segunda-feira, 8 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

1. Mensagem de José Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 6 de Junho de 2009:

Assunto: Memórias e histórias minhas (**)

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais um pouco da história. Como sempre, para bem do blog, faz com ela o que muito bem entenderes.

Daqui do outro lado do oceano, um abraço amigo
José Câmara


Partida para a Guiné

Ali, em frente dos meus olhos, estava o n/m Angra do Heroísmo. Muitas vezes o vira ao largo da cidade da Horta. Em desafio ao povo faialense nunca amarrara à doca. Entrar nele só mesmo aqueles que fizeram viagem. E era isso que eu ía fazer: uma viagem que não tinha requisitado. Tal como todos os outros militares que iriam encher os seus camarotes e porões.

O Angra do Heroísmo, no Cais de Alcantra, em Lisboa, espera que os seus porões se encham de militares com destino à Guiné

Foto: © Juvenal Afonso (2009). Direitos reservados.


Da vistoria ao navio fiquei com uma sensação amarga que, ainda hoje, perdura: a visão dos porões preparados para cargas de toda a espécie, e que agora serviriam para o transporte de carga humana. Tinham sido limpos, mas continuavam mal cheirosos e a ventilação era paupérrima. Aqueles porões iriam servir de camarata a tropas que dariam o melhor de si mesmas nas matas e bolanhas da Guiné.

Nos Açores, vezes sem conta, tinha visto as vacas serem embarcadas e arrumadas nos porões dos barcos que, ao tempo, demandavam as terras açorianas. Agora, em plena Lisboa, apercebia-me que os nossos soldados iriam ter idêntico tratamento, e serem, assim, reduzidos à condição animalesca.

A bestialidade e baixeza de instintos das chefias militares e dos responsáveis pela governação no Portugal de então, estavam ali, na visão daqueles porões. Muito baixo tinham descido no conceito e respeito pela pessoa, pelo militar, pelo cidadão e pelo mártir da Pátria. A prova estava ali. Para ser vista e sentida pelos cerca de seiscentos militares que faziam parte daquela viagem. Uma situação que foi vivida e sentida por muitos outros, antes e depois de nós.

Pelas 8:00 horas da manhã, do dia 21 de Janeiro de 1971, começaram a chegar as primeiras tropas. Sem desfiles e sem discursos de ocasião o embarque foi acontecendo. Pouca gente a observar este embarque. Sem grandes despediadas. Compreensível. A maioria do contingente militar era formado por açorianos e madeirenses. Aqui e ali um outro lenço abanava. Pelos militares continentais que faziam parte dessas Companhias e pelos militares de um Pelotão de Artilharia. Um grupo de cães e respectivos tratadores também faziam parte do contingente.

Cerca das 13:00 o navio começou a afastar-se da doca. Aos poucos foi descendo o Tejo, rumo ao Atlântico, cujas águas encapeladas provocadas pelo tempo invernoso que então se fazia sentir, deixava antever uma viagem pouco agradável. Como se isso fosse possível naquelas circunstáncias. Para trás ficava a linda Lisboa. Por todos um aceno de esperança. Para alguns o seu último adeus!

O silêncio entre os militares era tão cortante como o frio que então se fazia sentir, aqui e ali quebrado pelas rajadas do vento forte que fazia, e pelo navio a cortar as águas do estuário do Tejo. Cada um embrenhado nos seus pensamentos.

O dia tinha sido longo e a noite já ía avançada. As emoções tinham sido muitas. Restava-me mais uma: o dia da minha partida para a Guiné coincidia com o dia de aniversário natalício de minha mãe. No meu pensamento e no meu coração dei-lhe os parabéns.

Naquele momento a escuridão da noite era a luz do vazio que me ia na alma.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4424: (Ex)citações (30): O meu pai só aprendeu as letras que o trabalho lhe ensinou (José da Câmara)

(**) Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

3 comentários:

Anónimo disse...

Zé Câmara
A propósito de mencionares o transporte vacum, lembrei-me de certa vez, viajando de autocarro em hora de ponta, durante o Verão, com os mais baixos a encostar os narizes nos sovacos dos mais altos,
que em contorcionismos de coluna se agarravam aos varões, um colega alentejano observou que,lá, no Alentejo, para embarcar gado na CP, só podiam seguir seis vacas por vagão.
Foi a rizota. Afinal, ou por acção da Soc.Protectora, ou por inspiração de agentes administrativos que produziam os textos regulamentares, a canalha equiparava-se abaixo de bicho.
E rimo-nos.
Um abraço
josé Dinis

Hélder Valério disse...

Pois, camarada e amigo Zé Câmara, essa tua referência ao transporte de gado e de soldados é realmente muito mais que uma simples alegoria. De facto, para muitos dos nossos jovens de então foi esse tipo de transporte que lhes arranjaram. E de facto também isso é bastante revelador dos conceitos que quem mandava tinha sobre os que eram mandados...
Mas atenção com essas atribuições de culpas! É que andam para aí uns "bernardos" que não gostam nada desse tipo de associação de ideias, a de atribuir responsabilidades e atitudes de desprezo aos mandantes de então! É que eles acham que chegou a altura de reescrever a História e inverter situações.
Um abraço
Hélder S.

Orlando Cardoso disse...

Caro José da Cãmara:

A tua cara e o teu nome dizem-me algo. Sou o Orlando Cardoso, estive nas Caldas da Raínha no 2º/70, 5ª Companhia (Capitão Moncadas)plutão? Lembro-me que um cabo miliciano era o Ramalhete pela sua manueira muito caractristica deconduzir o plutão, depois nos Rangers/Lamego e Moçambique.Vivo na Régua. Se entenderes contactar comigo o meu mail é ojgcardoso@gmail.com e o meu tel. é 919744187. um abraço.O. Cardoso