra em que se encontrava, pondo-o eventualmente a jogar às escondidinhas !

Era apreciar a destreza do subidor de palmeiras no seu trabalho de apanhar o fruto e por vezes, a sua queda auto-executada mas desamparada, causada pelo avistamento de qualquer cobra fatal enrolada no fruto. Quando infelizmente acontecia, prendia a nossa atenção durante bastante tempo observando toda a movimentação humana de ajuda que se desenvolvia ou mesmo até a nossa intervenção.

Era a jogatina com cartas amarfanhadas e sebosas, seguida por norma de discussões em surdina acaloradas e comezinhas, sem nexo e sem consequências que não fossem o atirar com as ditas, de rompante para o chão eventualmente acompanhado de um erudito ide pró que faz filhos …, expressão não vernácula, mas mesmo assim não menos redutora!

Era o plantio de minas-lata para provocar o gáudio e hilaridade do pessoal que assistia de bancada aos esforços de um papalvo crédulo na tentativa de remoção da ameaça, ainda por cima vazia.

Eram as leituras de aerogramas e revistas do coração, raras e atrasadas, seguidas por vezes de falatório de mal dizer e gozatório, consoante os intervenientes. Qualquer parágrafo ou foto podia despoletar extensa retórica pontilhada aqui e ali com belas figuras de estilo que podiam fazer inveja a qualquer estudioso e fazer corar o meu amigo T. Malcriado nado e vivido no Porto!!

Claro que não faltavam as sestas retemperadoras, se possível à sombra, e muito especiais se aconteciam a seguir a uma lauta refeição de lata, aquecida à vela ou na mini fogueira de gravetos, controlada para não dar nas vistas (pois claro ?!) regada com reconfortador nico de água desfrescada !!

Enfim… algumas engenharias e outras, de Bando… (!!!) na comodidade dos ares ventilados!

Luís Faria
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4383: Homenagem ao Serviço de Saúde das nossas Forças Armadas (Luís Faria)

Vd. último poste da série de 10 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4316: Estórias avulsas (32): “A bazuca em rajada” (Helder Sousa)

1 comentário:

Jorge Fontinha disse...

Faltou contares, quando alguém abria a perna e soltava um mais sonoro...E sobretudo aquela vez ao meu lada e também perto de ti se ouviu de tal maneira que a tua indignação se ouviu ainda mais alto.Quem foi o Filho da P...? e de seguida se ouviu tão perto: Este soube-me tão bem dando-se o prevericador, a conhecer pela voz...
Na verdade era das poucas coisas que tu não admitias...

Um abraço
JORGE FONTINHA