terça-feira, 10 de novembro de 2009

Guiné 63/74 – P5244: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (20): Patrulha a Santancoto - Quando os homens de camuflado choram...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 20ª história, com data de 6 de Novembro de 2009:

Patrulha a Santancoto - Quando os homens de camuflado choram...

5 de Agosto de 1964

Amanhecia.

Uma coluna auto deixara o acampamento às 06h00, comandada pelo Alf. Mendonça dirigindo-se para a estrada de Bigene, que iria percorrer até Santancoto, limite do sector onde dois grupos de combate, chefiados pelo nosso comandante de companhia se lhe reuniriam. Até lá, limparia o itinerário de abalizes enquanto os dois grupos de combate que saíram á mesma hora, mas a pé, em direcção á bolanha de S. João, bateriam as matas entre o Rio Cacheu e a estrada em referência, mantendo em relação á coluna uma distância nunca muito superior a 2 km.

Até ao cruzamento para Guidage a coluna seguiu sem dificuldades, já que o itinerário se encontrava desimpedido. Daí para a frente a progressão tornou-se mais lenta, não só porque se entrava em terreno desconhecido mas também pelos obstáculos que foram surgindo. Um pouco acima de Sansancutoto encontrou-se uma ponte destruída passando-se no entanto o obstáculo com uma relativa facilidade, utilizando umas pranchas que se levavam já para o efeito.

Começou-se a bater a estrada mantendo-se assim uma segurança afastada, á frente, enquanto se foram retirando as primeiras abalizes, uma das quais gigantesca.

Antes de Banhima a mata fechadíssima, que ladeava a estrada, era interrompida por uma bolanha por onde o caminho seguia, sobrelevando-a, durante cerca de uns 300 metros.

Era surpreendentemente bonita esta língua de água, ora negra ora esverdeada, que interrompia a floresta e donde emergiam lindíssimas flores aquáticas de cores delicadas.Embora não nos pudéssemos distrair contemplando as belezas que nos cercavam não podíamos evitar um olhar mais demorado para aquela paisagem maravilhosa que só o cinema até então nos tinha revelado.


Um pensamento acudia ao espírito …«que pena haver terroristas»!

Entretanto a secção que seguia à frente, e que se atolou quase até ao pescoço naquela água lodosa, que vista de perto perdia muito da sua beleza, não seria exactamente da mesma opinião já que os seus homens, quando completamente encharcados puseram pé em terreno mais firme, praguejavam contra a Guiné e todas as suas bolanhas mal cheirosas.

Voltámos a passar entre tufos de vegetação frondosa. Dos galhos e lianas que se entrançavam por cima desciam longos fiapos e raizados inverosímeis. A água da bolanha ia dando a espaços um outro matiz á selva que nos rodeava impondo o negro, o amarelo e o castanho. O capim invadia a estrada que seguíamos e dir-se-ia impossível existir outra vida na selva que nos rodeava que não a de aves e répteis que a todo o momento se nos atravessavam no caminho.

Mas nós sabíamos que não era assim e não descurávamos um momento que fosse a segurança.

Parou-se por momentos para entrar em contacto com os grupos que seguiam apeados.

Ouviram-se rebentamentos ao longe e o matraquear de armas automáticas.

Estabelecida a ligação rádio soube-se não serem da nossa companhia os disparos ouvidos.

Houve ordem para avançar até junto de uma nova ponte. Passou-se a mata e entrou-se num terreno mais aberto onde os abalizes começaram a aparecer com mais frequência, indicio seguro que o inimigo não estava longe.

A coluna voltou a parar já que havia de retirar uma série de 6 abalizes que interrompiam uns 50 metros de estrada. Montou-se a segurança ficando a secção do Furriel Gomes para lá das últimas árvores abatidas, começando-se a retirar essas sem o auxílio do Unimog, já que as árvores abatidas sobre o caminho não eram de grande porte.

Foi exactamente esse facto – a não utilização dos guinchos das viaturas – que nos levou a pressentir um pequeno grupo inimigo que, oriundo dos lados de Santancoto, vinha pela estrada. Apesar de termos sido os primeiros a fazer fogo não fomos suficientemente rápidos para surpreendê-los, pois abrigaram-se com as árvores existentes no local, tentando envolver a coluna, e fazendo até alguns tiros contra as viaturas.

O nosso fogo e o «cantar» de uma metralhadora «Breda», instalada num Unimog, calou bem depressa o inimigo que só esporadicamente disparava algum tiro de pistola.Uma canhangulada inimiga passou perto da capota do jipe das transmissões, que ainda chamuscou, facto que atrapalhou um pouco o radiotelegrafista que lançou um S.O.S desesperado para os dois grupos de combate, que correram cerca de 3 kms julgando que estaríamos cercados.

Quando o nosso capitão Tomé Pinto chegou estava tudo completamente calmo e, na verdade, só a excitação momentânea do radiotelegrafista tinha causado uma situação de alarme injustificado.

Percorridos uns 300 metros, e chegando a um local onde a estrada faz uma curva pronunciada para a direita e desce em direcção a Buborim, avistou-se um numeroso grupo de inimigos a cerca de uns 200 metros. Diminuiu-se a distância que nos separa do inimigo e talvez a uns 60 metros da bolanha e da ponte que precede a tabanca foi dada ordem para fazer fogo de morteiro.

Apesar de recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo para cumprir rapidamente a ordem, levou-o a disparar a morteirada com tal precipitação que a granada foi rebentar contra um ramo alto de uma árvore do lado esquerdo, crivando de estilhaços o local onde se encontrava o nosso capitão e alguns soldados.

O estoiro foi medonho e por momentos a poeira levantada e o fumo da explosão não deixava ver nada.Logo se pensou no pior e o Alferes Santos e outros militares entre os quais o Cabo Enf. Martins, que se encontravam mais atrás, acorreram ao local para ver se havia feridos.

O chão, alguns metros em redor, encontrava-se completamente crivado de estilhaços. Encostado ao tronco de uma árvore, com a mão no seu ombro esquerdo, o nosso capitão deixou-se escorregar lentamente para o chão. Um jacto de sangue saía em repuxo do local que comprimia com a mão, sem poder evitar um esgar de dor.

Prontamente socorrido e amparado pelo enfermeiro conseguiu levantar-se e depois de estancada a hemorragia e feito um penso provisório, começou a caminhar em direcção á coluna auto, onde lhe poderia ser feito um tratamento mais eficiente pelo Furriel enfermeiro.

No meio da infelicidade do momento houve a sorte de não haver mais vitimas.Embora combalido o nosso Capitão enquanto caminhava tranquilizava os que o acompanhavam e que se sentiam manifestamente impressionados com o acontecimento.

Prevenido o Furriel Enf. Oliveira, este dirigiu-se ao encontro do ferido que ajudou a transportar até ao Unimog onde estava instalada a «Breda» e no qual, depois de deitado numa maca, lhe foram prestados socorros mais completos. Renovado o penso e depois de avaliar a extensão do ferimento e da sua gravidade, pediu-se um helicóptero para a sua evacuação urgente.

O estilhaço tinha penetrado profundamente e poderia ter lesado algum órgão importante.Organizada a coluna, voltaram-se as viaturas já com todo o pessoal montado, iniciando-se o regresso o mais depressa possível pois o estado do nosso capitão inspirava sérios cuidados.

Recusando-se a tomar sedativos, que lhe aliviariam as dores mas que o tornariam inconsciente, continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo Furriel Enfermeiro.

Apenas umas centenas de metros tinham sido percorridos quando, no meio de uma mata fechadíssima, o inimigo emboscado atacou.Um tiro de pistola inicial e depois rajadas de pistola-metralhadora.

As viaturas pararam imediatamente saltando os seus ocupantes que, instalando-se com rapidez na berma da estrada, ripostaram ao fogo inimigo. O 2º grupo de combate, que vinha nas ultimas viaturas, suportou a parte mais violenta da emboscada, sentindo algumas dificuldades quando, já com a coluna em andamento, se levantou do local onde se tinha instalado.

Por duas vezes o Alferes Santos, que deve ter sido referenciado pelo inimigo (por ter dado ordens em voz alta) foi particularmente visado, passando uma rajada de pistola-metralhadora bem perto da sua cabeça. De salientar no momento, a calma e sangue frio do nosso Capitão que foi sempre transmitindo ordens, insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada.

Todo o pessoal, apesar de inquieto e um pouco desmoralizado com o estado do nosso comandante de companhia portou-se valentemente saindo da «zona de morte» com decisão e coragem.

Passada a bolanha de Banhima, os grupos de combate passaram a bater as zonas mais fechadas, abrindo caminho para a coluna auto.

Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa, que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor. Cerca do meio-dia, quando seguíamos na região de Sansancutoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso capitão que, já há cerca de duas horas ferido, começava a sentir-se enfraquecido e com dores que os solavancos da viatura tinham aumentado.

Aqueles homens de camuflado, que já tinham vivido e ultrapassado algumas provações bem duras, choravam agora como crianças despedindo-se do seu Capitão.Não menos comovido este deixava correr livremente pelo seu rosto, marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha.

Todos queriam pegar na maca para o transportar; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca; outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber água do seu cantil.

Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa.


Será difícil para um mortal comum, cujas emoções fortes nunca passaram para além da discussão com um polícia por causa do estacionamento do carro ou de um momento mais emotivo de um desafio de futebol, avaliar o que se sente num momento destes, quando se vê sofrer um homem, que além de chefe de excepção é um amigo, a quem se quer como a um pai, e pelo qual todos nós daríamos um pedaço da nossa vida, um pouco do nosso sangue.

Lentamente o helicóptero elevou-se no ar e vimos da maca um último adeus do nosso Capitão.

Com as mãos sujas do óleo da arma, da terra e do suor, aqueles homens de camuflado, de máscaras tensas e fatigados, limparam as lágrimas que não tinham conseguido suster e aperraram de novo as G3 prontos a seguir pois Binta ainda estava longe.

E todos desejavam com uma raiva surda que o inimigo se voltasse a manifestar.

Uma hora depois chegávamos ao estacionamento.

Tinha sido bem comprido aquele dia 5 de Agosto de 1964.


Quarenta e alguns anos depois... Memória de orfandade...

Para quem viveu a patrulha de Santancoto de 5 de Agosto de 1964 a imagem dos homens de camuflado a chorar... ficou para toda a vida.

Cada qual à sua maneira viveu e recordará as horas dramáticas de ter o Comandante de Companhia ferido e ser emboscado no meio de uma mata fechadíssima.

Passei a maior parte desses compridos minutos junto do capitão por «dever de ofício». Era o Furriel Enfermeiro.

A esta distância no tempo consigo brincar um pouco com a situação. O meu Capitão não era um doente fácil pois...recusava-se a tomar sedativos que lhe aliviariam as dores... sendo certo que eu, na altura, não lhe conseguia arranjar nem sossego nem tranquilidade...

O barulho era ensurdecedor e o doente continuava (felizmente) a dar ordens e... não parava de comandar.
Refere-se no «Diário da 675» que «... continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo Furriel Enfermeiro... insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada...»

«...Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor.»

Vinte nove anos depois destes acontecimentos tive a felicidade de estar numa homenagem ao General Tomé Pinto na terra da sua naturalidade.

Se a memória não me falha... em 4 de Abril de 1993 o Cine-teatro de Torre de Moncorvo rebentava pelas costuras.
Eu era um dos oradores inscritos.

Falaram ex-militares de outras Companhias, que tinha servido sob as suas ordens.

Quando subi ao palco para falar em nome da «675» o «Capitão de Binta» sabia que... eu ia falar da Patrulha de Santancoto.

Foi um momento de grande cumplicidade e, no que me diz respeito, de grande emoção. Quando não me deu um enfarte dessa vez...

Quando no final o General Tomé Pinto agradeceu, leu um longo discurso, que previamente tinha preparado, para não correr o risco de esquecer alguém.

Quando chegou à vez da «675» já lá estava escrito tudo que tinha acontecido nos minutos anteriores...

Dava a ideia que tinha feito o discurso de agradecimento naquele mesmo momento!

Também importa recordar que aqueles momentos vividos em 5 de Agosto de 1964, em cima da viatura da «Breda», nos aproximaram para toda a vida...

Era um mau doente mas... um grande Comandante.

Transmontano, com tudo o que isso quer dizer: valente,

determinado... "antes quebrar que torcer"!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro JERO
Mais uma das tuas histórias, a que já nos habituaste, perpassada de fortes sentimentos humanos.
Mais uma vez, li e gostei.
Um abraço
Hélder S.