quarta-feira, 3 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5923: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (4): Lugar aos novos, Emanuel Fernando Gonçalves Pereira, cooperante na Guiné-Bissau

1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira* (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), com data de 28 de Fevereiro de 2010:

Emanuel Fernando Gonçalves Pereira, nasceu em Alcobaça a 08/08/1978 na maternidade de sua casa na Av. Maria e Oliveira, n.º 23/ 1.º, dada a incompatibilidade que sua tinha mãe com a medicina e com os hospitais. Tem portanto 31 anos.

Quando cresceu foi um excelente estudante. Passou pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria e pela Universidade de Economia de Trento-Itália, licenciando-se em Gestão de Empresas, actividade que passou e exercer desde os 24 anos. Depois de diversas experiências de consultoria de gestão por conta de outros… criou a sua própria empresa.

Da actividade de consultoria de gestão surgiu o convite para fazer a reestruturação administrativa e organizacional da Caritas Guiné-Bissau. E é de lá que nos escreve:

- Fui nomeado pelo Bispo de Bafatá, a 03 de Outubro 2009, data em que cá cheguei, como Coordenador Geral de Projectos da Instituição para o território da Guiné-Bissau o que é uma grande responsabilidade uma vez que esta é uma instituição que assegura a maioria dos serviços de acção social no país, estando sob a sua tutela a maioria das instituições de saúde e de apoio à nutrição cá existentes.

Segue-se o primeiro testemunho deste jovem alcobacense com muitas saudades da sua terra mas, nitidamente, já apaixonado pela Guiné.

Vamos ver o que dizem os tertulianos da nossa Tabanca Grande.

Eu, que sou suspeito, gostei muito. E já lhe pedi mais escritos e fotos.

Sem esquecer os velhotes… há que dar lugar aos novos.
JERO


O HOMEM DA RAÍZ NO BOLSO
Emanuel Fernando G. Pereira

Cheguei à Guiné-Bissau a 10 de Outubro do ano passado, com a missão clara de fazer a reestruturação administrativa e organizacional da CARITAS.


Os elevados índices de pobreza fazem com que esta instituição seja um parceiro privilegiado de organizações como as Nações Unidas e a União Europeia, daí que o rigor organizativo terá de ser um dos elementos distintivos da sua acção.
Face a isto, revesti-me de toda a coragem, sentido profissional e pragmatismo para estar à altura do desafio. Pensei que a minha acção seria um contributo importante para a organização institucional do país, uma vez que do meu trabalho, eventualmente, surgiriam activos organizativos aplicáveis a outras instituições.
Cedo percebi que só seria bem sucedido por aqui, se temperasse a frieza inicial que me servia de protecção, por um profundo sentido humano que, na realidade, justificava a decisão que tomei. Deste exercício humano e pessoal, resultou um despertar para uma outra forma de ver o homem no mundo e na vida.


Como há despertares que nos agitam e nos mobilizam os passos, certo dia, rendido, tentei-me na direcção da urbe profunda. Deixei-me levar pelo movimento colectivo de uma cidade que pulsa fervente num caos de trânsito, que pula por estradas outrora asfaltadas, num movimento incessante de gente que tudo oferece, num nevoeiro místico de pó e gasóleo.
Entrei no Bandim, um dos mais emblemáticos mercados tradicionais de Bissau. Atraído ao seu interior, senti o estômago vacilar, mas logo o espanto se encarregou de o encorajar, até se instalar o encanto pelo que se deparava aos meus olhos.
Era incrível! Tudo se vendia. Cores, aromas, soluções e bens… Numa simplicidade alquímica de quem do nada tudo tira e tem.
Recomendo-me ao saber ancestral de um vendedor velho e causticado, que sentado no chão, cheio de poeira e mau trato, me recorda a velha inimizade entre a descendência de Eva e a da serpente, que abunda pelas terras da Guiné. Estendendo para mim a sua mão fechada, convida-me a tomar nas minhas um objecto, segundo ele, sacro.
Descubro na palma da minha mão uma raiz. Uma pequena raiz branca, polida e com um cheiro forte e intenso. Segundo o velho vendedor, aquele objecto seria como que o meu anjo da guarda por aquelas paragens, não havendo assim víbora que me atacasse ou corrompesse.
Desde então descobri na Guiné rostos duros de pedra, mas capazes dos mais belos sorrisos que alguma vez vi. Percebi que também aqui a vida vale a pena, pelo tal sorriso que se faz com pouco mais de nada.
Descobri, por aqui, saudações duplicadas a cada manhã e que são mote para mãos dadas e apertadas num gesto longo e prolongado, num gesto de alguém que, efectivamente, está e deseja estar unido ao outro.


Descobri paisagens…Uauuuuu! De cortar a respiração. Justificando, também, a passividade autóctone ante a monumental espectacularidade com que o criador dotou o horizonte, tirando qualquer réstia de coragem a quem o possa querer conquistar em vez de o contemplar.


Descobri que em tudo na vida o sentido místico da missão tem de imperar. Porém, sou um profissional da economia, dos números e das organizações humanas…Pragmático inveterado, mas confesso que diante de tamanha ciência no saber estar de um povo, rendo-me aos seus conselhos e guardo no meu bolso a raiz que me defende do veneno da víbora e me lembra que aqui o homem é sábio e está mais à frente.

Bissau, 05 de Fevereiro de 2010; 18:32 (Hora local)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5860: O 6º aniversário do nosso Blogue (7): Sempre em frente (José Eduardo Reis de Oliveira – JERO -, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675)

Vd. último poste da série de 8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5785: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (3): O PREC na Baía

4 comentários:

Torcato Mendonca disse...

José Eduardo
Para mim é bom ler o que este jovem escreve. Subjectivo como agora, quando opino escrevo. O saber do Povo das Tabancas é enorme. Ainda tenho os meus amuletos. Louco? Pois!
Mas prefiro assim.
Ele já está enfeitiçado, já não esquece. Oxalá não seja tocado por nenhum Irã do mal...já está protegido e dele se afastará.
A Guiné precisa de jovens...para se juntarem aos Homens Grandes do mato...e irem, calmamente afastando...
Abraço do T M

Anónimo disse...

Caro Torcato
Obrigado pelo teu comentário. São particularmente tocantes e importantes as tuas palavras finais.
«A Guiné precisa de jovens...para se juntarem aos Homens Grandes do mato...e irem, calmamente afastando...»
São jovens como o Emanuel Pereira que podem construir novas "pontes"...
Um abraço,
JERO

Hélder Valério disse...

Caro JERO
De facto, são estas revelações de sentimentos que elementos das novas gerações vão emitindo, que dão consistência e explicam as nossas reacções perante tudo o que se liga à Guiné.
Às vezes os nossos familiares e até aos amigos de agora não entendem porque é que temos tanta 'atracção' pela Guiné.
Já ouvi várias 'teorias', que se trata de um fenómeno de regressão, de gente que sente o tempo a fugir e quer 'voltar ao passado' ao tempo da juventude, já ouvi que é a busca da vivência de tempos de 'libertinagem', enfim, tanta coisa... mas parece-me que os jovens de hoje, que foram ou estão lá em tempos tão distintos dos nossos, acabam por, na sua maioria, revelar os mesmos sentimentos que nós.
Eu acho que a Guiné, com as suas dificuldades, nos faz crescer, faz-nos superar o que julgávamos ser os nossos limites, dá-nos outra dimensão do valor das coisas e até, em certa medida e dependendo das circunstâncias, pode ajudar a formar outras formas de estar.
Na perspectiva do que disse acima e enquadrado pelo mesmo 'espírito' deste teu trabalho, já enviei um trabalho para eventual publicação que pode dar corpo a esta vertente de se perceber a Guiné hoje, pelos olhos dos jovens de hoje.
Um abraço
Hélder S.

António Graça de Abreu disse...

Um texto bonito, sentido, escrito com amor e fascínio pelos guineenses.
Emanuel Pereira conhecerá também outros rostos bem menos entusiasmantes entre as gentes da Guiné.
Mas fica a imagem nítida do que de bom aquele povo e país tem. Isso, o mais importante.
Abraço,
António Graça de Abreu