domingo, 18 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5126: Um Casal Garcia, para desinfectar o dente... (Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil, CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73)

O Joauqim Peixoto, natural de Penafiel, a bordo do T/T Niassa

"Ilha de Bolama. Primeira fotografia tirada na Guiné" (JP).

Fotos: Joaquim Peixoto (2009). Direitos reservados




Marco de Canaveses > Paços de Gaiolo > Ambrões > 4 de Setembro de 2009 > Foi aqui que a jovem professora Margarida Peixoto (hoje já reformada do ensino básico) viveu um ano, enquanto deu aulas na Escola de Passinhos / Foz... Na foto, tem à esquerda o marido, o Prof Joaquim Peixoto (ainda no activo) e a Maria Alice, à sua esquerda.

Fonte: A Nossa Quinta de Candoz > 10 de Setembro de 2009 > A Homenagem da Professora Aos Seus Primeiros Alunos (Escola de Passinhos, 1972) (*)

1. Texto do Joaquim Peixoto, professor do 1º ciclo ensino básico, residente em Penafiel, membro da nossa Tabanca Branca, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73:

É com grande expectativa e curiosidade que diariamente ao ligar a “caixinha das surpresas” qual cartola de mágico fazendo sair um coelho da cartola, ou lenços coloridos fazendo lembrar um arco-íris em movimento, o meu computador me leva ao blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

De olhos bem abertos e com toda a atenção leio e releio todos os artigos, deliciando-me com todos os casos narrados e parecendo viver ou mesmo reviver alguns deles.
Logo penso cá comigo:
- Também vou escrever.

Sem mais demandas pego numa folha de papel em branco para o colorir com factos vividos na Guiné. As ideias surgem-me em catadupa, mas a força, a dinâmica para arrancar afrouxa, porque surge o pensamento:
- O que vou escrever?

Os textos que li são tão elucidativos, estão tão bem escritos que … vou repetir por outras palavras o que outros já disseram ?...

E assim, de dia para dia, de pensamento em pensamento eis que surge luz na caverna dos meus pensamentos … Dessa luz nasceu algo que passo a narrar.

Fins de Junho de 1971. Embarquei no Niassa, viajando num meio de transporte diferente do que habitualmente utilizava, tendo como estrada o rasgar das águas do Atlântico e como paisagem um céu azul reflectindo a sua cor nas águas turbulentas e agitadas onde aquele barco se agitava com um sem número de gaiatos, jovens, julgando que já eram homens, partindo não sei bem para onde, nem sabendo muito bem o que os esperava, rumava eu com os outros camaradas com destino à Guiné.

E eis que já farto de água e céu, chegamos à terra prometida Bissau.

Que admiração!
Que espanto!
Que curiosidade!
Tudo era diferente…

Já tínhamos visto negros, mas assim. Tão diferentes na maneira de ser, nas roupagens, nos olhares!... E no entanto tão iguais a nós. Seres humanos, seres com sentimentos sonhos e necessidades como as nossas.

A paisagem deslumbrante, de uma vegetação diferente e uma terra barrenta com um cheiro tão característico, que passados tantos anos ainda o reconheceríamos. O clima dum calor húmido, que nos humedece o corpo mas não o arrefece. Tudo era diferente! Transportava-nos, com os nossos tenros vinte e poucos anos, a um mundo quase irreal. Naquele momento não podíamos nem queríamos fazer juízos de valor nem aprofundar onde estávamos.

Assaltou-me um pensamento:
- Como seria a guerra?

Não tive tempo de imaginar. Uma voz que me pareceu surgir do nada informa:
- Agora vão para a ilha de Bolama. Lá é tudo muito calmo. Não há guerra. Vão tirar a IAO. Só podem usar balas de salva.

E sem mais explicações, nem tempo para pensar, fomos metidos num barco (penso que seria uma LDM ).

Numa calmaria, baloiçando nas águas tranquilas, ladeados por uma vegetação inigualável, surgiu o primeiro contratempo. Um soldado deixando-se embalar por aquele calor tórrido, deixou-se adormecer, sonhando talvez com umas férias paradisíacas. No final da viagem no lugar do sonho que o embalava, tinha um grande escaldão que precisou tratamento médico durante muito tempo.

À chegada a Bolama o espanto foi total. Então não íamos para a guerra? É que no local onde iríamos viver durante um mês, tinha escrito em letras garrafais, embora já comidas pelo tempo:
HOTEL DE BOLAMA

Então isto é a guerra? Como diria o nosso saudoso Raul Solnado : “Cheguei à guerra … mas a guerra já tinha acabado. “

Estava na Guiné, estava num hotel. Não havia guerra. O que havia de pensar?

O tempo ia decorrendo e os corações agitados com a perspectiva duma guerra que não conhecíamos, ia acalmando.

Mas … como não há bela sem senão… Eis que ao segundo dia sou abanado pelo primeiro ataque. Não, não pensem já em vítimas … Foi um ataque de uma enorme dor de dentes. Daquelas que uma pessoa não sabe se grita, se chora, se toma uma piela … ou se simplesmente vai ao dentista.

Era de noite, as estrelas bailavam no firmamento e este silêncio contrastava com o ressonar de alguns camaradas que no meu quarto de hotel (que compartilhava com mais dezassete) dormiam a sono solto, sem se aperceberem que eu estava a ser atacado.
Mas, eis que, no meio da minha dor, do ressonar composto por diversos sons, um barulho muito esquisito feriu os meus ouvidos e contendo a respiração por alguns segundos ouvi um grande rebentamento. De um só salto, todos abandonamos as nossas camas e saímos do quarto.

Era mesmo um ataque a sério. Estávamos a ser atacados por mísseis. (Julho de 1971). Era o nosso baptismo de fogo. E nós, pobres indefesos e inocentes a este tipo de despertar, o que podíamos fazer? Como nos defender? Atirar as balas de salva?

Alheios ao perigo que corríamos ficámos minutos e minutos a falar como se de um fogo de artifício de alguma romaria se tratasse.

E assim, sem reagirmos ao inimigo recolhemos à caverna. Perdão, hotel. Para meu espanto verifiquei que a dor de dentes me tinha passado. Remédio milagroso!!!

Aliviado pela anestesia que tinha apanhado preparava-me para dormir o sono dos justos, quando por artes mágicas o maldito ataque do dente deu a sua réplica e enquanto a dor me martirizava ia recordando com uma certa perplexidade se tinha assistido a um ataque a sério ou se tinha havido uma romaria próximo do nosso local e nós nem a música ouvimos.

Ao romper o dia fui direitinho meter uma cunha ao enfermeiro Furriel Silva para ser o primeiro a ser atendido quando viesse o médico. Amparando a dor com analgésicos fui aguentando a dor até à chegada do médico.

Qual o meu espanto, ao fim do dia, o médico tinha ido embora e eu não tinha sido chamado. O enfermeiro tinha-se esquecido de pôr o meu nome na lista.

Não será difícil de pensar qual foi a minha reacção a tão cruel esquecimento. Procurando no mais profundo do meu ser encontrei as palavras mais cultas e eruditas que se possa dizer a quem nos faz um favor. Assim desde “filhinho da mamã”… até à árvore mais frondosa que nos protege do sol quando o calor nos sufoca, o “carvalho”, surgiram em catadupa uma série de vocábulos que jamais imaginaria um dia transmitir a quem quer que fosse.

No meio do meu desespero, alguém me contou que o médico havido tirado dois dentes a um paciente, quando este se queixou só de um dente. Enganos!!! Ouvido isto, agradeci sinceramente ao enfermeiro Silva o ter-se esquecido do meu pedido e retirei-lhe toda a sabedoria com que o tinha brindado.

Algum tempo depois deste incidente chegou finalmente a minha vez de ir ao dentista. Desta vez já estava em Sare Bacar e desloquei-me a Bafatá numa coluna de reabastecimento. O consultório era no rés-do-chão, com uma cadeira de barbeiro e na parede alguns posters alusivos à nossa mente jovem, com o intuito de nos ir distraindo. Uma janela, aberta de par em par, dava para o exterior e como se de um circo se tratasse o tratamento aos dentes, tinha assistência garantida. Duas negras lindas olhavam boquiabertas (com os dentes duma alvura invejável) para a boca aberta de quem se sentava numa cadeira de barbeiro, não para fazer a barba ou cortar o cabelo, mas para extrair um dente.

E, um gajo já com a cabeça à roda, olhando para o colo desunado daquelas musas encantadas, apontava ao dentista, já meio anestesiado, qual o dente que me doía.
E assim, o competente dentista, apertando o alicate e puxando, como se de um prego se tratasse, arrancou-me o dente mau, sem que eu tivesse qualquer dor e mandou-me sair. Não houve direito a palmas, a assistência limitou-se a observar.

Saí e fui directo a um café comprar uma garrafa de água para limpar a boca.
Hoje, passados quase quarenta anos, posso afirmar que foi o dente que me custou menos a extrair.

Eram dez horas da manhã. Aproximava-se a hora do almoço. Ao meio dia juntei-me com os outros camaradas da companhia para irmos almoçar ao Restaurante Transmontano, o célebre bife com batatas fritas. O proprietário do restaurante, o Sr. Anis, ao ver-me fez a perguntar habitual da qual já sabia a resposta:
- Uma garrafinha de vinho da sua terra, “Casal Garcia”, de Penafiel?
Respondi:
- Certamente, para desinfectar a ferida.

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Nota de L.G.

(*) Margarida Peixoto, natural de Penafiel (com 6 anos de Angola, dos 10 aos 16, em plena guerra colonial), volta a Paredes de Viadores para reencontrar e homenagear os seus "meninos e meninas" da Escolinha de Passinhos / Foz, no já longínquo ano de 1972... Tinha acabado de sair do Magistério. Foi o seu primeiro ano de trabalho. Tinha cerca de três dezenas de alunos, de ambos os sexos, da 1ª à 4ª classe... Nunca mais se esqueceu deles...

Conheceu a Alice por ocasião do IV Encontro Nacional do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, em 20 de Junho de 2009, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria. O seu marido, também professor, Joaquim Carlos Peixoto, fez a guerra colonial na Guiné e é amigo do Luís..

A Alice proporcionou agora este reencontro com alguns dos seus antigos alunos: a Laurinda, a Leonor, o Fernando... No dia 4 de Setembro de 2009, um dia de semana... Alguns, contactados, não puderam comparecer, por trabalharem no Porto e no estrangeiro... Fica em preparação um encontro alargado para o verão do próximo ano (...).

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