sábado, 6 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5940: Notas de leitura (74): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (II) (Beja Santos)


1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Temos aqui um livro simpático, carregado de pormenores, haverá certamente gente que sentirá satisfação em regressar a Farim no início dos anos 70.

Um abraço do
Mário



Além do Bojador* (II): triunfo do feitiço africano

Beja Santos

“Além do Bojador” o primeiro romance de Manuel Fialho (Edição 100 Luz – www.100luz.pt) narra as vicissitudes da história de amor de um capelão militar, um franciscano que viera de Itália, de nome Miguel, e a quase adolescente Binta ou Fátima, uma Mandinga de Farim. Assistimos à viagem de um batalhão que tem a sua sede em Farim e cujas companhias se derramam por Cuntima, Jumbembem e Nema, fora os destacamentos. Miguel Lúcio adapta-se à sua missão, percorre estes itinerários em coluna militar, celebra missas, faz uma grande amizade com o alferes do pelotão auto, visita a tabanca de Farim e aos poucos deixa-se enlear pela beleza de Binta, uma neta de um português, uma jovem de beleza espectacular, cheia de predicados.

A descrição do Norte da Guiné, no início do romance, é de que era uma região relativamente controlada. Mas a acção dos guerrilheiros irá começar a intensificar-se, a missão do batalhão é refeita e as unidades envolvidas em ocupações e múltiplas operações. O PAIGC revelava um espírito ofensivo, multiplicando as emboscadas e as minas. O comandante-chefe determinara o reordenamento das tabancas. O padre Miguel escrevia a história do batalhão e procedia ao registo dos relatos dos antepassados Mandingas (recorde-se que o subtítulo deste romance é “Na guerra colonial da Guiné, a história pré-colonial da África Ocidental”). Miguel usa um gravador para onde fala Malan, ali ficam depositadas as suas memórias dos ancestrais. Miguel descobre que é poeta, sente inspiração e passa para uma folha de papel, primeiro as suas orações, mais tarde o seu amor ardente. Aos poucos, os dois amantes exprimem a sua paixão. A vida em Farim ganha novo alento com a chegada das mulheres de dois alferes, uma delas será professora, far-se-á apoiar por Binta.

Tudo isto se passa, recorde-se, num contexto de recrudescimento das acções inimigas, começam a registar-se tensões entre Spínola e o comando, dá-se o afastamento compulsivo do comandante, a unidade em peso reage com o baixo assinado ao Spínola, tudo tivera origem num dirigente local que morrera na prisão. Quem escreve o documento a pedir o regresso do comandante é o capelão, as consequências serão altamente positivas para a unidade de Farim. A povoação vai sofrer um ataque de foguetões, será uma experiência que irá aproximar ainda mais Miguel e Binta. Miguel descobre que não tem necessidade de se penitenciar por amar Binta. O comandante regressa, tem uma longuíssima conversa com Miguel, conta-lhe detalhadamente tudo o que se passara acerca da morte de um régulo na prisão. Miguel confessa a Malan que ama a filha. O feitiço africano está consumado. Ao som do concerto para piano nº 21, de Wolfgang Amadeus Mozart, Miguel poeta: “O teu corpo é a nave que no espaço / me governa para além da morte, / nesse transpor em que me deixo à sorte / de Quem de arremessou no teu abraço. / Ah, meu amor, eu já nada mais faço / senão imaginar esse teu lindo porte / a guiar o meu desejo, que de tão forte / em êxtase anseia pelo teu regaço...”. Miguel prossegue as viagens aos aquartelamentos como Cuntima, Canjambari, Jumbembem. Continuam a ser detectadas minas anti-carro, prosseguem as flagelações ao K3. De novo Farim sofre um ataque de foguetões. Aos poucos, Miguel vai transcrevendo os feitos dos Mandingas, a história da África Ocidental ganha compreensão. No regresso da tabanca, depois de uma visita a Malan e a Binta, Miguel é barbaramente espancado na calada da noite e transportado para Bissau. É aqui que se reencontra com Spínola, Miguel dá-lhe uma lição de história na enfermaria do hospital militar.

Encurtando razões, já que Manuel Fialho escreve cerca de 500 páginas, Miguel conclui a história dos povos da África Ocidental que manda para Spínola, a guerrilha assanha-se, Miguel e Binta experimentam o amor tórrido na povoação de Binta, exactamente em casa do sogro português de Malan. Miguel lê a propaganda do PAIGC e fica a saber que os aviões Fiat e os T6 matam e ferem crianças no mato. De vez em quando morrem militares, Miguel reza por eles. Chegou o momento de tomar decisões, Miguel aconselha-se com um padre em Bissau, este, compreensivo, recomenda-lhe que prossiga este amor verdadeiro por Binta. Eles casam, Miguel confia que possa vir a ser investigador, escreveu ao pai a contar o sucedido, a unidade militar oferece uma lua-de-mel ao casal na ilha do Sal.

Vale a pena insistir que se trata de uma obra generosa, didáctica com propósitos de reconciliação, é uma escrita amena de um ex-combatente que seguramente se afeiçoou por Farim e toda essa região, que conservou memórias do funcionamento daquela quadricula e que estudou a história dos Mandingas, forjando uma amena e até plausível história de amor. Talvez não fique como livro de referência mas cumpriu a função didáctica: os mais novos poderão ficar a saber o que eram dois anos de comissão militar; os mais velhos revêem o funcionamento da vida de um batalhão que pôde ficar com as suas companhias relativamente próximas; os investigadores terão elementos para percepcionar a evolução da guerrilha, no início dos anos 70; e o diálogo inter-étnico aparece aprofundado nesta tocante história de amor. Para que conste.

“Além Bojador” ficará propriedade do blogue.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5888: Notas de leitura (71): Além do Bojador, romance de estreia de Manuel Fialho (I) (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 4 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5930: Notas de leitura (73): Gadamael, de Carmo Vicente (Beja Santos)

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