quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5600: Notas de leitura (48): Os Anos da Guerra, de João de Melo (2): Os preparativos e Sinfonia para uma guerra (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Bejas Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2009:

Queridos amigos,
Aqui vai mais um texto relacionado com a recensão do livro “Os Anos da Guerra”(*).
Bom seria que os tertulianos tirassem do saco da memória as recordações que guardaram dessa época de preparativos para a guerra.

Um abraço do
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (2)


Beja Santos

Recordatória

“Os Anos da Guerra”, com organização do escritor João de Melo é a primeira grande antologia da literatura da Guerra Colonial, abraçando os três teatros de operações. No significativo prefácio, João de Melo formula um conjunto de interrogações sobre o âmbito de literatura de guerra e se esta é compaginável com a literatura do período colonial e se há mesmo condições para se falar ao mesmo nível da geração literária da Guerra Colonial e dos testemunhos daqueles que combateram ou se prepararam para combater num dos teatros do conflito. João de Melo conclui que o escritor combatente goza de especificidade, havendo que tratar esta manifestação literária como escrita de guerra, são pessoas que vieram mudadas e que irão testemunhar uma vivência incompatível com outras experiências coloniais ou de resistência ideológica ao primado nacionalista. A antologia contempla apresentações histórico-políticas das diferentes etapas da evolução da guerra, separando os autores de acordo com as três frentes de combate. Para efeitos de simplificação, “estes olhares” sobre a literatura da guerra da Guiné iniciam-se com os preparativos para a guerra. Seleccionam-se alguns parágrafos considerados elucidativos de quem andou pelos quartéis em recruta e especialidade e formou uma unidade militar destinada à Guiné. Recomeçamos estes preparativos com Filipe Leandro Martins e a sua obra “O Pé na Paisagem”, de 1981:

Os preparativos
O Couro Selvagem das Botas


“Depois começou a chamada, milhões de nomes a acertar com números, e a fome a roer. Depois firme. Sentido. Os braços esticados, dedos juntos, olhar em frente. Não mexe. O furriel deu um passo em direcção a nós, perna estendida, patada no chão. Deu meia volta, muito teso. Fez a continência a um homem franzino, enquanto a malta bichanava que era um alferes. O alferes fez um gesto mole em resposta, virámo-nos para a direita e lá fomos a caminho do refeitório, a toque de caixa, que comer é importante na tropa”.

“Pedíamos licenças, papéis coloridos preenchidos e entregues na véspera. No dia seguinte, formados e poeirentos das marchas, ao fim da tarde, ao mesmo tempo que nos distribuíam o correio e o apanhávamos do chão, entregavam-nos os passaportes, deixavam-nos vestir a farda de saída... depois de jantar ou mesmo sem jantar, a caserna albergava milhentos homens a esfregar pela quarta vez as botas nesse dia. Os dois pares que tínhamos iam sempre brilhar nas formaturas, nas revistas, nas chamadas. Quando as recebíamos elas vinham tão grosseiras que era difícil amaciar-lhes o pêlo, bebiam frascos de tinta e latas de graxa, aguentavam escovadelas dementes, duras de roer. Alguns havia que passavam o fim-de-semana a dar-lhes pomada e a queimar-lhes o pêlo e mandavam-nas ao sapateiro para sofrerem tratamentos de especialista. Outros passavam o dia à volta dos dois pares, sentados no chão. Eram engraxadores de coração, a graxa entrara-lhes na alma através dos dedos, o prazer que tinham era mirarem-se no espelho das botas, ouvir elogios do alferes na parada”.
Álvaro Guerra é o escritor seguinte. Em 1961 foi mobilizado para a Guiné como oficial miliciano, mas viria a ser evacuado, ferido em combate, em 1963. Foi jornalista e mais tarde embaixador. Os seus livros iniciais assentam na Guerra Colonial, caso de “A Lebre”, “O Disfarce”, “Memória”, “O Capitão Nemo e Eu”, todos publicados antes de 1974, alguns deles traduzidos em francês. Seleccionam-se alguns parágrafos do seu livro “Memória”, de 1961:

Sinfonia para uma Guerra

“O batalhão dos recrutas formou enquadrado debaixo do sol do meio-dia, na parada, um dos lados abertos para a escadaria do edifício do comando, onde estavam os oficiais com os seus galões brilhando nos uniformes de serviço e, nas faces, solenes expressões inspiradores de firmes obediências. Trouxeram o culpado, a quem tinham rapado a cabeça à navalha – chegou entre dois soldados armados – e atrás dele marchava o sargento de serviço e outro soldado que transportava uma cadeira. O grupo parou, no meio do quadrado que era também o meio da parada, e o comandante, que usava monóculo no olho esquerdo, pegou no megafone e, com a bem colocada voz de barítono, pôs o batalhão em sentido, o que foi executado com exemplar perfeição e rigor. Depois o culpado da cabeça rapada se ter posto em pé sobre a cadeira que o soldado colocara no meio do quadrado que era também o meio da parada, o senhor comandante da instrução disse para o bocal do megafone, a voz de barítono ganhando um tom metálico, “Nós somos a tropa de escola, estamos preparados para as mais difíceis missões e para os mais ardorosos combates. A Pátria contempla os nossos feitos gloriosos e nós vivemos sob o signo da coragem e da honra que vós tendes, agora, a sublime oportunidade de servir dedicadamente. O respeito pelos princípios morais que regem os mais altos interesses da nação tem de ser seguido por nós, os filhos privilegiados em cujas mãos a Mãe Pátria colocou o seu Destino Supremo e a intransigente defesa de cada parcela do seu território ameaçado. Não podemos deixar cair na lama o nome do nosso País e do nosso Regimento. Temos de dar o exemplo, temos de ser exemplares. Este homem que vamos punir, que todos nós vamos punir, é um camarada vosso, mas roubou. Se queremos conservar-nos íntegros, teremos de começar a justiça por nós próprios. Não se trata de pôr em causa o valor do roubo praticado mas sim a indignidade e o sacrilégio do acto. Este vosso camarada roubou vinho que o nosso capelão destinara aos Santos Ofícios que celebraremos no campo de batalha, quando formos escolhidos para a luta sagrada contra os infiéis. Ele ficará aqui, no meio da parada, até ao pôr-do-sol, antes de regressar à prisão. Que este exemplo fortaleça a vossa Fé, a vossa dedicação à Pátria e à Bandeira, dedicação que pode ir até ao sacrifício da própria vida. Destruuuuuuçar!”

O culpado não ficou na parada até ao pôr-do-sol. Às quatro da tarde, caiu da cadeira e baixou à enfermaria, sob prisão. Punição exemplar para todos os seus camaradas.”

(Continua)

Gozei quase um mês de férias, quando cheguei da Guiné, em 1970, apresentei-me no início de Outubro, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, fui dar duas recrutas a gente que, na sua maioria, foi combater nas três frentes da guerra. Houve aspectos muito gratificantes, vinha cheio de sangue na guelra, ensinei-lhes o que tinha aprendido e os agradecimentos chegaram quando eles regressaram das respectivas comissões. Em definitivo, descobri, se algumas ilusões houvesse, que nada tinha a ver com aquela corporação, onde os jogos de cartas eram o entretenimento quase exclusivo dos senhores oficiais. Esta fotografia terá sido tirada à volta de Novembro, era malta muito fixe, apetecia conversar em todos os intervalos e recordar-lhes que a instrução era severa mas as compensações passariam por saber precatar os amargos de boca próprios da guerrilha e da contra-guerrilha.

Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2009). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5587: Notas de leitura (46): Os Anos da Guerra, de João de Melo (1): Alguns olhares sobre a literatura da guerra da Guiné(Beja Santos)

Vd. último poste da série de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5593: Notas de leitura (47): Casablanca: O Início do Orgulhosamente Sós, de José Duarte de Jesus (Beja Santos)

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