sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 6 de Janeiro de 2009:

Bom dia Carlos,
Envio-te mais um bocadinho de lenga-lenga, a ver se se faz alguma história. E a descrição de alguns venenos que poderiam atribular a pacatez da comissão.

Um grande abraço.
J.D.


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (32)

Reflexão conjunta


Uns dias após a noite de Tabassi, ficámos a saber que o Pestana salvar-se-ia da morte prognosticada. Retiraram-lhe uma parte do frontal e da massa craneana, do que sofrerá algumas sequelas, mas viverá relativamente bem. Definitivamente não voltará ao serviço militar. Regozijámo-nos com esta notícia, que o dá como capaz para a vida.

Fizemos uma reflexão sobre os acontecimentos: em primeiro lugar, destacámos a disciplina do IN, pois foram detectados, tiveram ocasião para disparar sobre mim e o grupo que acompanhava o Virgílio Sousa, mas, talvez porque não estivessem todos ainda instalados, demoraram duas horas a atacar-nos, o que poderia constituir novo efeito surpresa. Em seguida, verificámos que a primeira rocketada foi para o lugar referenciado pelo tiro do Virgílio, mais tarde confirmado, quando ali me dirigi e fiquei à conversa sem especial cautela. Falhámos ambos. E a confirmar todas os conhecimentos anteriormente adquiridos sobre as identificações de posições de combate, nomeadamente em período nocturno, foi o desencadear certeiro do ataque. Sairam-nos caro aqueles deslizes. Todos sabíamos como proceder correctamente, mas, na ocasião, subvalorizámos os indícios do IN. Correcto, teria sido ficarmos em rigorosa prevenção, e não adormecer debaixo da árvore, por um lado, por outro, antes do disparo, algum dos elementos daquela posição deveria ter-me informado das suspeitas.

Mas a refrega consumara-se a nosso favor, por isso, agora levantava-se outro problema: seria que o IN, mais tarde ou mais cedo, procuraria vingar-se de nós? Ninguém poderia responder a esta questão, mas avultava a necessidade de aumentarmos o cuidado, de termos especial atenção na estrada, onde mais facilmente poderiam concretizar os intentos. Cada um de nós teria que tornar-se mais responsável e preparado para enfrentar nova iniciativa do IN. Era certo que não os temíamos, como ficara demonstrado, mas teríamos que prevenir o grupo, pois em algumas situações as baixas são inevitáveis, salvo, quando as iniciativas são mal desencadeadas. Era, por isso, necessário intuir os procedimentos e comportamentos futuros, tendo em conta que só a homogeneidade do grupo poderia garantir o sucesso de cada um.

Estávamos todos de acordo e, no geral, compenetrámo-nos na acção colectiva.


O novo relacionamento com o COT-1

Numa ocasião posterior deslocámo-nos a Pirada, em missão rotineira de recolha e transporte de mercadorias para Bajocunda. Na Companhia referiram-me para me apresentar no COT-1. Ali chegados, distribuí tarefas ao pessoal, após o que me informei da localização do Major-Comandante. Tratar-se-ia de uma pessoa de maus créditos, a avaliar pelos adjectivos e descrições que me fizeram. Entrei no edifício, passei por dois compartimentos vazios e, no terceiro, encontrei o Major deitado sobre um colchão. Cumprimentei-o com uma palada, e o Oficial ergueu-se, retribuíu sem cerimónia, pegou-me pelo braço deu-me os parabéns pelo magnífico grupo de homens que comandava. Perguntou-me se a viagem não levantara problemas, se tivera cuidados especiais à passagem pelo morro entre Tabassi e Pirada, um lugar fortemente provável para uma emboscada às NT. Menti, respondi-lhe que era meu costume mandar uma Secção a envolver o local, por forma a evitarmos surpresas desagradáveis. O Major concordou. Subitamente perguntou-me pelo pessoal, ao que respondi estarem no cumprimento de tarefas. O Comandante referiu que gostaria de os ter cumprimentado, e comprometi-me a, numa próxima oportunidade, proporcionar-lhe o encontro. O Major ainda fez considerações sobre a necessária segurança no mato, ao que anuí e acrescentei que por vezes conversávamos a propósito, o que era verdade.

Despedimo-nos, o Major deu-me uma pancada nas costas, notoriamente cordial, e que surpreendeu quem assistia, pois esta cena passou-se no exterior do edifício. Perfilei-me, e pedi licença para seguir, que me foi concedida.

Quando voltei a Pirada, preveni o pessoal para permanecerem ordeiramente sentados nas viaturas, com as armas sobre os joelhos, porque viria o Comandante do COT-1 em revista e a dar-lhes ordem para destroçar. Assim aconteceu. Dirigi-me ao gabinete para a necessária apresentação, que decorreu com cordialidade, e como o Major se alongasse na conversa, pedi licença, e perguntei-lhe se queria ver o pessoal antes de se dispersarem nas tarefas. Imediatamente colocou a boina e saíu na direcção das viaturas. O Foxtrot estava bem comportado, com ar confiante, e em atitude marcial, como que pronto a sair para uma missão de risco. Segui o Comandante que parou junto da primeira viatura, cumprimentou e disse qualquer coisa de elogioso ao pessoal, distribuíu duas ou três bacalhauzadas aos mais próximos, após o que me mandou dar ordens ao Pelotão.

Verifiquei assim, da parte do Exército, uma especial consideração por um Grupo de Combate, relativamente apresentável, mas com espírito de sacrifício, voluntarioso, e atitude combatente. Naturalmente, senti-me vaidoso.

Entretanto sairam meia-dúzia de louvores, contrariando a ideia que transmiti ao Trapinhos, quando fui inquirido sobre o assunto, e lhe respondi que, justo seria num louvor colectivo, pois o que importava realçar, era, no meu entender, o espírito de grupo sempre evidenciado.

A seguir fiz uma coluna a Nova Lamego para os costumeiros transportes de víveres para a Companhia. Ali chegados, o pessoal foi às tarefas, e eu fui apresentar-me ao Major Segundo Comandante, acompanhado pelos restantes elementos para alguma eventualidade. Se corresse bem, teríamos tempo para umas cervejolas e, até para almoçarmos.

Apresentei-me à porta do gabinete, fiz a palada e apresentei-me. O Major, que falava com um Furriel, imediatamente levantou a voz para mim, questionando-me sobre o desalinho, se eu não tinha noção do modo como trajava; sobre as patilhas e a mosca, se estava autorizado para tal; e enfureceu-se quando viu um cinto estranho ao fardamento. Eu, acabrunhado, respondia sim e não, completamente surpreendido e irritado com a violência do interlocutor. Logo ali prometeu-me uma porrada e mandou-me desandar. Virei costas e saí, que era o que eu mais queria fazer. Ao chegar ao pátio lacrimejei de raiva por me sentir vexado. O que lhe devia ter dito, se falasse de igual para igual, era que lhe fazia o favor de andar a combater para sua excelência passar uma tropa porreira no remanso do gabinete, e garantir uma choruda conta bancária no fim da comissão. O pessoal notou que eu estava alterado, perguntaram-me qualquer coisa e respondi:

- Está a andar, é reunir as viaturas e partimos já.

Durante o regresso, acalmado pelos solavancos da picada, ainda me ri da cena com o Major, qual guerra dentro da guerra: é que a minha apresentação, não sendo muito original, era suficientemente distraída para esbugalhar o olhar atento de um Oficial Superior que medrou entre NEP's e regulamentos. O que eu envergava era botas de cabedal, calças verdes de serviço, camisa camuflada e boina da farda n.º 1. O cinto era o do turra. Enfim, não seria a apresentação mais compaginável com a desejada imagem do Exército, menos ainda com a de um herói de Hollywood.

Dois ou três dias depois fui chamado ao COT-1, onde o Major me referiu ter tido conhecimento do meu problema em Nova Lamego, e que pediu ao ao Segundo-Comandante para não me dar a porrada, contra a promessa de que eu me apresentaria com cara lavada e bem ataviado. Disse o Major, que eu me barbeasse, vestisse em conformidade, e fosse apresentar-me ao Major de Nova Lamego, lembrando-me que uma punição não interessava a ninguém. Agradeci-lhe e comprometi-me.


Outra guerra

Poucos dias após, o Trapinhos, durante uma conversa restrita e informal, revelou que estava atrapalhado para uma data próxima, com falta de pessoal para Tabassi. Fiz-lhe ver que no dia imediato ao da dificuldade tinha programada uma operação-psico numas aldeias do interior, relativamente próximas do Gabu, onde teria que me dirigir para apresentação ao Major, mas se a dificuldade persistisse, poderia contar com o Foxtrot para lá irmos passar a noite, na condição de regressarmos mais cedo do que o habitual, para banhos, pequeno-almoço, e saída imediata. Aliviado, o Capitão imediatamente acolheu a disponibilidade demonstrada, que transformou em ordem, e disse-me que faria o reforço à aldeia.

Entretanto chegou uma verba para mim, a título de prémio pecuniário pela captura de armamento. Decidi abrir um crédito na cantina a favor do Foxtrot e, a partir daí, todos os prémios que recebi tiveram o mesmo destino.

Tínhamos patrulhado de manhã, e fomos passar a noite a Tabassi. No regresso a Bajocunda dei indicações precisas para o pessoal se preparar rapidamente, tomarem o pequeno-almoço, e aprontarem-se para a saída. Eu faria a coluna até Nova Lamego, enquanto eles visitariam uma aldeia munidos de ração de combate. Depois esperar-me-iam perto da ponte, onde me juntaria a eles para prosseguirmos as visitas até ao dia seguinte. Durante a minha ausência o Pelotão seria comandado pelos Cabos Valentim e Andrade. Houve uns murmúrios sobre tanta actividade, mas nada de relevante.

Fui pôr-me bonito para a apresentação ao Major. Quando cheguei à parada vieram dizer-me que não tinham tabaco e não sabiam do Jesus, o cantineiro. O Trapinhos também seguia viagem, mas ainda não aparecera, pelo que achei ainda haver tempo. A saída protelava-se bastante, e nem Capitão, nem Jesus. Quando o Capitão surgiu falei-lhe na dificuldade do pessoal em arranjar tabaco, ao que, descuidadamente, respondeu:

- Esses filhos da puta não precisam de fumar.

Ora, alguém ouviu e o Pelotão fez finca-pé. Sem tabaco não saíam. O Trapinhos, já em cima de um Unimog, deu-me ordem para partirmos. Respondi-lhe que o pessoal tinha falta de tabaco, não tivera oportunidade de o comprar por ter passado o dia fora, e parecia razoável aviarem-se para outros dois dias.

- Dê-lhes ordem para subir. - Respondeu-me o Capitão.

- Eu? - Questionei-o na esperança de atender ao meu argumento.

- Sim, você! Não é o Comandante deles? - Respondeu-me.

- E você, meu capitão, o que é? - Perguntei-lhe farto da intolerância.

Alguém apareceu com um volume de maços de cigarros, porque a cena já era apreciada por muitos militares, o pessoal tomou lugar nas viaturas e partimos. Era visivel alguma confusão na segunda viatura, onde seguia o Capitão.

Em Nova Lamego apresentei-me ao Segundo-Comandante nas condições regulamentadas. A seguir teria que aguardar pelo regresso, sem qualquer missão, que não fosse o devaneio. Dirigi-me ao bar em frente do Comando, onde me sentei numa mesa com Páras. Momentos depois entrou na sala um Cabo a perguntar por mim. Identifiquei-me, e pediu-me para o acompanhar ao Comandante. Sentei-me ao lado dele no jipe, que atravessou a rua e parou no pátio interior. Subi ao gabinete no primeiro andar.

O Tenente-Coronel mandou-me entrar. Sentado, num canto, à minha esquerda e à direita da secretária do Comandante, estava o Trapinhos. Levei uma piçada durante uma hora, em sentido, que nem eu pedira, nem ele me mandou pôr à-vontade. Pedi-lhe licença, mas retorquiu que ainda não acabara de falar. Alguns minutos depois deu-me autorização para argumentar. Comecei a expor as minhas razões, quando o Comandante me interrompeu, questionando-me se estava a acusar alguém. Não, não estava, respondi, apenas apresentava as justificações da minha defesa perante o que tinha sido referido. De soslaio, pelo canto do olho, via o Capitão a cruzar e descruzar as pernas, nitidamente nervoso. No final, o Tenente-Coronel, mais cortês, disse-me, que aos milicianos competia uma importante tarefa no enquadramento do pessoal e, que ainda tínhamos o dever, sempre que possível, de aliviar as tarefas do nosso Capitão, já assoberbado com outras funções que só ele podia desempenhar. Compreendi que ele percebera a extrema incompetência do Capitão. Depois, cordialmente, mandou-me sair.

Senti um grande alívio. Livrara-me de outra armadilha. Fui almoçar, descontraí, e voltei a encontrar alegria quando me juntei ao Foxtrot para prosseguirmos o caminho da psico, sugeito a algumas larachas por ter andado a passear e a banquetear-me na cidade. A operação de psico consistia no tratamento de feridas e distribuição de comprimidos, conforme as mazelas que a população apresentava, tratamentos exponenciados com alguma injecção, se o problema se mostrava mais gravoso. Davam-se conselhos para deslocação às consultas junto da tropa sempre que era aconselhado.

Muito pouco tempo depois, o Comandante do COT-1 foi substituído, e perdi um interlocutor de referência.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5562: História da CCAÇ 2679 (31): Ataque à tabanca de Tabassi em 30NOV70 (José Manuel M. Dinis

3 comentários:

Anónimo disse...

Era para fazer um comentário, mas decidi enviar-te apenas um abraço.
Belarmino Sardinha

Anónimo disse...

Aqui está um texto de alguém que foi combatente. Quero eu dizer que para além do primor da escrita deste ou daquele, existem textos, como o caso vertente, que respiram verdades incontornáveis a saber e apenas as que mantenho de cor nesta cabeça cada vez mais fraca:
-cada um de nós teria que tornar-se mais responsável.
-era certo que não os temíamos(ao IN).
-só a homogeneidade do grupo poderia garantir o sucesso de cada um.
Gostei que te tivesses sentido vaidoso do teu grupo de combate.
Eu, ainda hoje me sinto vaidoso dos homens que comandei.
Também tive histórias de piçadas dos senhores oficiais superiores, mas daí ao vexame...isso é que era bom.
Um abraço Zé Dinis.

Vasco A.R.da gama

Anónimo disse...

José M Dinis

Gostei de ler este teu texto,elucidativo de posicionamentos nessa guerra por alguns "superiores"que nos magoavam e exasperavam e que tantas vezes nos compeliam a mandar tudo às urtigas.
Nessas alturas valia-nos tambem a coesão com os nossos e a força psicológica de quem cumpria o dever perante os seus,para o não fazer.
Mas...tudo isso era uma batalha na guerra que muitas vezes acabou por reforçar os laços de união entre nós e os nossos homens,situações que ainda hoje ,quando abordadas, comovem.
Um abraço

Luis Faria