quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5574: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (14): O menino que gostava de saber palavras novas

1. Mensagem de Carlos Geraldes (ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), com data de 28 de Dezembro de 2009:

Caro amigo:
Esperando que estejas a passar esta Quadra com a melhor das disposições juntamente com os teus familiares e amigos e, desejando óptimas perspectivas para o ano de 2010, aqui envio mais uma pequena crónica para fechar este ano de 2009.

Um grande abraço do
Carlos Geraldes


GAVETAS DA MEMÓRIA (14)

O menino que gostava de saber palavras novas


Em Pirada, logo após os primeiros dias da nossa chegada, apareceu a rondar a casa onde se alojaram alguns oficiais e sargentos, um rapaz com um ar meio ingénuo e meio atrevido a querer meter conversa numa linguagem atrapalhada, mistura de crioulo, fula e português. Sempre com um sorriso enorme, ria-se quando nós nos ríamos dos seus disparates e pontapés na gramática, olhando-nos atentamente quando não entendia tudo o que se lhe dizia. Durante o dia via-se a vadiar por ali, não ia à escola e não parecia ter qualquer ocupação.

Habituados a desconfiar de tudo e de todos, mergulhados naquele ambiente inteiramente novo, embora não directamente hostil, suspeitámos que algo de esquisito haveria ali escondido por detrás daquele sorriso resplandecente. Por isso não lhe demos muita confiança e chegámos até a escorraçá-lo à bruta. Mas ele regressava sempre como um cachorro vadio, de rabo entre as pernas, tentando conquistar as simpatias do Nine o nosso impedido que tinha também um coração grande de menino a quem tinham roubado a infância.

Quase sem darmos por isso, já ele andava a carregar lenha, a trazer os sacos de pão acabadinho de fazer no forno do M. Soares, ajudando o Nine a preparar o pequeno-almoço, varrendo o jardim das traseiras, tagarelando sempre em alegre camaradagem com o nosso impedido. De uma algaraviada que quase não se entendia nada, passámos a pouco e pouco a reparar que ele fazia nítidos progressos na fala e já se fazia entender quase na perfeição.

Em menos de um mês o Adérito, assim era o nome dele, dominava menos mal o português, à mistura é claro com alguns termos de crioulo que nós também já sabíamos utilizar. E estava sempre disposto a ajudar em qualquer coisa.

Quando aprendia uma palavra nova vinha radiante repeti-la para que nós lhe disséssemos se a estava a pronunciar bem.

- Alfero, olha hoje sabe palavra nova, “inauguraçom”!

- Inauguração, palerma!

E sempre a rir, lá ia ele tentando corrigir a pronúncia: - “ão, ão, inau…gura…ção.


- Alfero, qué que é um “opiniom?”

– Opinião, Adérito, opinião! Quer dizer o que tu pensas de uma coisa qualquer, o que pensas de mim, por exemplo.

- Alfero, “opiniom” tem “manga de ronco” - rematava logo ele radiante por ficar a saber mais uma palavra e a saber aplicá-la.


- E compro... vati... vu? - voltava ele, suando com o esforço de se fazer entender.

- O quê? Que queres tu agora?

- Comprovativo, nosso alfero?!... suplicava a medo.


E a pouco e pouco ia juntando, como a galinha, que vai catando o milho grão a grão, as palavras novas que escutava nas conversas dos soldados na caserna, dos sargentos na tasca do velho Palha. Depois ias repeti-las na tabanca perante uma assistência de outros miúdos que o miravam incrédulos da sua nova sapiência.

Mas o Adérito via mais longe, via para lá do horizonte da bolanha, para lá do chão que o vira nascer. Como seria lá em Bissau? Era uma pergunta, uma curiosidade que lhe minava o pensamento. Os diabos dos soldados brancos vieram tumultuar a sua alma simples. Suspirava romper mundo fora, talvez nos camiões da tropa, quem sabe? E a melhor das armas que se deveria levar era o saber fazer-se entender, disso não lhe restava a menor dúvida. Os brancos não tinham tudo? Pois tinha que saber falar como eles! Os outros que ficassem para ali sempre na mesma vidinha de sempre. Talvez à espera de serem mortos numa guerra que nunca tinham pedido. Ele tinha que fugir dali para fora!

(Na noite do primeiro ataque ao quartel, Adérito, quando corria a refugiar-se junto dos soldados brancos foi ceifado, por uma rajada de metralhadora disparada não se sabe donde, nem por quem. Renasceu hoje no fundo de uma das gavetas da memória, como um rosto radiante no meio de tantos outros que teimam em não se confundirem com a poeira vermelha da picada levantada pela desengonçada GMC que aos solavancos trouxe de volta os soldados brancos.)

Os meninos de Pirada na sala de aulas
Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Viana, 28 Dezembro de 2009
carlos.geraldes@live.com.pt
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5385: Gavetas da memória (Carlos Geraldes) (13): O primeiro ataque a Pirada e a morte do Gila

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Carlos Geraldes

Às vezes não sabemos bem explicar como estas coisas acontecem... então, assim, de repente, vem-te o Adérito à lembrança (prova de que não morreu totalmente...) e, por isso, desencantas lá esta história que tem tanto de comovente como de lição de vida e de determinação.
Prestaste a tua homenagem, deste a conhecer á Tabanca o 'Adérito de Pirada'. Obrigado!
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Foi uma rajada de G3? de Kalash? de Browning? de Breda?

Não sendo eu especialista em metrelhadoras ainda sei alguns nomes de armas.

E ainda conheci muitos Adéritos caçando à flecha...antes da guerra nas nossas ex-colónias.