sábado, 7 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5226: Histórias de José Marques Ferreira (9): A noiva Mandinga


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 6 de Novembro de 2009, o terceiro extracto do "Jornal da Caserna" da sua Companhia.


Camaradas,

Votos de felicidades saúde e dinheiro para gastos… pelo menos algum…

Proveniente do «Jornal da Caserna», cujo cabeçalho vai encimar este post, aqui está mais uma cândida, inocente e pacífica estória, neste caso sobre os costumes da Guiné.

O autor que deu nome e vida à estória, já aqui referi, é o Ramiro Fernandes Figueiredo, que não sei por onde anda à muito tempo, era o médico da CCAÇ 462.


A noiva mandinga

A noiva mandinga acabava de chegar num jipe da Administração. Vinha marcialmente escoltada por cipaios, que se apilhavam na viatura. À frente o cabo cipaio e entre este e o condutor indígena – A NOIVA. Atrás distinguia-se um animador do cortejo com o “calandim”, uma espécie de bandolim indígena – que tirava uns sonidos exóticos.

O noivo que não era outro que o sherif, chefe religioso muçulmano, pagara “manga” de pesos ao tocador; e este, ciente da sua missão e responsabilidade desfazia-se em trejeitos para arrancar do instrumento toda uma amálgama de ruídos. Sempre com um sorriso aberto, descortinavam-se uns incisivos faltosos e uns molares apodrecidos. O carro virou em direcção da casa do cabo cipaio, onde a noiva ficou religiosamente guardada.

À noite chegou a formação do batuque para a conduzir em festança até casa do sherif. O batuque era composto por um mandinga alto e esguio de óculos doutorais, que regia a barulheira. O apito de marcação de ritmo mordia-lhe os lábios; e as mãos batiam cadenciada e diabolicamente num “tântano” alongado, mais parecendo que a fúria do seu entusiasmo poria em breve o tambor de pantanas. Outros dois acólitos tamboreiros completavam o grupo musical.


À frente vinham as “bajudas”, raparigas virgens – candidatas ao “fanado” garridamente vestidas (não destoando o usual pé descalço…), na singeleza e simplicidades dos corpetes e panos colados às carnes. Bamboleavam-se em movimentos cheios de graça dos braços e os pés nus batiam abafada e energicamente no chão poeirento.

Chegado o cortejo a casa do cipaio tudo redobrou de entusiasmo e vigor. Abriu-se um círculo. Crianças à frente e uma ou outra “bajuda” que era bailarina; atrás as mulheres grandes também “roncas” nos seus trajes vistosos. Irrompe pela casa uma onde de bajudas virgens que são envolvidas pelo homem do violino que não arredou pé. Dirigem-se ao quarto da noiva, que cândida e tímida recebe “mantanhas” e votos de vida feliz.

A virgem casadoira era uma dessas belezas mandingas que geralmente se encontram por aí. Esguia, alta e esbelta; olhos negros, talhados oblíquos – misteriosos. O cabelo é típico – sulcado de risquinhos transversais conjugando-se aos lados numas pequenas madeixas, que mais pareciam pequenas espigas de trigo. Cingia-lhe a cinta um pano senegalês, que lhe moldava as formas delicadas e elegantes; e o tronco era revelado pelo pequeno corpete, que discreto lho cobria, sem realçar nada que não fosse proporcionado.

Era na verdade uma autêntica Vénus negra que vali “uilli lulo”, ou sejam os cinco mil pesos pagos pelo felizardo que a escolhera. Formou-se novamente o cortejo e a noiva lá foi rodeada pela frescura das jovens virgens. O tocador redobrou em ritmo, agitação e ruído musical. Chegados fronte da casa do sherif, este veio ao encontro da noiva com o seu grupo religioso e conduziu-a à entrada numa cerimónia que o noivo repetia pela quarta vez – já que Alá é generoso quanto ao número de mulheres. Cá fora as “bajudas” faziam coro em cânticos, outras entravam em círculo, arrancando sapatadas cheias de vida e erguendo delicadamente as mãos, contorciam-se ao sabor do ritmo do apito e “tântanos”.

O negro esguio do tambor suava por todos os poros. Lá dentro a noiva era apresentada aos membros da seita religiosa e estava tudo a postos para o banquete geral ao ar livre, que a generosidade do chefe deu a toda a gente muçulmana da “tabanca”.

O Ramadão tinha acabado e a ocasião era propícia para refazer algo do que havia perdido toda esta gente em quarenta dias de jejum…

“ÓKEY”
(Ramiro Fernandes Figueiredo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 462, cuja história foi publicada no «Jornal da Caserna de Março de 1964)
Guiné - Ingoré, Março de 1964.

Nota: - A foto que ilustra este texto é um dos postais ilustrados que se vendiam por lá, na época. Comprei este que, atrás, tem escrito pela minha mão: 31/12/64 – O dia do aniversário da minha mulher. E como está lá escrito «parabéns e felicidades» - o resto não transcrevo -, serviu tal postal para ilustrar esta história. Às tantas, vão aparecer por aí alguns comentários, colocando-me em maus lençóis, por ter enviado este postal à Maria Fernanda. Que querem vocês, elas eram assim (as bajudas claro)... tal como está esta no postal!

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto e gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

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