terça-feira, 16 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4536: Memória dos lugares (31): Béli, CCAÇ. 1589 (1966/68) (Armandino Alves)


1. O Armandino Alves que foi 1º Cabo Enf da CCAÇ 1589 (1966/68), em Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, enviou-nos mais uma interessante mensagem:


Camaradas,

Hoje vou-vos falar um pouco do meu passado em Béli.

Quando chegámos a Béli, o Comandante do Pelotão que fomos substituir, informou o nosso Alferes que os ataques, que o IN fazia a Béli, eram programados, pois só aconteciam de três em três meses.

Isso de facto verificou-se o que nos levou a pensar, que o intuito deles era que estivéssemos quietinhos e não nos aventurássemos a sair para a mata.

E que podíamos nós fazer só com um pelotão, 1 Cabo Cipaio e dois ou três milícias?

É claro, mantínhamo-nos no nosso lugar ripostando apenas aos ataques com o equipamento que tínhamos: 2 morteiros de 60 mm, 2 metralhadoras pesadas e as G3.

Mais tarde, fomos reforçados com uma secção de morteiros 81 mm, constituída por 1 cabo e 4 soldados.

Tivemos de construir os abrigos para estes últimos morteiros pois, como é óbvio, para os de 60 mm não eram necessários.

Mais tarde, fomos reforçados com um Furriel dos “Comandos”, que tinha apanhado uma “porrada” e veio para o Béli de castigo.

Por pouco tempo tivemos este “reforço”, pois quando limpava a sua arma (G3), deu um tiro no pé e ficou sem dois dedos. Não sei se foi por acidente, ou se foi de propósito, pois dado ser “Comando”, creio eu, que não ia limpar tão “inocentemente” a sua arma com uma bala na câmara.

Foi evacuado para Bissau e nunca mais regressou a Béli.

Outro caso “esquisito” foi o de um cabo atirador, que foi buscar um garrafão de água e, já dentro do abrigo, bateu com ele nos ferros dos pés da cama partindo o fundo. Os vidros resultantes cortaram-lhe a barriga da perna, de cima até abaixo, tendo sido transportado para a enfermaria, a fim de ser suturado. Vi-me e desejei-me, para que ele se deixasse anestesiar localmente, poiss ele não a queria de modo nenhum.
Dizia-me ele que se fosse uma injecção “normal“ não levantava qualquer problema, mas ficar a dormir, anestesiado, não queria de modo nenhum.
Só com a ajuda de outros camaradas o consegui convencer do contrário, explicando-lhe que, quem ia ficar dormente, era o local da perna a ser cosido, e não ele por todo.

Felizmente que este acidente foi de dia e, graças a Deus, tendo corrido tudo na perfeição.

Um outro acontecimento foi na época das chuvas que como todos nós, os que passamos na Guiné, bem sabemos, são ricas em trovoadas assustadoras e espectaculares. Raios por todos os lados que, à noite no meio da escuridão, fazem arabescos no céu, dignos de serem registados em filme.

Como é lógico, nessa altura não havia “Cancorders” para realizar tais filmes, só fotos e a preto e branco. E, ali no meio do mato, não haviam sequer rolos fotográficos, só em Bissau, e ainda era preciso que alguém no-los trouxessem.

Pois, nessa altura, dizia eu, chovia a bom chover e eram dias e dias seguidos.

Então numa dessas noites, o pessoal de um dos abrigos acordou a meio de repente com os colchões a boiar, pois o dique que impedia a água de entrar no abrigo tinha ruído e a esta entrou de escantilhão.

Foi preciso ir ao abrigo do gerador buscar uma motobomba portátil, para escoar a água que se encontrava dentro do abrigo. Lá surgiu então um voluntário, que deitou a correr para a ir buscar mas, na aflição, esqueceu-se que o cavalo-de–friso estava colocado, como habitualmente, no seu sítio e quando ele reparou, e tentou travar a sua corrida já estava mesmo em cima dele.

Resultado, o arame farpado rasgou-lhe os lábios o peito e os braços. Mesmo assim ele não desistiu, pegou na motobomba e levou-a para o abrigo.

Depois foram os colegas a transportá-lo á enfermaria. Àquela hora da madrugada e sem luz eléctrica, tivemos que utilizar um “petromax”, a petróleo, que quase não dava luz, pois o vidro estava tão fumado que, mesmo posto no máximo, quase não permitia ver nada.

Assim, enquanto um colega segurava o “petromax” acima da cabeça, eu lá lhe fui cosendo os lábios, tarefa bastante difícil, pois como o local era mesmo muito escuro, com a falta de luz ainda mais difícil se tornou.

Mas enfim, com aquelas condições, lá consegui realizar mais um verdadeiro “feito”.

Os restantes ferimentos, como eram superficiais, foram devidamente desinfectados e, uma vez retomada a acalmia, lá voltamos a adormecer.

Armandino Alves
1º Cabo Enf da CCAÇ 1589
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

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