sábado, 13 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Este é o mais recente livro do Armor Pires Mota, considero que se trata de uma obra de consagração e merecia que todos nós a lêssemos. Não paro de me interrogar como é que é possível ter mantido num olvido discreto alguém que escreve em tão bom português e tão bem sobre aquela África da nossa juventude.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (7)

A Cubana que dançava flamenco: a consagração de um grande escritor


Beja Santos

“Cabo Donato, pastor de raparigas”, “Estranha Noiva de Guerra” e “A Cubana que dançava flamenco” são obras muito afins na arquitectura literária e nos esquadrinhar das memórias. Direi que entrelaçadas, diferentes prismas do mesmo olhar. O que era convencional nos anos 60, desaguou na sinceridade que é possível a quem já nada tem a perder com a dor revelada. Agora, a linguagem vai-se desprendendo, Armor Pires Mota deixa de procurar soluções lisonjeiras, o que é bruto deixa de ser polido, o que é áspero deixa de ser amaciado, os heróis transgridem, vivem alucinados, superam os tempos da realidade, têm uma capacidade quase sobre-humana de conciliar e reconciliar os pólos opostos. A tropa, os seus figurantes, estão no local de combate e quando se encontram com a gente da guerrilha descobrem as aproximações e a disponibilidade do amor. A gente só se reencontra quando se tornou demencial apontarmos as armas uns aos outros.

Estamos perante um autor que se fixou nos territórios onde combateu, esses locais são tratados com uma relativa fidelidade geográfica, ele vai rodando os espaços e os tempos, Bissorã, Mansoa, Mansabá, Bissau, Morés, são nomes constantes, o que muda é a natureza do combate humano, a superação da solidão, a forma natural como a pessoa pratica o heroísmo sem ficar dependente dos seus efeitos ou dar explicações conjunturais. Cabo Donato é um trabalho preparatório, a germinação de uma obra-prima da literatura da Guerra Colonial, “Estranha Noiva de Guerra”, “A Cubana que dançava flamenco” é a consolidação de um género literário de um autor que amadureceu e autonomizou uma abordagem da guerra, misturando tempos, lançando dúvidas no leitor quanto ao delírio dos personagens, socorrendo-se de um género que privilegia o português castiço, quase à Aquilino, os ritmos avassaladores do realismo fantástico, o estilo da reportagem, o discurso confessional e, é importante insistir, uma permanente mensagem de amor cristão, onde o perdão e o reencontro depois de uma viagem cheia de afrontas tudo sublimam. Armor Pires Mota aprecia a catarse, como se escrevesse para arredar fantasmas, misturando a primeira e a terceira pessoa do singular.

Desta vez, o herói chama-se Silas Macário, vive não muito longe de Coimbra, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, é hoje um homem depressivo, muito virado para o que aconteceu em Santambato, no Morés mítico, tão temido pelas nossas tropas. A sua vida está-se a revelar um desastre até que recebe a carta do seu filho, tudo fruto de uma relação apressada com a bela Usita.

É uma linda carta escrita em crioulo, letra tremida, e que assim começa: “N´ka sibi si é carta na bai octchau, abo ki nha mame fala abo que nha papê, lá lundjo na Lisboa nindê ku bu s´ta nel. Si duno, ku sêdo bô, i branco de certeza, pabia ami nim n’ka branco, nim n’ka preto. N’ fica na metade de pintura (Não sei se esta carta vai encontrar ou não quem a minha mãe diz que é meu pai, longe na Lisboa ou onde é. Branco, é de certeza, porque eu não sou branco nem preto. Fiquei a meio da pintura). Assina António Macário, ele quer conhecer o pai e manda-lhe um abraço do tamanho de um poilão.

E as recordações de Silas põem-se a viajar. Oloto pedira-lhe ajuda, em Mansabá, para ir buscar o filho, envolvido na guerrilha. Irresponsavelmente, Silas acede, embrenham-se no mato, são detidos por uma unidade do PAIGC, o alferes Silas Macário torna-se prisioneiro de guerra. Em termos literários, temos a leitura e a releitura de tudo quanto se passou, é como que Silas estivesse a ganhar uma nova maneira de ver as coisas. A adaptação é cruel, a comida insuportável, o comandante Mamadu Indjai ofende, bate e tortura. O tempo ganha uma nova dimensão: “Os dias e os meses arrastavam-se assim com uma lentidão de pedra rolando em terreno difícil e rugoso, entre risos de troça, trabalhos menores ou perigosos emboscando a tropa, enquanto o alferes marcava o tempo, os dias, as semanas e os meses, com rasgos de canivete na casca da calabaceira por debaixo da qual se aninhava uma figueira-brava. Suportava já tragar, por vezes, raízes silvestres, mel, até mandioca. Como os guerrilheiros. O arroz de chabéu entrou na rotina. Também o irandé. Já não fazia caso e, tal como os negros, limpavam os dentes com pauzinhos”.

Vai sofrendo de ataques de matacanhas, passou a ensinar a ler as crianças e até os guerrilheiros. Depois apareceu Usita, que disse estar casada com Mamadu Injdai. Apareceram os cubanos, Ramon Stella, Angel Fuentes e Paco Sanchez. Assim se vive em Santambato, no coração do Morés. Desperta a paixão entre o Usita e Silas, Usita era desprezada porque não dava filhos. Usita, perigosamente, entrega-se a Silas, quer um filho do branco. Nas noites de solidão, Silas recorda Susana, a mulher do capitão com quem tem encontros esporádicos. De Santambato, Silas é deslocado mesmo para o Morés, aqui conhece Conchita, enfermeira e irmã de Ramon Stella. Como se de uma via-sacra se tratasse, Silas é forçado a trabalhar como carregador das forças do PAIGC, assiste a rixas. Conchita, a revolucionária, sente-se atraída por Silas, passam-se a encontrar regularmente. Silas vive a guerra ao contrário, está no meio das forças do PAIGC quando há emboscadas, vê-os matar e vê-os morrer, tudo sem um queixume. Armor Pires Mota vai desenhando conversas frugais, autênticas perguntas/respostas, tudo pontuado de frases breves que tanto falam de África como da sensualidade estabelecida, assim: “Uma nuvem gorda rolava no céu, agitada pelo vento. O vento desfazia os cabelos meio crespos, meio lisos da cubana que, levantando-se de um pulo contente, se foi amoldar nas pernas de Silas Macário que a puxou toda para si, sentindo-lhe o borbulhar do sangue e o bico erecto dos seios”.

Há um ataque a Mansabá, o autor volta a oferecer-nos uma grande imagem do pesadelo da guerra: “O morteiro berrava estrondos. As espingardas esganiçavam-se em cantigas de aço, insuportáveis aos ouvidos, ritmadas, mais volumosas do lado da tropa, quando uma rajada fez com que dois negros deixassem tombar as armas. Vigiavam-no também. Rogou-lhes por cima do corpo esbarrondado não sabe uantas pragas... O sangue jorrou no mato. Na caserna, de luzes apagadas ou frouxas, a tropa aguentara bem o primeiro ímpeto...” O regresso ao Morés é uma verdadeira debandada, com feridos e mortos. Conchita parece viver o amor da sua vida. Silas é forçado a acompanhar as colunas, assiste ao drama daquelas povoações que vivem no jogo duplo. É assim que ele volta a Santambato e que Usita lhe comunica que está grávida.

Armor Pires Mota não é um autor facilmente classificável. Tem uma notória predilecção pelo vernacular, o telúrico, há um chamamento da terra e de toda a cultura rural que lhe inunda as imagens. Sente-se a influência do jornalismo, do espírito da reportagem, mas o seu estilo povoa-se de arremetidas que nos recordam os hispano-americanos, ele explora habilmente a truculência dos desacertos e desalinhados da retórica militar.

Silas é muito diferente de José Joaquim Bravo Elias; este, como Ulisses, prossegue indómito até ao fim da sua missão; Silas é o produto das contingências, como veremos adiante, haverá o dia em que descobrirá que foi dado como desaparecido em combate e o corpo de um cubano está sepultado com o seu nome no cemitério da sua aldeia. Bravo Elias é o carácter de um povo, um valor, uma épica, Silas é o ser humano que espera décadas para redimir e opor-se ao seu destino. “A Cubana que dançava flamenco”, Armor Pires Mota, Imagens & Letras, 2008).
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5793: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (4): S. Domingos, 21 de Julho de 1961: Benedita, eles já aqui estão!

Vd. último poste sobre Armor Pires Mota de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

Vd. último poste da série Notas de leitura de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

Sem comentários: