sábado, 24 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5148: Não-estórias de guerra (2): A Lavadeira de Aldeia Formosa (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71, com data de 20 de Outubro de 2009: 

 Caro Luís, Como reduziram para cerca de metade aquilo que recebia por ter estado na guerra, com menos dinheiro para gastar, fiquei com mais tempo para escrever. Resultado: aqui vai mais não estória. Um Abraço Manuel Amaro 


  Uma não-estória de guerra: A Lavadeira 

Por Manuel Amaro 


 Tenho lido, com agrado, as estórias relacionadas com as lavadeiras, contadas aqui no blogue. Concluí que, na verdade, para quem esteve naquela guerra, a existência das lavadeiras era um importante factor, com nítida influência na nossa qualidade de vida. 

 Mesmo que alguns aspectos tenham sido vividos inconscientemente, mesmo que algumas estórias tenham uma grande dose de imaginação, o facto é que aquelas dezenas de milhar de militares, na sua maioria ainda quase meninos, alguns saídos pela primeira vez da esfera familiar, viam na lavadeira, fornecedora de roupa limpinha, a continuação da família. 

 Eu também tive as minhas lavadeiras. Uma lavadeira em cada terra. Quando a CCAÇ 2615 chegou a Aldeia Formosa, porque fomos os últimos a chegar, as melhores lavadeiras já tinham a lotação esgotada. Eu bem levava uma recomendação para falar com a Farma ou a Maimuna. E falei. Mas nem uma cunha do Gilberto Campos, Fur Enf da CCS, me valeu. Tive que me contentar com uma sobrinha das ditas, de nome Saida Baldé, creio que familiar do Régulo de Colibuia, tabanca abandonada, que ali vivia na condição de refugiado. 

 A Saida era muito jovem, elegante, muito bonita, rosto com traços caucasianos, mas negra, muito negra. Muito competente e muito organizada. Naquele tempo, em Aldeia Formosa, a determinada hora, talvez 16h00, 16h30, as lavadeiras juntavam-se na porta de armas e aguardavam ordem da sentinela para entrar. Depois, aquele bando, em correria desenfreada, contactava todos os clientes, entregava a roupa lavada, recebia a roupa suja e regressava à tabanca. E todos os militares estavam atentos à chegada das lavadeiras. 

 Um dia, em todas as coisas há sempre um dia diferente, atrasei-me no duche e lá apareceu o Campos a gritar: 
 - Está aqui a lavadeira… 
 - Vou já, é só vestir-me. - Respondi. 
 - Eh pá, coloca a toalha à volta da cintura e chega aqui, rápido. – Ordenou o Campos. Cumpri. 

Coloquei a toalha e fui a correr. Lá estava a Saida com a minha roupa para entregar, mas só a mim. Pedi desculpa pelo atraso e fui recebendo a roupa, peça a peça. E ela, que nunca me tinha visto naquela indumentária, olhava, surpreendida, curiosa, expectante… Acontece que quando dei por mim estava com uma erecção, que não conseguia controlar e a toalha avançava na direcção da lavadeira… 

 A Saida, quando acabou a entrega, curvou-se para agarrar o cesto da roupa, confrontou-se com aquela torre Eiffel, abriu os olhos, apontou o indicador direito e gritou:
 - Eh furriel… eh furriel… virou-se e desatou a correr. 

 No dia seguinte e nos dias que se seguiram, tudo correu normalmente. Mas passado um tempinho, assim que a minha lavadeira teve oportunidade, perguntou-me, com um sorriso maroto e um olhar reluzente, quando é que eu vinha outra vez de toalha. Disse-lhe que se ela queria que eu viesse de toalha, então na próxima vez eu viria receber a roupa com a toalha à volta da cintura. 

 No dia seguinte tomei duche, coloquei a toalha, sentei-me à mesa e fiquei ali à espera, lendo mais um capítulo de ”Os Lobos”, de Hans Hellmut Kirst. Assim passei uma boa meia hora. O Torres, da CART 2521, ainda perguntou se eu estava na sauna, mas eu nem respondi. 

 Finalmente chegou a Saida. Eu apareci à porta com a toalha. Ela entregou a roupa. Eu recebi. Tudo em silêncio… a mesma toalha, o mesmo cesto da roupa, a mesma torre, o mesmo olhar… Mas quando partiu, a Saida limitou-se a dizer, baixinho: 
 - Obrigada, furriel… 

 Dois dias depois, eu parti para Buba, numa viagem (peregrinação), de três meses, que me levaria a Buba, Aldeia, Bissau, Lisboa, Bissau, Aldeia e Nhala. Em Nhala voltei a ter lavadeira. Sem estória. Tal como em Nhacra e Buba. Mas tenho, sempre tive, guardo na memória, o maior apreço e consideração, pelo importante papel desempenhado pelas lavadeiras (as mulheres que lavam roupa, à mão), qualquer que fosse a sua relação com os militares. 

 Manuel Amaro 

__________ 

 Nota de CV:

4 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Essa da torre Eiffel levantada, mas de lado, apontada ao corpinho de ébano da formosa lavadeira, é de mestre. Já tenho ouvido chamar muita coisa à torre de Pisa (ou piça, desculpem) que temos entre as pernas,voltada para a frente, mas torre Eiffel é novidade.
Sexagenários, septuagenários, que bom, ainda hoje como bons portugueses, podermos gritar Vive la France!...
Um abraço,
António Graça de Abreu

Carlos Pinheiro disse...

Não pretendo comentar a noticias mas tão somente desabafar um pouco. Faz hoje 41 anos que ia no UIGE no 2º dia de vaigem a caminho da Guiné. Ia em rendição individual para o BCAÇ 1911 que veio no mesmo barco. A maior Unidade que o barco levava era o BCAÇ 2856. Mas também levava PM e Pelotões independentes para além de muita malta em rendição individual. Para mim e para a maior parte daquela gente era tudo novo. A esta hora estava certamente na suite que me tinha calhado em sorte, num dos porões onde também estariam mais umas centenas de soldados e cabos. Hoje fico-me por aqui mas como abri o site não consegui passar sem falar do principio da mainha viagem que demorou mais de 25 meses.

Luís Graça disse...

Que ternura, meu caro, que ternura!... Há para aí muitas histórias, bonitas, passadas entre os militares da tropa e as suas queridas lavadeiras que os ajudavam a suavizar a saudade das mães, manas, primas, vizinhas, namoradas e esposas... Não falo dos fanfarrões, dos machos lusitanos, incapazes de contar uma história como a tua onde, para além da delicadeza e da correcção no trato, também há a cumplicidade e o desejo entre um homem e uma mulher, com o muro ao meio da cultura (proibicionista) do grupo social a que pertence... E,claro, a ironia, o sentido de humor...

A metáfora da torre Eiffel só vem revelar que temos escritor, com talento, dotado de bons recursos estilísticos, que sabe contar uma boa história...

Apostei em ti... Fico sempre muito feliz quando leio uma boa história, contada por um camarada da Guiné... Criámos esta secçãom exclusiva, "Não-estórias de guerra", na esperança de pelo menos te publicarmos seis postes... Não estou arrependido nem decepcionado. Bem pelo contrário: as tuas duas primeiras "não-estórias" já deram nas vistas... Seguramente, não te fala boa matéria-prima... Muito menos tempo e vagar.

Força, camarada!

Zé Teixeira disse...

Amigão.
A tua estória é mesmo de ti. Do Amaro que tive o prazer e conhecer em Coimbra.
O respeito, que a tua "lavandera" te merecia ! E não só.
Estou de acordo com o Luís. aliás, manifestei-to há dias quando nos encontramos na Amadora.
Por favor continua a escrever.

Abraço do "ermon"
Zé teixeira