quinta-feira, 2 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4628: Estórias avulsas (12): Histórias passadas na Guiné (TCor José Francisco Robalo Borrego)

1. Mensagem de José Francisco Borrego (*), Ten Cor na Reserva, que pertenceu ao Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau e ao 9.º Pel Art, Bajocunda (Guiné, 1970/72), com data de 29 de Junho de 2009:

Caríssimo Carlos,

Desculpa lá mais esta trabalheira! Começamos a puxar pela memória e depois vêm à superfície factos passados há quase 40 anos!

Faço votos para que te encontres bem na companhia da Excelentíssima Família. Ainda não foi este ano que nos conhecemos pessoalmente. Uns problemas domésticos impediram a minha ida ao convívio de 20 de Junho de 2009, que pelos vistos correu às mil maravilhas! Se Deus quiser para o ano, vou fazer os possíveis para estar presente.

Um abração de muita amizade do
José Borrego


HISTÓRIAS PASSADAS NA GUINÉ

Caríssimo Carlos Vinhal,

já faz algum tempo que não te aborrecia com trabalho deste género. Andei à procura nos recantos da memória e encontrei meio amarelas, mais umas histórias passadas na Guiné no período, 1970-1972, dando mais um contributo para o enriquecimento do património histórico e social da nossa Tabanca Grande. Se achares conveniente faz o favor de as publicar.

Em fins de 1970 (Outubro?), apresentou-se no Grupo de Artilharia n.º 7 (GA7) o Senhor major Gaspar, acabado de ser promovido, para assumir as funções de 2.º comandante do Grupo. O major Gaspar também conhecido por Gasparinho, comandava a Companhia de Artilharia 3330, estacionada em Nhamate e mais tarde em Bula. Era uma Companhia independente, cuja unidade mobilizadora foi o extinto Regimento de Artilharia n.º3 (RAL n.º3) em Évora.

O comandante do GA7 era o Senhor tenente-coronel Ferreira da Silva que tinha por alcunha o Assassino da Voz Meiga, porque ao dirigir-se aos seus subordinados fossem eles oficiais, sargentos ou praças tinha por hábito tratá-los por “filho”; "Ó filho isto, ó filho aquilo"... mas na hora de administrar a justiça e disciplina (RDM) era um “pai” pouco meigo.

Um dia tratou o major Gaspar por “filho” e, como este gostava pouco de paternalismos, terá advertido o comandante que pai só tinha um e que não admitia que o voltasse a tratar com tal “afecto”.

Devido ao feitio do comandante, ou talvez não, o certo é que não morriam de amores um pelo outro e segundo se dizia tinham muitas divergências e acesas discussões.

No dia de todos os Santos era tradição fazer-se uma formatura geral com representantes dos três Ramos das Forças Armadas em frente ao Palácio do Governador da Província, salvo erro.

A representação do Exército coube ao GA7 com a incumbência de enviar uma força para a cerimónia do dia de finados, força essa, que sob a responsabilidade do major Gaspar terá chegado ligeiramente atrasada ao local da formatura,  o que desagradou profundamente ao comandante perante o olhar das altas entidades.

Como cmdt e responsável máximo, o ten cor  Ferreira da Silva terá feito uma chamada de atenção ao major Gaspar, que não tendo gostado da “repreensão” em público, desatou aos berros e com insultos ao cmdt, sendo retirado do local por um oficial conhecido, pondo termo ao espectáculo deplorável!

Para quem conhecia a personalidade do major Gaspar, aquilo foi uma atitude perfeitamente natural em linha com o seu temperamento. Para a época era, ou parecia ser, um oficial desinibido, frontal e, por vezes, desafiador da disciplina. Dizia-se que na sua folha se serviços tinha tantos louvores como castigos e que gozava de alguma simpatia, junto do Senhor General António de Spínola, devido às suas características peculiares.

No regresso à Unidade os dois comandantes discutiram o incidente anteriormente ocorrido, tendo ambos chegado, ou quase chegado, a vias de facto e a situação só não foi mais grave, porque um oficial se intrometeu entre os dois.

Perante a insubordinação do major Gaspar o cmdt mandou chamar o Sargento da Guarda para prender o major, mas este dizia ao 1.º sargento que não podia prendê-lo, porque não estava em flagrante delito. 

Este episódio durou algum tempo em que um mandava avançar o Sargento da Guarda e o outro mandava-o recuar... Houve até quem dissesse que o sargento da guarda,  impaciente e nervoso,  terá suplicado: "Meus comandantes, decidam-se lá, porque, segundo o Regulamento, o comandante da guarda não pode abandonar, o distrito da guarda, por muito tempo". Tal era o desconforto…!

Face ao sucedido o escalão superior procedeu ao respectivo processo disciplinar e criminal, acabando os dois por serem punidos com penas de prisão.

Contam-se muitas histórias a respeito do major Gaspar, o Gasparinho,  e que ainda hoje são motivo de boa disposição entre camaradas que tiveram o privilégio de servir sob o seu comando na Guiné. A propósito, socorrendo-me da memória aí vão três deliciosas:

1. Na época das chuvas os abrigos/locais de trabalho do major Gaspar e do seu 1.º sargento ficaram completamente inundados. O diligente major Gaspar (ainda capitão) não perdeu tempo e enviou um rádio (mensagem) para o escalão superior, solicitando com máxima urgência dois escafandros para entrarem nos abrigos, visto nem ele, nem o 1.º sargento saberem nadar…

2. A certa altura o pessoal do BEng 447 foi colocar chapas de zinco nos telhados das casernas (barracões?) da companhia. Passados uns dias um tornado muito forte arrancou as ditas chapas e nunca mais ninguém as viu. O inevitável capitão Gaspar perguntou ao BEng por mensagem mais ou menos nestes termos: Solicito informe se chapas colocadas nesta em tal data… regressaram à sua Unidade de origem…

3. Também se dizia que o seu substituto na companhia um dia telefonou-lhe a perguntar se tinha assuntos pendentes para resolver, ao que o major Gaspar respondeu que pendente só tinha os tomates…

Um homem com estas atitudes só podia ser diferente e muito considerado pelo seu refinado sentido de humor. Humor que em tempos de guerra é necessário e fundamental para o moral das tropas. Nem só de pão vive o homem…

Esta também é gira: O comandante um certo dia, depois do almoço, foi ver o andamento das obras a decorrer no quartel e ao aproximar-se do sargento encarregado das mesmas, disse:

- Ó filho as obras não andam?

Ao que o sargento respondeu:

- Saiba V.Exª. meu comandante, que as obras não têm nem nunca tiveram pernas para andar.

Perante tal resposta o cmdt da CCS teve de interceder pelo sargento (que nesse dia devia estar com os azeites) mas ainda assim foi de castigo, para o mato, uns meses.

Nota 1: O original das histórias é capaz de estar um bocado adulterado, devido ao muito uso, mas penso que o essencial está intacto.

Nota 2: O GA7 era uma Unidade de Guarnição Normal sediada em Bissau - Santa Luzia. Recebia militares de rendição individual (nomeadamente oficiais, sargentos e cabos especialistas); os soldados na sua larga maioria pertenciam ao recrutamento da Província e tinha à sua responsabilidade os pelotões de Artilharia de Obus 14, 11,4, 10,5 e 8,8 cm, respectivamente, disseminados pelo TO da Guiné, assim como as Baterias de Artilharia Antiaérea.

Infelizmente, o major Gaspar já faleceu. Curvo-me perante a sua memória e paz à sua alma.

Linda-a-Velha, 29 de Junho de 2009

Um abração para todos os camaradas de armas, da Tabanca Grande, espalhados pelo mundo com votos de muita saúde.

8 comentários:

Anónimo disse...

José Borrego

Curiosamente abordas o Major Gaspar em alguns dos seus melhores ditos,que se transformaram quase em lenda,tal a sua força e circunstancia à época.

Digo curiosamente ,porque tive o imenso prazer de estar na sua presença durante parcos momentos,que refiro sucintamente no meu proximo poste de "Viagem à volta das minhas memórias"

Mas gostava de esclarecer um assunto,de somenos importancia:

Ao que entendo referes que ele em finais de 1970 foi promovido a

Major e assumiu o comando do GA 7 em Bissau.
Não teria sido em finais de 1971 ? È que em Março/Abril de 1971 ele apareceu por Binar a fazer-nos uma visita,como Capitão e comandava a companhia Cª ART. estacionada em Nhamate.

Um abraço e parabens pelo escrito

Luis Faria

MANUEL MAIA disse...

CARO JOSÉ BORREGO,

FIQUEI FASCINADO PELO PERSONAGEM
MAJOR GASPAR.
INFELIZMENTE NÃO ESTÁ JÁ ENTRE NÓS.
SE ACASO TE LEMBRARES DE MAIS ALGUMA HISTÓRIA DO DITO,POR FAVOR CONTA-NOS.

Teria que ser um extraordinário ser humano.

TAL COMO PELO INTERIOR HAVIA HISTÓRIAS "A DAR COM PAU",CERTAMENTE QUE POR BISSAU NÃO DEIXARIAM DE SURGIR, CONFORME CONSTATAMOS.

um abraço,camarigo( não paga direitos de autor uma vez que estou devidamente autorizado pelo MEXIA ALVES) E PARABÉNS PELA MANEIRA SOFT COMO EXPUSESTE AS HISTÓRIAS,DIZENDO SEM ESCREVER MUITO...

Santos Oliveira disse...

Uma delícia!!!...
Obrigado José Borrego, pela refinada prosa com sabores a poesia.
Afinal, a Guerra também era assim!...

abraços, do
Santos Oliveira

paulo santiago disse...

O Luís Faria tem razão na dúvida.
Conheci o Gaspar,ainda Capitão,
quando em finais de Agosto/71,
regressei à Guiné ido de férias.
No mesmo avião regressava também
um AlfMil da companhia sediada em
Nhamate,e o Zé Gaspar aguardava-o
no Aeroporto,tendo-me dado boleia
para a messe de oficiais.Em 6/01/72
após um jantar com o AlfMil Domingos,da 26ªCC,encontrámos,já
muito"enfrascado"o Gaspar,acabando
parte dessa noite,por ser passada
na Secção(ou Divisão)de Foto-Cine.
Nesta data já o Gaspar era Major,
o que nos diz,ter a promoção
acontecido entre fins de Agosto/71
e Janeiro/72.A data de 6/01 não
falha,fiz 24 anos nesse dia
Abraço a todos
Paulo

JOSÉ BORREGO disse...

Para os camaradas Luís Faria e Paulo,
Têm razão caros amigos, onde se lê 1970, deve-se ler 1971. Muito obrigado pela vossa observação. Aqui fica a reposição da legalidade!
Abraços para todos do
JOSÉ BORREGO

Joaquim Mexia Alves disse...

Segundo me contaram a história do Gasoar com o "assassino da voz meiga" iria mais longe, mas pode ser exagero.

Dizia-se que o Gaspar foi ao gabinete do comandante, mas levou uma "testemunha", (que não sabia ao que ia), mas ficou do lado de fora do gabinete.

Aí a testemunha ouviu os gristos deambos os oficiais e a certa altura já só ouvia o Gaspar a dizer:
O comandante não me bata senão tenho de me defender.

Depois de vários gritos e outros barulhos, abriu-se a porta e saiu o Gaspar impecável enquanto o comandante apresentava sinais de ter levado uns murros.

E o Gaspar só dizia que tinha tido que se defender.

se isto é verdade ou não não sei foi-me contado assim.

Segundo me contaram também o Gaspar esteve na India na altura da invasão e já aí era notado o seu humor e irreverência.

Ao que sei teria sido amigo de outro capitão já aqui citado o Victor da Silva Marques, que era também uma figura muito curiosa.

Hei-de lembrar-me de umas histórias que depois contarei sob a devida reserva se serem recontadas.

Abraço camarigo

Anónimo disse...

Conheci o Capitão Gaspar, no RAL3 em Évora, em Setembro de 1969. Estava eu no Bar com três Furriéis Guineenses do meu Batalhão, a tomar café e ele (Capitão Gaspar), sentou-se na nossa mesa, conversou quase duas horas e "obrigou-nos" a tomar 2 ou 3 imperiais cada um. Mas tivemos uma conversa muito interessante.
Nós estávamos de partida e ele aguardava mobilização para a Guiné.
Depois disso, ouvi muitas históricas sobre a personalidade controversa do "Gasparinho". Umas mais assim, outras mais assado. Mas sempre tive a convicção de que a existência deste tipo de Oficiais, tinha um efeito positivo nas relações inter classes, nas Forças Armadas.
Hoje fala-se deste Oficial e ninguém se queixa das suas atitudes, dos seus procedimentos, ainda que alguns não quadrem bem com o famoso RDM.

Um Abraço

Manuel Amaro

Anónimo disse...

Paulo

Esse Alf Domingos da 26ª CCom. tinha sido aí na Guiné Aspirante?Sabes se ele tinha estado em T.Pinto em 71(Aspirante?)

Um abraço

Luis Faria