quarta-feira, 8 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 6 de Julho de 2009, com um belíssimo texto que se transcreve mais abaixo, integrado na série Vindimas e Vindimados:

Carlos, camarada

Para não perder o ritmo aqui vai mais um texto com mais um abraço. Quer dizer, com muitos abraços, como verás na leitura dele. José Brás


ACHAMOS NÓS QUE NÃO NOS CONHECÍAMOS*

Cego sou
e surdo
porque passas tão perto
e não te vejo
nem oiço
fazendo o teu caminho
no poema de Machado
prolongamento apenas
de ti próprio

Achas tu que não nos conhecemos, que nunca nos encontrámos por aí, em anos perdidos nas baiucas fadistas de Lisboa; nos aviões da TAP a caminho das praias do Brasil em setenta, oitenta, noventa; em cinquenta e tal, alombando sulfates entre cepas velhas, nas colinas de vinha em Alenquer; no Niassa, em Novembro de sessenta e seis, entrando nas escuras águas da Guiné; na pista da Portela, em noventa e três, comendo trolha da polícia de intervenção; nos Invernos do Quebeque, neve, dias de sol nas fachadas da rua Ste. Catherine, Alten Munchen à noite, música bávara, Eisbein e... gajas; nas sessões de jazz do Berkeley College of Music em Bóston; em setenta e cinco, nervos à flor-da-pele, medo a sério maior que nas matas da Guiné, por colar papéis do partido nas saídas do metro, em Nova Yorque, em lugares de passagem de portugueses duas vezes, de madrugada a caminho do trabalho, à noite de volta a Greenwich Village e ao TV diner; Em Vila Franca, em sessenta e poucos, poupando na mesa os sete e quinhentos indispensáveis para ver "A Casa de Bernarda de Alba" pelo Teatro Moderno de Lisboa; no sol das arenas, descoordenado do tempo, abraçando toiros e escutando a voz quente das multidões, nas escadarias do hotel D. João III, em Luanda, no ano da independência, protegendo colegas da TAP, mulheres sem guerras no pelo e a gramarem com ataques do MPLA à Unita, metralhadoras, bazookas, morteiro no terraço; nas noites de farra de desquitadas na discoteca do Intercontinental de S. Conrado; nos cagaços pioneiros do ultraleve.

Que não nos conhecemos, dizes, ou pensas, e até estranhas que misture aqui tão diferentes lugares e tempos, que os amasse como se a vida e o viver não fossem mais que uma página em branco no monitor do portátil onde cada qual possa escarranchar palavras, botar a palavra ao ritmo do que lhe vem à tola, mesmo que nas palavras que amontoa, nada diga sobre a vida, digo, sobre gente, sobre aspirações de cada um, os desejos, as diabruras e virtudes, sempre maiores aquelas do que estas, e que, além disso, passe pelo tempo sem direcção nem sentido cronológicos, hoje ontem e amanhã arbitrariamente amontoados.

E pelos lugares também, na estrada de Buba, segurando nos braços o Marques a apagar-se. A apagar-se lentamente como pavio sem cera que o alimente, a respiração a ir-se, cada vez mais ténue, mais ténue, mais ténue, até se apagar de vez, os olhos abrindo, abrindo, fitando não sei o quê, fitando o nada de onde viera há vinte anos e onde voltava agora, definitivo.

A estrada de Buba em sessenta e sete, antes das vinhas da Cova do Charco, em Alenquer, em cinquenta e oito.

Os teatros "Off Brodway", em setenta e quatro, antes da praça de Touros de Salamanca em setenta.

Afinal, pisaste alguns dos caminhos que eu trilhei; olhaste horizontes que também eu olhei; desejaste mulheres que eu havia desejado já, ou desejei depois; ansiaste metas que também eu sonhei; sob o fogo do inimigo, buscaste abrigo nas mesmas árvores tropicais que me haviam protegido a mim; mergulhaste nas quentes e azuis águas dos trópicos, almoçaste as mesmas salsichas, bebeste a água das bolanhas que eu bebi, quando a falta de água nos deixava ansiosos e de vontade frouxa contra a sede, sofreste as mesmas nuvens de mosquitos entrando nos olhos, na boca, no nariz, passaste o Natal dormindo dois minutos de cada vez, entre um ataque e a espera de outro, como eu dormiste dias e noites ao lado das caixas que guardavam amigos, esperando transporte para Bissau, primeiro, e depois Lisboa, aldeias no Alentejo e nas Beiras, nome de rua.

Então, porque estranhas tu que eu fale como se nos tivéssemos encontrado realmente nestes actos e nestes lugares, e em nós os milhares de amigos que connosco, entre sessenta e três e setenta e quatro se tramaram como nos tramámos nós?

Só porque não esbarrámos de frente, num desses lugares que nomeio, à hora xis do dia ípsilon, do mês tal de milnoveetrocaopasso?

Não bebemos juntos umas Sagres, ou Cuca, ou Budweiser, ou Labatt, ou Brahma Chopp numa esplanada do calçadão, olhando piranha e viadinho?

Não tomámos outro veneno qualquer no mesmo balcão de single bar, em grupo data-hora perfeitamente identificável e coincidente, nos bate-fundo do mundo?

Só porque não concordámos ou não discordámos sobre temas comuns, nas horas vazias de cada um, fosse aonde fosse, afirmando coisas como se as perguntássemos, de tantas dúvidas que nos enchiam, a mim, a ti, a todos, ou quase, apanhados do clima que éramos nos anos que deveriam ser de certezas?

O tempo e o lugar, o grande tema!

O lugar. Os lugares nem sequer nos desviaram do encontro.

Tu dizes.

Talvez! Talvez que tenhamos em comum alguns desses sítios, muitos até, posso dizer, porque além do lugar dos tiros e dos medos, terras, ruas e praças de que falas, não todos, evidentemente, já eu atravessei também, mas em tempos diferentes, no calendário, nos relógios, na posição relativa da Terra e do Sol.

O tempo. O tempo, talvez.

Mas o tempo o que é, de facto?

Olhas para trás, em sentido figurado, está visto, não com o olhar dos olhos, com a capacidade que têm de imitar a câmara fotográfica, apanhando objectos e pessoas, cenas, actos honrados ou vilezas, fixando-lhes a imagem de pernas para o ar na retina, essa espécie de película de longínqua invenção, elo apenas no transporte delas ao sistema nervoso central para identificação e feed back.

Olhas é com a memória que tens das coisas e das gentes, das cenas que representaste antes, num ponto qualquer dessas entidades que dizem ser o tempo e o lugar, as alegrias e tristezas que dizes ter vivido e trazes ao hoje como se as vivesses agora mesmo e não ontem ou há mais de trinta anos.

Retomas o lugar que decidiste ser o teu durante a noite da emboscada, coordenando o silêncio da mata, coordenando as dúvidas dos teus, escondendo as tuas porque quem comanda não pode ter dúvidas.

Retomas os passos na picada, olhos e ouvidos atentos, os nervos crispados por ti e pelos que de ti dependem, cada passo em frente uma vitória.

És tu e podia ser eu, milhares e milhares de eus iguais nas ânsias, no cansaço, na certeza de que, venha o que vier, nada há de melhor que a certeza do futuro.

Não é seguro que as emoções trazidas em cadeia no processo, sejam as mesmas que talvez tivesses sentido então, tal como eu, ou sendo, não tenham a mesma profundeza, o mesmo brilho, a mesma rugosidade.

Mas não interessa aprofundar muito isso, ou corres o risco de mentir-te a ti próprio, afirmando que sim ou que não.

Quem sabe se não é aí, nessa falha, nessa fímbria de descoordenação, que podemos encontrar a essência do tempo e, nesse caso, a mim me parecendo que não vivemos apenas uma vez mas duas, três, muitas, tantas quantas as vezes que voltamos ao vivido, então, continuamos pelos dias regressando à mata, à messe, às noites de espera, ao cheiro a podridão que o sol faz levantar da bolanha, ao primeiro som cavo da explosão da morteirada, às cinco da manhã, ao abraço, sentimento de união que só ali foi possível, e continua sendo, e solidamente real.

E mesmo esse espaço indefinido a que chamam futuro, mesmo esse que, aparentemente não conseguimos divisar, o que é?

Repara.

Nenhum homem é apenas o que é hoje, mas também, hoje, muito do que foi antes e alguma coisa do que vier a ser depois.

E assim sendo, um homem nunca foi apenas o que foi, mas a cada momento do que foi, também o que é, e alguma coisa do que vier a ser.

Um homem não será nunca, apenas o que vier a ser no futuro, mas a cada momento do futuro, também o que é já hoje e o que foi antes.

Quer dizer, então, que o antes, de algum modo, era já o hoje e o futuro.

Quer dizer então e ainda, que o hoje, o antes e o futuro, tempos aparentemente tão definidos e distantes, mas, de facto tão entrelaçados, tão confusamente emaranhados, tão dependentes uns de outros, são apenas partes do todo da vida e tanto poderiam entrar no princípio, como no meio, como no fim dela.

O nosso futuro irá ainda passar muitas vezes pelo Xitole, por Guileje, pelo K3, por Susana, pelo tarrafo, pelos rios, pelo coração de tantos amigos e, quem sabe, mesmo pelos dos inimigos, vivos todos, porque em nós vivem mesmo os que dizem ter morrido.

Como vês, milhões de vezes nos cruzámos já e muitos mais milhões nos iremos encontrar num tempo assim, sem fim nem princípio.

Por exemplo, no Saltinho, cacholando as suas águas claras; no Mato Cão, em Catió comendo ostras, no instintivo mergulho ao chão ao primeiro tiro deles, depois, o coração a retomar o ritmo certo, a segurar os acontecimentos, a segurar-se a si próprio; na padiola improvisada, carregando camarada ferido, se não morto ou caminhando para tal, vencendo o estorvo da mata apertada que fustiga a cara, as mãos, a alma, até a um "porra, caralho, puta que pariu isto!".

Que nem blasfémia é, por vir de dentro, da revolta ingénua e sentida contra o limite; ou em quarto abarracado da Guiné, jogando a lerpa e o abafa, bebendo qualquer coisa que preencha apenas vazios intermitentes no acto de beber.
Soldados fomos e certamente somos ainda, um pouco, tendo sido nesse tempo, também, o que somos hoje, civis.

E teremos ainda tempo, talvez, outras coisas para ser na vida que nos resta, marcados pelo que fomos então, marcados pelo abraço grande e colectivo que daremos sempre, no som da costureirinha e do morteiro, longínquos nos anos, segundo se diz, mas para nós, intemporais.

E achei eu, também, que não nos conhecíamos!
Todos.
José Brás

*Ao Joaquim Mexia Alves,
camarada primeiro a quem
dei troco na Tabanca Grande,
e através dele, aos outros que
estão em nós, aos nós que
estão nos outros



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O Joaquim Mexia Alves em agradável conversa com o José Brás... Este último foi Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68... É autor de um premiado romance, de 1986, Vindimas no Capim (Lisboa, Europa-América) (**). Pertenceu aos quadros da TAP. Mora em Montemor-O-Novo.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

3 de Julho de 2009 A Guiné 63/74 - P4636: Vindimas e Vindimados (José Brás) (5): Tudo na mesma em Salancaur
e
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4649: Blogoterapia (114): A Honra da Companhia, os fantasmas de Guileje, os limites da tolerância (José Brás / António Matos)

(**) Informação que foi pedida ao José Brás por um significativo número de amigos e camaradas em Ortigosa, e não só, que querendo adquirir o Vindimas no Capim não conseguem encontrá-lo.

ASS: Aquisição de Livros
Mem Martins, 8 de Julho de 2009

Caro José,

Espero que esteja bem.

Vimos por este meio informá-lo que poderão adquirir o seu livro nas nossas
livrarias Europa-América (Castelo Branco, Estoril, Faro, Lisboa, Parede ou
Porto) e Lyon (Cacém, Castelo Branco, Mafra, Mem Martins ou Queluz) ou
através da nossa sede (219 267 700, e-mail: clubedeleitura@europa-america.pt
ou através do nosso website: http://www.europa-america.pt/ ).

Sempre ao dispor.
Os meus melhores cumprimentos,

Inês Valentim
Relações Públicas

6 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Claro que nos conhecemos!
Como poderíamos nós não nos conhecermos se percorremos os mesmos caminhos que a vida nos quis trazer?
Que interessa o tempo, o espaço, o lugar, se quando a amizade, ou melhor a “camarigagem”, irrompe, tudo deixa de ter tempo, espaço, passado, presente ou futuro.
Sentados uns no calçadão e outros quase em frente, na esplanada da Barracuda, da Ilha de Luanda, ou em ilhas plantadas no meio do Atlântico, mas ainda a remoer tudo o que foi vivido e tudo o que falta viver.
Como poderíamos nós não nos conhecermos, se tudo o que vivemos não nos permite esquecer, até porque nós não o queremos.
As lembranças das noites na mata, fazendo a emboscada, ou esperando a coluna. Seriam frias as noites, ou o frio era interior?
Em frente é que era o caminho, sempre em frente e mais além, que já lá vem a Nau Catrineta, que tem muito que contar…
Claro que nos conhecemos, “ambos os dois”, e todos os outros também, porque não são os olhos que vêem, não são os ouvidos que ouvem, não são as bocas que falam, quando irrompe a “camarigagem”, são os corações que sentem, que vêem, que ouvem e que falam.
Ah, e os corações dos camarigos nunca se enganam quando “camarigam” unidos!


Ler-te foi uma emoção, reconhecer-te um sentir, responder-te um prazer.
A ti e a todos, José Brás, um abraço camarigo do tamanho do conhecimento!

Anónimo disse...

Li com muito gosto.
.... já apaguei várias frases, várias , que te ía enviar.
Nada ía dizer de novo...
Afinal conhecemo-nos ..Não sabia é que escrevias tão bem sobre as nossas vivencias.
Um abraço
Jorge Félix

Anónimo disse...

Zé!

Porra!
Não queiras que volte a correr à frente do Maltez do Edif. 25 até à oficina de motores.

Gostei!

Assim te reconheci, neste belo "Naco" de escrita.

O Futuro? É ciência de previsão!

O passado e o presente (agora) vive-mo-lo. E isso é muito importante.

Por vezes sinto algo que me atormenta, por te meter o "veneno" deste cantinho saboroso que é a nossa TABANCA.

Acho que independentemente da forma de ver as coisas, és muito importante aqui!

Na pluralidade das ideias e na diferença de vermos a guerra e seus efeitos, está o elo que nos une a todos:

"Tão diferentes, mas tão iguais naquilo que nos une"

Retirando a palavra chave de um amigo comum, fica aqui algo que me é gostoso dizer:

"VEDE COMO ELES SÃO CAMARIGOS!"

O abraço de sempre do tamanho do Cumbijã,

Mário Fitas

luis dias disse...

Caro José Brás

Ler-te foi um prazer. Ler-te foi um reviver emocionado do passar dos nossos dias.
Estendemo-nos e olhamos para o cimo, aguardando pela partida, que se espera que seja o mais tarde possível e que será sempre e também uma chegada.
Conhecemo-nos é claro. Foi aquele "mato" que nos juntou, que reuniu tanta gente que estava espalhada pelo país, ali fomos os irmãos que ficaram em casa, a família importante que rezava por nós e os amigos que ficaram para trás e que nos traziam tanta saudade.
Conhecemo-nos!!!! Esta é a fé que ainda vai alimentando a nossa alma.
Bem hajas pelo que escreste.
Um abraço do tamanho das Tabancas que envolviam Dulombi e Galomaro.
Luís Dias

Anónimo disse...

Amigo Zé Brás,
tem o ímpeto de sempre, o teu escrito. E ainda bem... (parabéns)
mas!
achar que 'nos conhecemos', todos, naquele lugar comum que se afigura teres querido delimitar, constitui uma tamanha diluição das referências que se pode tornar desajustado ou aviltante.
As 'irmandades' da Guiné, como outras de outras 'guerras', serão técnicas ou afinidades reinventadas e meramente sectoriais, estritas, de cada um. Não há duas morteiradas iguais!

Um abraço
Salvador

José Martins disse...

Informação:

1 - A Bertrand não comercializa livros da Europa-América (informação telefónica de há minutos)

02 - Pesquisa efectuada no sitio da Biblioteca Municipal de Dom Diniz, em Odivelas » Disponivel

Título: Vindimas no capim/José Bras
Autor(es):José Bras
Edição: 2ª ed
Publicação:Mem Martins : Europa-América, D.L. 1987
Descrição Física:187,[2]p.;21cm Colecção:(Século XX ; 284) Localização: 82.POR-3 BRA (BMDD) - 02988
Veja também... CDU 82.POR-3
Brás, José

Um abraço
José Martins