sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5405: Estórias avulsas (19): O Cavalo de Ferro de visita ao Dulombi (Luís Dias)

1. Mensagem de Luís Dias*, ex-Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, com data de 1 de Dezembro de 2009:

Caros editores
Uma pequena história sobre a projecção de um filme no Dulombi e o efeito que provocou.

Um grande e fraterno abraço do tamanho do Rio Corubalo.
Luís Dias


O CAVALO DE FERRO DE VISITA AO DULOMBI
Aquartelados no Dulombi, desde Janeiro de 1972, os elementos da CCAÇ 3491 íam passando os dias em operações semanais para os lados do Rio Corubalo, em emboscadas nocturnas, picagens para as colunas semanais a Bambadinca / Bafatá / Galomaro, para reabastecimento e em serviços que o capitão tratava de arranjar diariamente no quartel para os manter ocupados (limpeza do quartel, arranjo das valas, segurança e transporte de água do rio para abastecer o aquartelamento, etc.).

Como distrações lá tínhamos umas futeboladas, umas trocas bem assanhadas de caneladas, mormente quando ao fim de semana fazíamos um Benfica-Outros (Sporting + FC Porto), em que havia as habituais apostas (grades de cerveja ou garrafas de uísque), entre mim (um lampião orgulhoso) e o Furriel Enfermeiro Nevado (ferrenho lagarto), isto para além dos jogos de cartas habituais.

Outro momento alto de distracção, isto para alguns dos graduados, eram os “petiscos” organizados por uma comissão, formada pelos Alferes Dias (2.º GC) e Parente (4.º GC), 1.º Sargento Gama, Furriéis: Nevado (Enf.º), Batista (1.º GC), Gonçalves (2.º GC), Espírito Santo (2.º GC), Machado (4.º GC e já falecido), Carvalho (4.º GC) e Fonseca (o nosso Vaguemestre, recentemente falecido no trágico acidente da praia Maria Luísa). Todos os meses eram nomeados dois membros para gerirem as quotizações com que todos entravam para conseguir adquirir géneros, ou na tabanca ou em Bafatá, para elaborar uns tentadores petiscos com que nos banqueteávamos, quando regressávamos das operações “famintos” e para reforçar os almoços domingueiros, normalmente com uma belíssima sopa alentejana, feita pelo nosso 1.º Sargento (alentejano de gema).

Um dia surgiu no Dulombi uma equipa projeccionista de Bissau que vinha entreter as tropas com a passagem de um filme: coisa diferente, tremenda alteração da rotina.

Privados de televisão e de cinema, a chegada desta equipa itinerante foi um acontecimento recebido com entusiasmo por todos. O cinema improvisado foi instalado no refeitório dos praças. Nesse princípio de noite, lá se acomodaram as tropas, os milícias e também muitos elementos da população que estavam ansiosos por verem o filme. Não sei se os guerrilheiros do PAIGC sabiam da projecção, mas de facto fomos deixados em paz.

A projecção era de um daqueles tradicionais filmes de cowboys e indíos, já não sei se protagnizado pelo John Wayne, o Henry Fonda, o Yul Brynner ou outro famoso actor daqueles tempos. A coisa foi correndo de feição com o público entusiasmado com a acção que se passava no ecrã. Contudo, a determinado momento, surge no filme, vindo do fundo da cena, um comboio, o qual avançava a todo o carvão em direcção à boca de cena, enchendo num repente todo o cenário, com um barulho ensurdecedor, parecendo querer saltar da lona ou pano que servia de ecrã para para galgar para cima dos assistentes. A rapaziada já habituada a estas fitas ficou impávida e serena, mas com o pessoal africano é que a coisa fiou fino.

Aquele cavalo de ferro, como lhe chamavam os índios, parecia vir mesmo para cima dos espectadores e, como é sabido, não havia comboios na Guiné, isso provocou um alvoroço muito grande e muitos deles desataram a fugir, causando o gáudio do resto da assistência. Alguns ainda regressaram depois de chamados pelos militares, outros só devem ter parado já bem dentro da tabanca.

Foi um momento engraçado, de grande perplexidade da nossa parte por vermos a maioria dos africanos a fugir do filme… mas também alguns dos nossos efectuaram uma retirada “estratégica”, não por causa do comboio, mas por verem os africanos a dar o gosse convenceram-se que era por causa do IN.

Os africanos, na sua maioria, nunca tinham visto um comboio e aquilo era, na altura, muita carruagem para formar uma coluna normal, das que eles estavam habituados, ainda por cima a resfolegar daquela forma.

Foi um dia/noite bem diferente, que provocou a boa disposição entre o pessoal.

Luís Dias
Ex-Alf Mil
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4616: Ainda sobre a ataque a Campata (Luís Dias)

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5381: Estórias avulsas (61): 111 – O «Têmpera de aço» (José Marques Ferreira)

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