terça-feira, 17 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5287: Notas de leitura (34): As Lágrimas de Aquiles, de José Manuel Saraiva (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2009:

Luís e Carlos,
Foi uma agradável surpresa conhecer este livro do José Manuel Saraiva.
Aqui fica uma recensão que talvez desperte a vontade de o conhecer melhor, por inteiro.
Um abraço do
Mário



As lágrimas de Aquiles
Beja Santos

Por mais voltas que demos, por mais elaboradas as nossas justificações, escrevemos sempre sobre nós, mesmo que reposicionemos toda a gama de sentimentos na boca de outros. O jornalista José Manuel Saraiva, autor de dois documentários para a SIC sobre a Guerra Colonial (Madina do Boé – a Retirada e De Guilege a Gadamael – o Corredor da Morte) é nosso camarada da Guiné e decidiu ficcionar-se em “As Lágrimas de Aquiles” (Oficina do Livro, 2001). Nuno Sarmento regressa à Guiné, percorre os lugares onde combateu, é esta a trama clássica para viajarmos dentro de nós próprios, faz-se a incursão por onde existiu a guerra, encontra-se uma criança (neste caso, o Dez, aliás Aliú, cujo pai foi morto por um oficial português). Esta viagem não é um acto de contrição nem o exorcismo de velhos fantasmas, como observa Manuel Alegre no prefácio. Como ele também diz, muitas vezes a ficção ultrapassa a realidade. O que é mais impressivo nesta obra é a serenidade nos registos: a candura e a crueldade; a inocência e a dúvida; a fidelidade aos valores e a sua contestação em lume brando, na voragem em todos os sofrimentos ao longo de uma comissão.

Nunca conheceremos, ponto por ponto, por onde combateu José Manuel Saraiva/Nuno Sarmento. O território do calvário chama-se Bolanha da Cruz, constava que tinha sido ali, logo no início da guerra, que tinha caído, morto, um dos primeiros jovens oficiais portugueses. As lágrimas que se vão chorar ao longo da narrativa obedecem a essa mesma trama clássica de um Nuno Sarmento que deixou uma carta ao amigo, quando desistiu de viver. É um maço de cartas e fotografias, está ali tudo, a aprendizagem da guerra, a formação do batalhão, as recordações de Coimbra, o amor por Catarina, as minas e as emboscadas, a sólida personalidade do capitão Silveira, as primeiras baixas, os aerogramas, a inspecção da tropa, tudo se mistura no tempo e no espaço, até porque na guerra voltamos ao local de nascimento, aos amores perduráveis, aos estudos interrompidos, aos cuidados das nossas mães. O escritor, sabe-se lá se o jornalista que foi à Guiné fazer reportagens, recorda o seu passado de guerreiro transitório, Aliú traz-lhe a reconciliação para todas as barbaridades vistas e perpetradas. Porque houve morte violenta, um guerrilheiro que se estropiou, que se negou a dar informações e a quem o alferes manda executar. Se essa recordação é dolorosa, a das férias não é menos. É aqui que ele descobre que os vínculos com a Catarina se enfraqueceram, irremediavelmente. É uma dor incurável que vai ficar para a segunda parte da comissão, tempo de dificuldades, de mais mortes, de dúvidas políticas, de algumas tragédias na Bolanha da Cruz. Durante uma emboscada, um pelotão em pânico abandona o seu alferes que só será recuperado no dia seguinte. Será um drama que irá atravessar de alto a baixo a vida da unidade, todos ficarão mudados por aquele momento de fraqueza. Nuno nunca fora militante coisa nenhuma, a sua revolta contra o Estado Novo fora mais emocional do que apostólica, agora só se preocupa com a solidão e com a passagem dos meses. A chegada do alferes Mendes Vicente, que viera substituir outro alferes morto, é um bálsamo na vida de Nuno.

A viagem à Guiné termina, Nuno despede-se de Aliú, assim caminhamos para o fim de um livro triste de um homem que perdeu âncoras, afectos, auto-estima. “As Lágrimas de Aquiles” é o retrato de um combatente que perdeu a bússola e que não aceitou o absurdo. Tal como alguém escrevera na Bolanha da Cruz “uma morte para nada”, Nuno Sarmento deixou de se interrogar porque e por quem valera a pena combater. Onde a sua memória não cedera foi nos afectos a todos os camaradas sofridos e leais. É esta a literatura da guerra colonial: falarmos do que vivemos, pois tocar no mais fundo absurdo permite prosseguir de olhos abertos, mesmo no olvido das outras gerações.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5215: Notas de leitura (33): Em Nome da Pátria, de João José Brandão Ferreira (Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Camarada da Guiné 1968/70. A tua recensao do livro de J.M.Saraiva levou-me a esquecer,por momentos,distancias de espaco/tempo.E,podes crer,as distancias de trinta e tres anos de Escandinávia á Guiné...nao sao fáceis de diluir! Um abraco amigo do José Belo.

Unknown disse...

Não sei ao certo, mas deve ter mais de um ano que escrevei e recomendei este livro. Na mesma altura em em que escrevi sobre o Nó Cego... Pois...

Anónimo disse...

Considero um bom livro. Ainda li muito pouco, pois comprei-o (entre outros)no domingo, pela ridicula quantia de UM EURO E QUARENTA E NOVE CÊNTIMOS.
Filomena