quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4966: História da CCAÇ 2679 (26): Passeio fronteiriço e, A GMC e o coelho na coluna ao Gabú (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 12 de Setembro de 2009:

Carlos, camarada,

Mais dois nacos de prosa a ver se consigo dizer alguma coisa.
Como habitualmente espero que tenhas a paciência necessária, que antecipadamente agradeço.

Para ti e para a Tabanca vai um abraço fraterno.
José Dinis


Passeio fronteiriço

Entranhámo-nos no mato que adensava. Curiosamente o trilho desaparecera, mas, segundo a minha orientação, seguia numa direcção paralela à linha de fronteira, no sentido de Oeste para Leste. Se por um lado a caminhada era dificultada pela falta de caminho aberto, por outro, a sombra quase constante reconfortava do sol impiedoso. O patrulhamento prosseguia. Tínhamos que andar até outro trilho de ligação ao Senegal, observar eventuais sinais de actividade do IN, e interrogar algum paisano que circulasse entre aldeias de cá e de lá, na medida em que havia ligações familiares de cada lado dos marcos fronteiriços.

Depois de algumas horas de passeio inclemente, abancámos na orla de uma mata para o magnífico repasto proporcionado pela ração de combate proveniente da Manutenção Militar, marca exigente que contratava com os melhores fornecedores, devidamente acompanhado por casqueiro da Companhia e água da bolanha. Ninguém levava cerveja porque com tanto calor tornava-se quase indigesta.
Comia-se por obrigação, sem prazer, fartos do paladar do chouriço, da espécie de paté, da marmelada espremida de um tubo. Mas era o que dispúnhamos, e o que tem que ser, tem muita força. Da ração de combate só o leite achocolatado era geralmente incontestado.

Era um dia seco e quente no fim da época das chuvas. O pessoal descontraía-se na medida do possível, já que o IN também não se deslocava àquela hora. Dormiam alguns, galhofavam outros, e havia quem se isolasse com o pensamento no belo sexo da namorada.

Em certa ocasião, porém, já com o pessoal desperto, aproveitei qualquer alusão a acontecimentos fatais em consequência da guerra, para voltar ao assunto e, através da conversa, apurar a evolução do grupo, no que respeitava às capacidades lúcidas em situação de combate, e ao determinismo de cada um.

Ainda houve quem me respondesse que faria fogo de rajada, com intenção de intimidar o IN e mantê-lo à distância. Voltei a advertir que essa reacção era típica dos cobardes, tonta e perturbadora do grupo. Referi que cada tiro dado devia corresponder a uma intenção objectiva para eliminar o adversário. Que ninguém devia iniciar uma acção de fogo sem o meu consentimento. Que não perdoaria, se fosse nossa a iniciativa. Em caso de reacção, a cada tiro disparado teria que corresponder um inimigo abatido, e disso também não abria mão.

No geral, porém, a lição estava sabida, apenas notei que dois ou três nunca teriam a iniciativa de disparar, limitar-se-iam a fazer o que vissem fazer, nem imagino com que resultados. Repisei a ideia de que em situação extrema de guerra, em combate, o nosso êxito dependeria essencialmente da acção coordenada do grupo, e que a comunicação entre nós era primordial. Acrescentei que em caso de sermos atacados, devíamo-nos dispersar um bocadinho, sempre com a maior cautela, para garantirmos um espaçamento de segurança, e aparentar maior capacidade de resposta; e afastarmo-nos das viaturas e das árvores para evitar estilhaços de eventuais rebentamentos. Somente nos extremos do Pelotão deveriam estar pelo menos dois elementos, para melhor controle da situação. E devíamos ser tão calmos quanto possível para permitir a comunicação oral, gestual e visual.

Volta e meia era um chato, mas as noções parecia terem sido apreendidas e não houve sinais de enfado.

O pessoal agora brincava, que uns seriam nabos à vista do inimigo, e estes ripostavam que não lhes pedissem ajuda pelas aflições. Era bom o espírito e sedimentava a organização do Foxtrot. Intimamente só desejava que não houvesse necessidade de praticar estas teorias. Entre nós não havia vocações para heroísmos. Se esses actos acontecessem, que fosse pela melhor intuição para salvarmos a pele. Mesmo assim ainda deixaram uma critica velada, que alinhávamos demais, que tínhamos mais mato que os outros Pelotões, que parecia que eu gostava daquelas andanças.

Levantámos ferro de regresso a Bajocunda. No local deixámos as embalagens da M.M. como prova de que nos deslocávamos em toda a ZO da Companhia, mas em desacordo com as emergentes teorias ambientais.


A GMC e o coelho na coluna ao Gabú

Como periodicamente acontecia, calhou ao Foxtrot fazer a coluna a Nova Lamego. Todos os dias era garantida a picagem de Tabassi para Bajocunda pelo Pelotão que ali se deslocava para passar a noite. Entre Tabassi e Pirada competia a esta garantir a picagem. No sentido de Pirada para Nova Lamego não sei como se processava, mas não tive conhecimento de qualquer engenho ou acção do IN naquele percurso que, para nós, era da maior confiança, relativamente à ligação directa de Bajocunda para Gabu, menos quilómetros, mas piso mais difícil e segurança menos fiável. Acresce referir, que em Pirada morava o comerciante com melhores relações, quer com as autoridades senegalesas, quer com o IN, segundo alguma especulação. Por isso, só raramente nos deslocávamos pela estrada Bajocunda/Nova Lamego.

Como de costume, ao aproximar-me das viaturas, apesar do secretismo da organização, já se alojava nas carrocerias uma quantidade indeterminada de civis, principalmente mulheres, crianças e velhos, com animais domésticos para negócio ou oferta, mais sacos de milho ou mancarra. Como de costume, também, dirigi-me ao Capitão questionando-o se se responsabilizava pela segurança dos civis, ao que, repetidamente, ele respondia que era comigo levá-los ou não.

Devo referir que a minha atitude derivava de um auto de corpo-delito levantado a um alferes da anterior Companhia de Artilharia em Bajocunda, que ficou em Bissau a aguardar a decisão da Justiça Militar, em resultado da responsabilização pela morte de um civil a quem dava boleia, que se finou por ter dado uma cabeçada numa árvore durante a deslocação da coluna que ele comandava. Nestes considerandos eu não autorizava boleias a civis, era o único a proceder assim, e havia toda uma reacção daquela gente que, primeiro faziam-se desentendidos das minhas indicações, depois saíam das viaturas com a tralha e um argumentário pesaroso.

Ora, em primeiro lugar eu estava ao serviço do Exército Português, não ao serviço da população; em segundo lugar, se o Capitão se demitia de alguma acção social, não seria eu quem iria arvorar-se em bom samaritano, e correr riscos desnecessários. Naturalmente atraía o odioso da questão, mas não era relevante para mim.

A coluna deslocava-se como habitualmente, até que, no cruzamento de Sónaco, fizeram-me sinal para parar. Uma GMC estava no limite da temperatura do motor. Aberto o capot foi com surpresa que vi a cabeça do motor com a cor do fogo, dir-se-ia que prestes a fundir. Causou a admiração de todos, e logo aquela viatura que se destinava a carregar mercadoria. A razão era simples: fizera cerca de quarenta quilómetros sem correia de ventoinha, o que era absolutamente fantástico.

A coluna prosseguiu rebocando a velha GMC que, depois de passar pela oficina, regressou a Bajocunda cumprindo a função.

No Gabu, o pessoal precedeu às diligências do costume, carregavam a importante cerveja e demais mercadoria, alguém ia ao correio levar e trazer a correspondência, enquanto eu me apresentava ao Major que não me ligava peva.

Depois estávamos livres para almoçar.

Tinha por costume passar por um bar em frente ao Comando, lugar centralíssimo, onde o pessoal de diversas proveniências costumava afluir. Por vezes encontrava malta conhecida, trocávamos dois dedos de conversa, tomávamos cerveja ou aperitivo, martini ou gin, até abalarmos para comer.

Não sei como nem porquê, em Nova Lamego gostava de me encher com o coelho guisado, acompanhado por duas ou três cervejas, que amainavam o calor acentuado pelo guisado picante. Era a especialidade do último restaurante à direita, no inicio da estrada para Sónaco, no limite da localidade. O clima da Guiné não parece apropriado à criação de coelhos, e o negócio dos produtos congelados, naquele tempo, não estaria tão desenvolvido que fizesse chegar coelhos ao leste da Guiné. Tudo o indica, e cochichava-se, que comíamos gato por coelho. Mas era bom.

Pelas duas, duas e meia, uma viatura dava a volta pela localidade, recolhia o pessoal e regressávamos a casa, cerca de duas horas de viagem. Era quando o calor mais abafava. Depois do cruzamento para Pirada, e um pouco de andamento, chegávamos a uma fonte, e uma espécie de tanque, onde as lavadeiras exerciam o seu mister. Sobre a viatura eu transpirava abundantemente, em resultado da digestão, combinada com o calor ambiente.

Nesse lugar havia paragem obrigatória. Eu descia, cumprimentava as mulheres, e servia-me daquela sabonária enriquecida com insectos e outros pequenos organismos. Bebia uma cabaça daquela água. Não morria de sede, mas podia lerpar da aleivosia.
Depois disso era acelerar até Bajocunda.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)

2 comentários:

MANUEL MAIA disse...

CARO ZÉ,

A TUA DESCRIÇÃO,DE TÃO PERFEITA, FEZ-ME RECUAR NO TEMPO,E RELEMBRAR O ARROZ CIMENTO OU O ESPARGUETE COM CHOURIÇO COM QUE O VAGUEMESTRE NOS PRESENTEAVA,DE FORMA TÃO SISTEMÁTICA,QUE ATÉ SABIAM BEM,DE QUANDO EM VEZ,AS RAÇÕES DA MANUTENÇÃO...
HAVIA UMAS QUE ATÉ TINHAM CAFÉ...

JÁ NO QUE RESPEITA À "INVASÃO" DAS VIATURAS,NÃO TINHAMOS ESSE PROBLEMA POIS AS NOSSAS OPERAÇÕES ERAM FEITAS SEMPRE "ON FOOT",SALVO UMAS,POUCAS,VEZES EM QUE FIZEMOS PARTE DO PERCURSO EM BOTE(SINTEX).

O MEU PESSOAL ERA DISCIPLINADO E DE QUALIDADE.

Hélder Valério disse...

Caro Zé Manel

Cá vou lendo e acompanhando a tua "comissão".
Desta vez, para além de todo o relato em si e do que ficamos a saber sobre a dinâmica da gestão de grupos, retive particularmente que, segundo afirmas, "volta e meia era um chato".
Tomei boa nota...

Um abraço
Hélder S.