sábado, 4 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4639: Histórias de José Marques Ferreira (1): A minha relíquia da Guiné é um lindo punhal



1. Mensagem de José Marques Ferreira, ex-Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Guiné 1963/65, com data de 1 de Julho passado:


Camaradas,

Esta é a minha primeira participação neste blogue. Já enviei, em tempos, os meus elementos identificativos que, entretanto, me haviam sido solicitados.

Pelo muito que tenho lido por aqui, neste nosso blogue, há factos vividos por camaradas nossos, que nos deixam um tanto ou quanto fora de órbita. Porque, como se hão-de aperceber, felizmente para mim durante dezasseis meses, apenas fiz turismo na Guiné!


Para desanuviar os vossos tão aterradores relatos, esta minha primeira participação tem a finalidade de tentar fazer, com que o “ambiente” se torne menos pesado.

Espero que alguns de vós tenham a pachorra de ler esta minha história e lhes dê, pelo menos, alguma vontade de sorrir. Para mim já era bom...

Seguem em anexo algumas fotografias, uma delas de um punhal que tenho aqui em casa e ao qual se refere esta narrativa e, as outras, são da localidade de Ingoré - anos de 1963 - 1964.

Numa das fotos, vê-se uma reunião de autóctones, em atitude de "ronco" e, ao fundo, parte das então instalações primitivas da Companhia de Caçadores 462, que se situavam do lado da estrada que ia para Barro, lado nascente.

Outra foto, onde se vêm as instalações mais perceptíveis, mas não se vê o refeitório, camaratas, etc.

Na última foto, havia mais "ronco", já não sei de quê . Nela se nota a casa, que foi alugada pelos militares, para as instalações de cripto, comunicações, secretaria e até dormitório dos oficiais.


Lembro-me que o dono desta casa, que anteriormente a utilizava para a tradicional actividade comercial e que ficou com a outra casa, logo ao lado, desenvolvendo a mesma actividade.

Era do concelho de Oliveira de Azeméis e chamava-se Artur (só me lembro do primeiro nome).

Esta história está também no meu blogue: "terrasdomarnel.blogspot.com", assim como outras, para quem quiser fazer o favor de consultar.

Aqui vai a história:

Carabana Xerife era uma tabanca (aldeamento), paredes meias com a fronteira do Senegal, próximo de Ingoré, tendo ainda a meio caminho a tabanca de Ingorézinho.

Haviam informações de que o inimigo (IN) tencionava atacar Ingorézinho. Foram tomadas algumas precauções e, entre elas, uma secção foi destacada para dormir lá, tendo em atenção as suas dimensões e a sua situação estratégica, acrescidas pelo facto que constituía a "qualidade" dos seus habitantes.

Não sei a data exacta deste acontecimento (talvez meados de 1964), porque havia muita chuva, como é costume na Guiné, na chamada época “das chuvas” (que aconteciam habitualmente a partir dos meses de Maio).

A páginas tantas fomos acordados e foi-nos pedida uma "dúzia" de “voluntários”, que pretendessem ir a Ingorézinho, pois as comunicações (via rádio), davam conta da presença de alguma "malta IN", que estava a “chatear”.

Pensei eu então : “E logo ao fim de mais de um ano, em que se havia poupado alguma verba ao Orçamento de Estado Português, pois toda a gente se limitava a ter em boas condições de funcionamento as suas armas individuais e as respectivas munições (que ainda eram as mesmas do início da comissão)”.

Ou seja, tínhamos passado quase despercebidos o tempo todo... ninguém se lembrava de nós... era só turismo... e agora?

Entre o grupo voluntário que foi ao encontro da secção fiz-me incluir e lá fomos a correr, ao longo da bolanha, em direcção a Ingorézinho. Ainda não havia os acessos que agora existem.

Tínhamos de ir a pé... embora talvez existisse um acesso àquela tabanca pela estrada que ia para Barro, mas bastante longe, já não me lembro bem.

Ali chegados, juntamente com o comandante de Companhia, fomos mais à frente até Carabana Xerife, a tabanca fora atacada e destruída e, na presença do furriel que comandava a secção, o capitão perguntou:

- Chegaram a vê-los? Não foram atrás deles?

O furriel respondeu que sim, mas que deram com a fronteira e, este, entendeu que não devia ir mais além.

Como não tinha ainda decorrido muito tempo, o capitão desata a correr, passa o marco da fronteira, por sinal um marco de dimensões razoáveis, de pedra e cal, que não deixava margem para dúvidas sobre a delimitação dos terrenos (qual marco que delimita as nossas propriedades), e todos nós toca a correr atrás dele, entrando uma distância ainda razoável em terreno de outro “dono”.

Foi tudo infrutífero, porque o grupelho (não seria ainda um grupo organizado para a guerrilha, sem meios que não fossem algumas facas, catanas e caixas de fósforos) tinha desaparecido.

O resultado deste alvoroço todo (porque não foi outra coisa comparado com aquilo que, na mesma região e local, passaram camaradas nossos, cujas histórias estão contadas em blogues e outros locais internautas), apenas resultou na destruição da tabanca pelo fogo ateado pelo IN.

Só vos digo que nunca vi tantas galinhas, cabritos e porcos estorricados, entre as palhotas todas destruídas.
Eu não tenho fotos do local, sei que existem algumas, mas não posso precisar quem as tem...

A população foi recolhida para próximo do aquartelamento, junto a Ingorézinho.

Quando eu regressava da inglória perseguição ao IN, já o sol raiava. Ao passar junto a uma enorme árvore, reparei que junto dela estavam folhas frescas todas amachucadas, com sinais que o grupo atacante ali teria estacionado e aguardado o melhor momento para o golpe.

Senti então uma necessidade fisiológica, ainda dentro do terreno do Senegal, e tive que me aliviar, o que fiz junto da citada árvore...

Como estava inquieto, olhava sempre em várias direcções, até que vislumbrei no solo um punhal bastante "jeitoso", que logo apanhei e coloquei no cinto das cartucheiras.

Quando cheguei junto do capitão, como era minha obrigação dei-lhe conta do achado daquela prova "incriminadora", entregando-lha.

Chegados ao aquartelamento, como nessa altura eu era o "administrador" da companhia (não havia primeiro-sargento e como eu, na vida civil, era empregado de escritório, com conhecimentos de contabilidade dos antigos cursos das Escolas Comerciais e Industriais, tinha sido convidado para tarefas administrativas), lá tive de dactilografar o relatório da “operação”, que entretanto o capitão havia manuscrito.

Terminado o relatório, fomos dar um "passeio" até Bula (comando operacional do Batalhão de Caçadores 507 (Ten Cor Hélio Felgas), que depois foi substituído pelo Batalhão de Cavalaria 790 (Ten Cor Henrique Calado), entregar o mesmo e o punhal.

No meio destas Unidades Militares, convém esclarecer que eu pertencia à Companhia de Caçadores 462, procedente de Chaves.

A história do punhal não ficou por aqui, pois nunca deixei de "chatear" o Capitão Milicinao Jorge Saraiva Parracho, para que o punhal - que nada dizia e ajudava à solução de qualquer problema (a não ser uma hipotética ligação ao grupo assaltante) -, me viesse a ser devolvido, já que constituía, para mim, uma "relíquia" da Guiné.

Este meu comportamento acabou por dar resultado, pois um dia, numa deslocação Bula (de que eu fazia parte), apareceu-me o capitão com um envelope na mão, que me entregou. Dentro dele, estava o punhal que eu tinha encontrado em terreno do Senegal (graças ao tal alívio fisiológico que me fez parar).

Naquele período de tempo, era uma guerra que até dava para isto...

Eis o punhal na foto acima, que tem uma bainha feita em cabedal por um artesão de Ingoré.

Penso que posso terminar a dizer, com a liberdade que hoje temos, que:

Nas "Conversas em Família" do Prof. Marcelo Caetano, dizia ele que o Senegal protestava, constantemente, pelo facto de se invadir o seu território, por parte das nossas tropas. E justificava-se que, em guerra e tão próximos da fronteira, como resultado da refrega, era natural que alguns projécteis saídos dos canos das armas ligeiras (ainda não havia em Ingoré canhões sem recuo, na altura em que lá estive), fossem cair "acidentalmente" no Senegal. Mas... invasões? Nunca!...

Ria-me (em casa) porque sabia o que se passava. Mas tinha, para mim, uma outra interpretação, é que os marcos da fronteira estavam separados e só eram descortináveis, de longe a longe, a pequenas distâncias. Quer dizer que, na floresta, numa perseguição, não se dava conta da fronteira, porque não tinha qualquer vedação mesmo que fosse de arame, além dos referidos marcos, nalguns casos indetectáveis e, ainda por cima, camuflados pela vegetação.

Que se invadia o território, invadia-se… mas posso afirmar que, a maioria das vezes, era feito sem qualquer intrenção!

Nota final - A tabanca destruída, foi posteriormente reconstruída por uma das últimas Unidades sedeadas em Ingoré, de que fazia parte o Manuel Silva Ferreira Martins (mecânico) e o Armando Santos (maqueiro), que ficou ainda algum tempo por lá, na tabanca, dando a colaboração da sua especialidade à população.



Fotos: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.

Um abraço,
José Marques Ferreira
__________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

1 comentário:

Anónimo disse...

José Ferreira

Gostei da leveza com que que descreveste a acção que vos levou à "invasão" do Senegal e a consequente captura dos despojos de guerra,que ainda hoje mantens,com todo o carinho,de certeza.

Parabens
Luis Faria