sexta-feira, 10 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau


1. Continuação da publicação das memórias de Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/ BART 2917, e que esteve em Bambadinca entre Maio de 1970 e Maio de 1971 (A sua comissão terminou mais cedo, um ano depois de ter chegado a Bambadinca, por decisão do Com-Chefe, ao que se sabe). Vive actualmente em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores (RAA). Está reformado como enfermeiro do Serviço Regional de Saúde da RAA (*).


  MEMÓRIAS DE UM CAPELÃO II - RECORDANDO... DE VIANA DO CASTELO A BISSAU por Arsénio Puim 


 No dia 2 de Março de 1970, o BART 2917, em que me integrava como alferes-capelão, já deixara a Pesada [, o RASP 2,] em Gaia, e encontrava-se na linda e pequena cidade de Viana do Castelo, para fazer o IAO. 

 Foram dois meses e meio de intenso treino operacional, incluindo um acampamento, em princípios de Março, na serra, para as bandas de Santa Luzia, em que também participei. Um ambiente duro, onde faltava tudo o que pudesse saber a conforto. E, sobretudo, que frio, meu Deus, durante a noite! 

 A despedida oficial do Batalhão ocorreu no dia 6 de Maio [de 1970], com desfile pela cidade e Missa solene da Unidade na bonita igreja renascentista de S. Domingos. À homilia realcei duas ideias principais que a Missa, como acto de culto ao Pai da humanidade e de comunhão da Palavra e do Pão, nos deveria inspirar e consolidar: (i) por um lado, o espírito de comunidade que deveria imperar no Batalhão 2917 ao serviço das terras da Guiné, onde íamos viver; (ii) e, por outro, os valores humanos e cristãos que devem ser apanágio de todos os homens de boa vontade em quaisquer circunstâncias. 

 «Os exércitos, referi, também têm a sua mística altamente humanitária - que não a guerra, porque essa não poderá ser um ideal ou valor em si – mas a defesa do direito de todos, a garantia da liberdade dos povos, a consecução da paz justa». Só a 16 de Maio, à tarde, deixámos Viana do Castelo, a caminho de Lisboa. Deu-se, logo à saída, um percalço: mesmo em cima da ponte, o comboio parou de repente. Acontecera que um elemento do Batalhão ficara atrás e alguém, vendo-o correr na direcção do comboio, puxou a alavanca de emergêrncia. Ao longo do percurso, muitas pessoas juntavam-se à beira do caminho de ferro e despediam-se, acenando carinhosamente. 

 Pelas 12,30 horas de 17 de Maio largámos do Cais da Rocha, [em Lisboa,] no Carvalho Araújo, em direcção à Guiné. Um clima de emoção, à mistura com a alegria ruidosa dos sempre bem dispostos, caracterizou a despedida. Volvidos cinco dias, tendo como único horizonte o mar, o Carvalho Araújo atracou, pelas 22 horas, no porto comercial da ilha de S. Vicente, onde desembarcámos até à uma hora. E, pelas 6 horas da manhã, depois de podermos apreciar a grande e bela baía do Mindelo, continuámos a viagem, agora com mar um pouco mais agitado. 

 Às dez horas do dia 25 de Maio entrámos no Canal do Geba, muito largo e envolto por uma neblina acinzentada que mal nos deixava ver as margens. Quatro horas depois – tanto demorou o percurso da ria - aportámos, finalmente, em Bissau. Pequena cidade, arborizada e agradável, de traça espaçosa e com capacidade de expansão; presença marcantemente negra, falando habitualmente o crioulo; os homens fortes e bem constituídos, trajam mantos longos ou vestem como os europeus; nos hábitos das mulheres, o pano comprido a cingir o corpo e o lenço em touca, de cores vistosas, contrastam com a mini-saia e o penteado trabalhosamente ripado; fácil convívio racial; calor intenso e derrotante, vida pacata: foi assim que eu vi pela primeira vez Bissau, onde permanecemos alguns dias. 

 No dia 27 teve lugar a apresentação e desfile do Batalhão perante o general Spínola. Na ocasião, o Comandante-Chefe e Governador da Guiné desenvolveu um longo discurso, onde traspareciam conceitos dum patriotismo exacerbado e a aceitação de Portugal como povo eleito. Pareceu um homem de mentalidade fechada, incapaz de compreender ideologias diferentes, todas baptizadas de traição. Para os oficiais da Unidade, foi mesmo duro, chegando a dizer que sabia haver entre eles alguns «mal encaminhados» de ideias. Seria uma frase, de fins preventivos, usual nos seus discursos às tropas recém-chegadas? 

O que sei é que ouvi, mais tarde, Spínola dizer as mesmas palavras numa recepção aos capelães militares da Guiné. Definiu, no entanto, perspectivas de acção pelo progresso sócio-económico do povo da Guiné como único meio de ganhar a guerra, que, disse, «nunca se vencerá pelas armas». E acentuou que ou fazemos alguma coisa nesse sentido, assegurando pelas armas um ganho de tempo para o realizar, ou «não temos nada que fazer em África». 

 Hoje, julgo entrever, nestas palavras do General Spínola, sinais da concepção sócio-política ultramarina que viria a culminar com o projecto, muito «sui generis», do «Portugal e o Futuro», vindo a lume em 1974, ainda antes da Revolução dos Cravos. 

 Arsénio Puim 

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