quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos Vinhal.
Envio-te este texto, como sempre deixo ao teu critério a sua validade.


DETECÇÃO DE MINAS / PICAGENS

O treino dado aos soldados, já numa fase adiantada quando era já um dado adquirido a ida para a Guerra Colonial, era uma ficção, estou convencido que se houvesse treino adequado, se possível dado por militares que já tivessem passado pela guerra, ter-se-iam minorado algumas situações desagradáveis.

Assim e nas condições em que a maioria foi preparada para a guerra, é caso para dizer que todos nós fomos HERÓIS.

Lembro-me de andar uma manhã para percorrer 1km na detecção de minas de fragmentação dissimuladas no terreno compostas de fumo e serrim(?) e quase nunca detectadas, que rebentavam quando o recruta passava, accionada por um cordel, nas mãos do instrutor que assustavam quando detonadas e eram levadas muito a sério.

Picagem em terreno firme. A viatura rebenta-minas vem atrás
Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.



Nema- Farim

No caso concreto das minas, havia os Sapadores incorporados no Batalhão que as retiravam quando solicitados para o efeito, e que minavam os trilhos por onde passava o IN, mas quem fazia as picagens, na maioria das vezes, eram os atiradores, do 1.º e 2.º GComb/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 sediados em Nema até aos ataques a Guidaje, (quando saímos de Nema para Binta), pelo menos no nosso caso era assim, embora os Sapadores fizessem algumas acções de patrulhamento em conjunto com os nossos GComb.

As minas eram o terror que acompanhava o soldado operacional em toda a comissão, de tal modo que a tarefa de picador**, era sempre recebida com desagrado.
O factor psicológico de pisar uma mina era de tal ordem, que havia camaradas que pediam que se algo de mal acontecesse preferiam que acabassem com eles, a ter de voltar amputados.

Quando fomos (já a sério) em treino operacional de Nema até ao corredor de Lamel para as futuras protecções descontínuas às colunas vindas de Jumbembem, Cuntima e Canjambari, para irem a Farim fazer os abastecimentos, ficámos com a sensação de não termos feito bem os trabalhos de casa.

Seguíamos os elementos da 14.ª Companhia que seguiam na frente da coluna e o andamento foi tão normal que nos interrogamos como era feita a picagem.
Quando nos mandaram parar e ficar a emboscar até as colunas passarem, na ida para Farim e depois voltarem, perguntei a um elemento da 14.ª se tinha havido picagem, pois tinha sido rápida a marcha, ele sorriu e disse-me:

- As picagens são feitas mais com os olhos, se fosse como nos ensinaram nunca mais a coluna passava, vocês vão aprender isso rapidamente.

Depois nas repetidas idas ao mato para fazermos as protecções descontínuas às colunas, tínhamos de fazer a respectiva picagem até ao local onde ficávamos, até as mesmas regressarem de Farim.
Nessas picagens eram escolhidos um conjunto de cerca de 6 elementos para o trabalho de picagem do solo, 3 de cada lado na picada de modo a cobrir os espaços onde as viaturas passavam, e de facto com o hábito aprendemos a ler onde pôr os pés.
Devo dizer que era uma tarefa que nenhum de nós gostava, e das vezes em que era eu um dos eleitos, não deixava de resmungar e a minha má disposição era evidente, de nada valia andar com a HK-21 porque o alferes mandava trocar a arma com outro camarada.

Numa dessas vezes ia concentrado olhando e picando o solo, eis que ouço o toc da pica ao bater em algo, paro de imediato, e algo temeroso exclamo:

- Mina!

Com a nossa malta toda parada, avança o alferes mais um furriel, verificam a possibilidade de tirarem a mina, depois se a memória não me atraiçoa foi o furriel que com a faca de mato retirou cautelosamente a terra em volta de um pequeno objecto de forma circular enterrado no solo, não havia espoleta e depressa se deu conta que a mina era uma lata de ração de combate virada ao contrário.

Esta descoberta valeu-me, um elogio da parte do alferes que me disse em tom trocista:

- Estás a ver porque te coloco mais vezes na picagem, porque só os bons são capazes até de detectar latas!

Noutra altura um dos meus camaradas de GComb já farto de ser escolhido para a picagem, e como forma de mostrar o seu descontentamento pegou na vareta da picagem colocou-a ao ombro e avança em frente em passo acelerado perante os nossos apelos para que parasse. Lá o conseguimos acalmar, em abono da verdade devo dizer que foi um excelente operacional, mas estas atitudes eram um escape para a forte actividade operacional que havia, mas que foi compensada pela actividade pouco visível do IN devido a constante vigilância nossa no sector, com bastantes noites passadas no mato.

Depois com o aparecimento de minas anti-pica, (rebentavam ao contacto da pica) as Berliets com os sacos cheios de areia, colocados na dianteira das viaturas, sobre os seus rodados fizeram muitas as vezes de picadores, salvando muitos camaradas da morte e da mutilação.

Já agora uma palavra de apreço aos nossos camaradas condutores, que apenas com uma perna dentro da viatura para a condução da mesma, a outra ia da parte de fora, no sentido de minimizar os danos físicos se acontecia o rebentamento, quando eram projectados, havia-os na minha Companhia, mas sei que a partir de certa altura era uma prática bastante usual em toda a Guiné.
Uma palavra de sentida homenagem a todos os camaradas que voltaram para a sua Pátria destroçados por engenhos explosivos, e que me continuam a dar lições de vida, no seu dia a dia, esses são os meus Heróis.

Um grande abraço
Manuel Marinho

Mina AP (antipessoal) de petardo único e detonador, feita em madeira.
Foto: © Raul Albino (2009). Direitos reservados


Mina anticarro detectada por um pica da CART 2732 no Bironque, estrada Mansabá-Farim.

Efeitos de uma mina anticarro numa GMC ao serviço da CART 2732
Fotos: © Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5501: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (12): Vamos ajudar camaradas em dificuldades (Manuel Marinho)

(**) 30 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4760: Pensamento do dia (17): Recordando as Picas (Jorge Teixeira/Portojo)

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5477: Blogoterapia (137): Palavra de honra que não consigo entender (José Brás)

3 comentários:

Cesar Dias disse...

Caro Manuel Marinho

Fazes referência á pouca preparação que tinhamos para enfrentar estas situações. Estou plenamente de acordo contigo, penso já ter falado disso nalgum post ou comentário, aqueles que se viram logo á chegada metidos nessas situações, passaram um mau bocado.Penso que só perto do final da comissão estavamos aptos. Isto passou-se com o meu pelotão, quando chegámos tivemos logo feridos numas armadilhas, e nos três ultimos meses de comissão estivemos na estrada de Mansabá-Farim sem problemas, pois já tinhamos muita tarimba, no entanto os camaradas que nos renderam nesse local faleceram, connosco ainda na Guiné.
Manuel Marinho, isto é só para confirmar que muitos dos nossos camaradas que ficaram naquelas terras, foi por falta de preparação para a Guerra.

Um abraço
César Dias

Anónimo disse...

Caro Marinho:
Descrições como esta serão um dia, para quem quiser e souber fazer a história da guerra colonial, preciosos documentos vertidos da realidade. É também verdade que muitos não teriam perdido a vida se a guerra não fosse tão mal «anagalhada».Mas, todos nós percebemos que um pequeno rectângulo como Portugal não tinha gente suficiente para mandar para três frentes de guerra, uma delas 14Xmais, devidamente preparada.Para isso era preciso muito mais gente e muito mais dinheiro.
Vamos sempre parar ao mesmo:solução política,não militar.

Um abraço
Carvalho de Mampatá

JD disse...

Camaradas,
Os heróis a que se refere o M.M. são todas as vítimas da guerra, mesmo os que agiram levianamente, dada a impreparação aqui referida.
Bastava que as rendições não se fizessem ao magote, que os mais experimentados permanecessem junto dos piras e lhes transmitissem conhecimentos.
No geral não era assim. Temos um atabancado que, após a comissão, ainda foi instrutor em Mafra. Ignoro as circunstâncias, mas assim é que deveria ter sido dada a instrução operacional.
Mas o exército não teve esse discernimento.
Abraços fraternos
J.Dinis