segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5745: José Corceiro na CCAÇ 5 (2): A primeira saída para o mato (1ª parte)

1. O nosso Camarada José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a sua 2ª mensagem, em 30 de Janeiro de 2010:

Camaradas,

Grato, pela atenção que possa ser dispensada a esta minha divagação, da incursão, que me foi imposta, nas terras da Guiné.

Dividi a narração, em duas partes, sendo esta primeira como que o aperitivo para ganhar folgo e coragem para partir à aventura e acção.

A todos, os tertulianos, o meu agradecimento por me permitirem invadir, uma nesga da vossa privacidade e darem-me um pouco de atenção e companhia. Para todos, o meu humilde Bem-haja, saúde para todos.

A PRIMEIRA SAÍDA PARA O MATO (1ª PARTE)

Cheguei a Canjadude, dia 13 de Junho, de 1969, na parte de tarde. Após a refeição do jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07.00h, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de Companhia, ao Cheche. De transmissões iam o Silva, o Carvalho (que era o mais velho de transmissões), e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia sempre o Carvalho.

Era a minha primeira noite, passada no abrigo de transmissões, onde fiquei instalado e a dormir. Confesso que, para mim, se veio a tornar incomodativo, dormir lá. Além da luz sempre acesa, eu tenho a particularidade de muitas vezes dormir de olhos abertos, por isso, tornava-se duplamente perturbador.

Havia o expediente normal dum posto de transmissões em funcionamento 24.00h/dia, com os barulhos inerentes à execução das tarefas próprias das comunicações.Estava permanentemente um operador de serviço, em turnos rotativos de 3 ou 4 horas, para dar cobertura às necessidades de emissão, ou recepção de mensagens, e a respectiva manutenção do equipamento. Também os Q.T.Rs., eram desconcertantes para poder dormir, pois, de hora a hora, o posto principal (no caso Nova Lamego), fazia um varrimento a todos os postos do grupo, a perguntar quem tinha mensagens a transmitir e informava quem tinha a receber.

Dormia-se num ambiente demasiado agitado e hostil, visto o sossego não ser possível, devido a esta laboração, que era necessário desenvolver. Desta forma o sono não era reparador, para mim, e havia ainda outro inconveniente, pois quando se estava de serviço de noite precisava descansar de dia, que era a falta de silêncio. Além de tudo isto, o espaço era exíguo para as necessidades, as camas estavam amontoadas e mal dava par respirar. Mudei, do abrigo de transmissões para o abrigo Norte, dia 7 de Julho de 1969, uma segunda-feira.Nesta, primeira noite, fizemos um serão prolongado.

Era norma, o periquito chegado, pagar umas cervejas aos camaradas da secção e eu não fugi à regra. Os meus colegas estavam ávidos de notícias da civilização e eu estava sequioso do conhecimento deles, para melhor me proteger da guerra. As palavras são como as cerejas, só custa é comer a primeira, atrás de uma vem outra e assim foi, falou-se de tudo, da Metrópole; das novidades musicais, dos discos de vinil e do gira-discos que eu levava (tinha tido o primeiro haviam passado 10 anos e ninguém me ensinara a passar sem ele).

Falamos das namoradas, dos cuidados na Tabanca, das lavadeiras (logo que me quiseram arranjar uma). Muitas perguntas: Como tinha eu ido parar ali? Se tinha sido algum castigo? Cavaqueamos das aventuras e desventuras de cada um, do tipo de conversas de soalheiro e caserna!

Eles estavam concertados e queriam, amigavelmente, infernizaram-me a vida, mais parecia que me queriam praxar. Eu era uma novidade, um periquito e estava muito verde… um novato. Eles diziam: “Nós já somos velhinhos!”. O que queriam era “folia” e atormentar-me.Às tantas, um deles, causticamente, sai-se com esta:

- Tu chegaste hoje, dia 13 sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares (47), isto não é, convém que se diga, uma colónia de férias, para vires com discos e gira-discos na bagagem. Isto aqui é a guerra amigo e não vais ter propriamente vida facilitada, até porque os nossos graduados não são flor que se cheire, as surpresas, não vão ser glico-doces para o teu lado.

Eu respondi:

- Que respeito e sentido de hospitalidade vocês têm para com um colega, que se encontra aqui encabulado e pávido…! Não há necessidade de serem capciosos comigo, não nos conhecemos é certo, mas, neste caso particular, estar a utilizar a astúcia não é cordial, comigo não pega! Estamos todos no mesmo barco e aqui não reconheço barões. Quanto ao dia ser 13 e sexta-feira, para mim, são meros acasos, nada mais! Eu tenho a abonação do primeiro banho que me deram à nascença, que foi de humildade, regado com água benta, para ficar escudado e céptico, contra o mau-olhado e vacinado para imunização da superstição!

Sobre o Cheche é um facto, não tinha argumentos, mas, estava interessado em saciar a minha curiosidade. Sabia algo mas muito pouco, para a consistência e afirmação do meu ego e satisfação do meu desejo. Já ouvira falar qualquer coisa na Metrópole, mas, despreocupadamente, pouco me dizia. Só em Nova Lamego, em diálogo com o cabo Amaro, me elucidei e tomei consciência da localização geográfica de Canjadude. Fiquei a saber que, para lá deste, não haviam mais aquartelamentos.

Estava o Cheche, numa das margens do rio Corobal, de onde foram retiradas as N/T e, atravessando para a outra margem, estava a zona de Medina de Boé.Embora não fosse o momento adequado, sobretudo para mim, o diálogo descambou para a tragédia do Cheche e percebi, que haviam alguns, que me queriam supliciar com “velhaquices”. Compreendi e aceitei, pois era o meu primeiro baptismo de poluição psicológica guerreira. Eu estava ali puro, tinha chegado há meia dúzia de horas e era ainda um estranho.

Estava a aprender, a ganhar a confiança deles, achei que era aconselhável ser humilde e submisso e foi essa a minha conduta. A prudência nunca é demais, pois alguns deles já tinham a sua dose exagerada de mato e guerra e não admitiam contraditórios, sentiam-se conhecedores absolutos da verdade, como se uma só houvesse (a deles como é óbvio).

Pensei que lhes assistia o direito de me estarem a malhar e amedrontar. Eu pus em prática o ensinamento do meu professor de Filosofia, que dizia assiduamente: “Em casa de letrado, tanto se paga de pé como sentado.”.

Com todos os camaradas de armas tive relacionamento cordial e a todos lembro como amigos. Houve dois ou três “casinhos”, em que estive envolvido (só um em transmissões) sem importância nenhuma, que eu não esqueci, e provavelmente nunca ninguém mais se lembrou, e que a seu tempo aqui aflorarei.No delongo serão, falou-se da tragédia no Cheche e, alguns que a viveram, como que se recolheram em meditação. Foi um momento delicado, evidentemente que havia vozes embargadas e trémulas, a falar do assunto.

Era recente e estava fresco ainda nas memórias, mas, notei disponibilidade e ansiedade, para relatar o acontecido e estavam desejosos que alguém os ouvisse.Era notório que os alguns dos mais velhos estavam marcados, pois foram testemunhas impotentes da tragédia que a seus pés se desenrolou.

Tinham necessidade de falar e havia história para contar, sobretudo o Nora, o Graça, o Dionísio, o Loupa, o Rogério, o Carvalho e o Alex (estes dois últimos eram mais reservados). Em tempo passado na Guiné, o Carvalho era o mais velho e a seguir ao Dionísio (que eu estava a substituir).Pelo que percepcionei e registei, fiquei com a convicção que houve muito compromisso, empenho e envolvimento da CCAÇ 5, na retirada de Medina de Boé. Não tanto na acção operacional, mas sim na logística, recepção, hospitalidade, aquartelamento e esperança.

Não podendo esquecer também, que era o desejo da concretização dum sonho a unificação da companhia, que andou uns anos dispersa, por Cabuca, Nova Lamego, Cheche e Canjadude. Toda a CCAÇ 5, viria a aglutinar-se, em Canjadude.Os camaradas atrás citados, andaram em rotatividade, pelos locais onde os pelotões estavam sediados e era desconfortante esta dispersão, mais que não fosse em termos de segurança, pois havia menos coesão e entrosamento que os debilitava e tornava alvos mais indefesos.

Isto, quer para os metropolitanos, quer para os nativos, até porque, estes últimos, tinham as suas famílias estruturadas e domiciliadas, e preferiam receber os seus prés como desarranchados, sendo má política desfavorecê-los.

O Loupa e o Dionísio estiveram cerca de meio ano deslocados em Cabuca. No meu tempo dois homens da secção de transmissões foram feridos (um por acidente com uma G3 em Canjadude e outro numa deslocação a Bruntuma, num ataque aquando da operação Mar Verde, tendo-lhe sido atribuído um determinado grau de deficiência física).

O Graça dizia com orgulho que em tempos veio só e a pé (mais de 15Km), do Cheche a Canjadude, buscar o correio, algum expediente e mais alguma coisa, numa aventura arriscadíssima (autêntica roleta Russa). Faço esta afirmação, porque nesta picada que ele teve que percorrer, eu vi destroços de algumas viaturas devido ao efeito das minas, que por ali tiveram que ficar, e, pelo menos uma, incendiou-se numa das emboscadas (posteriormente, estive presente na recuperação de duas destas viaturas, em datas distintas).

O Cheche não tinha civis, o que o tornava muito isolado, representando assim sofrimento acrescido para os aquartelados, que ficavam confinados, dum lado pela água do rio Corobal, e do outro lado, em forma de meia-lua, por mata e floresta. Para poderem tomar banho no rio tinham que lançar previamente duas granadas para a água, de modo a afugentar os crocodilos e só depois se banhavam, o que, mesmo assim, não deixava de continuar a ser arriscado.

A margem do rio fazia uma ligeira encosta e estava dentro do aquartelamento, por isso, até pescar se aparentava perigoso (por duas vezes em operações em que eu estava presente, foram mortos crocodilos nos riachos afluentes, que presumo deviam ir desovar).

Houve, inclusivamente, empenho festivo para receber com a dignidade possível e agradecimento merecido, os martirizados heróis que deixavam Medina de Boé. Eu sou testemunha ocular que passados 4 meses após a infausta tragédia, existirem ainda a cerca de 1km de Canjadude, na picada que liga ao Cheche, fachas de pano passadas de árvore a árvore, por cima da picada, onde se podiam ler coisas como: “Canjadude saúda-vos”.

Pelo menos 1 ou 2 dessas fachas estavam por lá e só a acção do tempo as destruiu. Assim como haviam algumas folhas de palmeiras atadas nas árvores, ao longo da picada, como que a saudar e louvar os heróis. É lógico que os indícios preliminares de festividade deixaram de ter sentido após a aziaga tragédia.

Creio que ainda há história para contar, sobre a martirizada companhia que esteve e fechou Medina de Boé. Aqui não me alongo mais porque não fui testemunha.

Presto a minha homenagem pessoal a estes heróis, os que ficaram e os que partiram.

(CONTINUA)

FOTO 1 - Na frente – à direita: João Monteiro (tomava conta da cantina bebidas) e, a seu lado, estou Eu e o Nora. Atrás - à direita: Silva, Rogério e Dionísio (que eu substitui)

FOTO 2 - O Dionísio (lado esquerdo) a ensinar a arte ao periquito (Eu) que não aprendeu

FOTO 3 – Eu, sentado em cima do abrigo numa cadeira feita com aduelas das pipas do vinho, a ouvir música no meu gira-discos

FOTO 4 - Eu na Celebração de Missa em Canjadude (8 de Julho 1969). Não sei o nome do Padre.

FOTO 5 - Eu, do lado direito, e um Furriel junto à imagem da Senhora do Cheche, cuja história da Senhora do Cheche já não lembro.

FOTO 6 - Uma das máquinas que levei da Metrópole para a Guiné e me ajudou a passar o tempo. Guardo-a como uma relíquia. A conservação é a que se pode ver, está a funcionar, sempre a fotografar e tive sorte com ela porque nunca apanhou fungos, nem nas ópticas, nem nas lentes (Foto tirada em 30/01/2010)

Um abraço para todos,
José Corceiro
1º Cabo Trms da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


1 comentário:

Jose Marcelino Martins disse...

Caro Corceiro

Há situações que já me tinham escapado ou já aconteceram após o meu regresso.

Agora há que juntar as pontas e inclui-las nas memórias - nas minhas e nas da companhia-

Continua, faz bem a todos.

José Martins