domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5705: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (21): As diversas formas do medo

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Caro Carlos:
Em anexo mando a estória n.º 21 para a série A Guerra Vista de Bafatá.

Estive hoje na Tabanca de Matosinhos. Estavam lá 50 camaradas.

Um abraço, boa noite e até para a semana (espero).
Fernando Gouveia



A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

21 – O Medo


Recordo com saudade quando um dia, com os meus sete ou oito anos, fui com o meu pai à caça lá no meu Nordeste Transmontano e no regresso, já noite pois era Inverno, nos sentámos numa fraga a retemperar forças para chegar à aldeia.

Ali naquela escuridão o meu pai deve ter achado, com alguma razão, que eu estava com medo e num gesto que nunca mais esqueci, sem nada me dizer, pegou na espingarda e deu-ma para eu pegar nela.

Podiam vir todos os lobos, todos os monstros, tudo o que podia meter medo, mas aquele gesto apagou todos os meus receios ficando com uma paz interior que me fez esquecer todos os papões.

Outra recordação, agora da instrução em Mafra (Maio ou Junho de 1967): Ensaiávamos um exercício que constava em saltar, com a arma, de uma viatura em andamento. Pois bem, um camarada cadete não conseguia saltar, nem com a camioneta a andar lentamente. Os instrutores fizeram de tudo e disseram de tudo (até da mãezinha) para ele saltar e nada. Por fim pararam a viatura e mandaram-no saltar. Tremendo como varas verdes, não saltou. Isso já era medo levado ao extremo.

Também, e agora já na Guiné, recordo-me de ouvir por mais de uma vez, aqueles episódios de camaradas que no desencadear de uma emboscada IN se escondiam atrás de troncos de árvore, com sete ou oito centímetros de diâmetro. Isso seria medo totalmente descontrolado.

Já noutra estória descrevi a penúria de armamento, aquando da minha estadia em Madina Xaquili. Nunca lá senti medo. Também quando lá entrei numa operação em que cruzámos trilhos IN, daquele dia ou do anterior (era fácil a datagem por o capim ter um palmo), não senti medo. Em ambas as situações era eu que as controlava.

Pessoalmente e que me lembre, como adulto só senti medo por duas vezes e, na Guiné, de forma algo caricata. Considero que tive medo exclusivamente por não ser eu a controlar as situações.

Senti medo, quando chegado à Guiné e colocado na 2.ª REP do CG (onde estive quinze dias no ar condicionado, antes de ir para Bafatá), ao fim de quatro ou cinco dias fui escalado para Oficial de Ronda. A ronda consistia em ir num jeep com um furriel e dois soldados, percorrer os subúrbios de Bissau, por zonas de picadas, sem luz, e algum mato. Como era periquito limitei-me a seguir as indicações do Furriel, requisitando para o efeito uma pistola. Se lá continuasse a fazer esses serviços levaria armamento mais adequado e tentaria convencer os superiores a colocarem à disposição pelo menos dois jeeps. Não gostaria nada de ser apanhado à mão, o que naquele caso era simples. Senti medo sim.

O meu quarto (8 camas) durante os quinze dias em que estive colocado na 2ª REP do CG.

“A Santa Catarina” de Bafatá. A rua principal de comércio, com o cinema, o mercado, etc.

Em Bafatá a um mês ou dois de terminar a comissão, estando depois de jantar à conversa com o médico do Batalhão (comandado pelo Ten Cor Banazol), resolvemos ir à caça, no jeep que ele tinha à disposição. Fui buscar a caçadeira, e na viatura fomos andando pela estrada velha de Nova Lamego (uma picada) esperando que nos aparecessem uns coelhos (que por acaso eram lebres). Muitos já tinha matado dessa maneira, mas dessa vez não aparecia nada e o médico lá ia conduzindo. Um quilómetro, dois, quatro, sete, uma infinidade de quilómetros. Comecei a achar que já tínhamos ido longe de mais. Não dei parte de fraco. O médico então disse que era melhor voltarmos pois não havia nada. Era do que eu estava à espera. Aguentei firme, mas cheguei a ter medo. Mais uma vez não era eu a controlar a situação e continuava a não gostar de ser apanhado à mão.

Até para a semana camaradas
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5566: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (20): Memórias paralelas

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Fernando Gouveia

Esta tua história fez-me lembrar a minha primeira missão na Guiné mas preciso de recolher mais alguns pormenores para torná-la porventura mais interessante.

Achei notável essa associação que fizeste entre o reconhecimento do medo (a admissão da sua existência) e o facto de isso depender de seres tu a controlar, ou não, as situações...

Assim a brincar, é a modos como ir ao lado dum condutor dum veículo, mesmo que se confie nele, quando toda a vida se foi o condutor da viatura em causa.

Um abraço
Hélder S.

Torcato Mendonca disse...

No Poste anterior ao teu estão várias fotos. São de Homens a aliviar tensões. Homens que eram quase meninos quando chegaram á Guiné. Aqui nas fotos é gente dura com muitas horas debaixo de fogo, muitas emboscadas, assaltos, ataques a aquartelamentos. Eu pertencia aquela gente, sou um deles.Não estou nas fotos. Podia estar em Madina Xaquili, Galomaro, Candamã...num buraco qualquer do Sector L1 ou a dormir com uma prostituta numa morança qualquer ou bêbado e só...e se tivesse um morteiro sem prato e com 16 granadas era bom. Iamos a Bafatá como prémio ou em fuga depois de termos feito um ronco,depois de termos arriscado a vida...medo,medo,todos o sentiram. Controlar o medo é que nos levava a não o sentir. Caias na emboscada e reagias com o automatismo do treino...medo? Talvez mas nem sei. E hoje tenho muito mais medos.
Bafatá era bom.Passa os olhos pelo poste abaixo do teu e certamente encontras a razão deste comentário.
Abraço do Torcato

Joaquim Mexia Alves disse...

Percebo perfeitamente o Torcato!

Bafatá para mim constituia qualquer coisa como um prémio, uma "civilização", um ronco, uma adrenalina, um desafio, uma vitoriazinha!

Explico:
Prémio porque era sair da rotina e ir supostamente a uma coisa boa!
Civilização porque era sair do quartel, da mata, para ir a uma cidade comer à mesa dum restaurante. (Pobre consolação)!
Ronco porque depois nos "gabávamos", Capitão Bordalo, Alferes da C Caç 12 de termos ido a Bafatá almoçar de unimog sozinhos!
Adrenalina porque apesar de tudo o nível da dita cuja se mantinha alto, sobretudo na ida, pois no regresso, (mais aquecidos com uns "uísques"), a coisa não era tão sentida!
Desafio porque o era para nós, mas sobretudo porque desafiavamos o comando do Batalhão que tinha proibido tais excentricidades!
Vitoriazinha porque afinal os gajos não dominavam coisissima nenhuma naquela zona e a gente assim o demonstrava naquelas viagens!
Os doidos têm sempre alguma sorte, nem que seja a tranquilidade da insconsciência!!!!

Abraço camarigo para todos

JD disse...

Tem graça,
Eu também não manifestava medo, nem o sentia, salvo quando a coisa azedava, mas não me tolhia, nem perturbava por aí além.
Também tem graça que os comentários se completem: um, questiona, medo quem o não tem? Outro, refere que os doidos vivem a tranquilidade inconsciente.
Logo, prefiro a noção de ter medo, embora com a capacidade de o controlar.
Abraços
J.Dinis