terça-feira, 9 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 2 de Março de 2010:

Estimáveis Editores
Escrevo para dois sabendo ser extensível aos restantes. O MR ainda aparece. Agora o VB anda às voltas com o livro e pouco tempo lhe resta dessa azáfama meritória.
Que seja a palavra do Amadú e a escrita do Virginio - só.
Mas estou aqui a enviar um escrito. Assim:

Há tanto tempo que não envio nada que já nem sei. Hoje apareceu o vento, chuva e frio. Ainda ontem vi andorinhas e alegrei-me. São as apressadas... Hoje fiquei aborrecido e fui teclando... depois ia continuar... e parei.

Envio este SPM e logo escrevo os outros que estão na forja...

Assim, sendo aqui vai e junto um abraço para vocês do,
Torcato


Ao Correr da Bolha - II

Há sempre escritos que não são enviados. Escrevem-se, com caneta e papel ou, como é o caso, directamente batendo teclas. Depois são guardados, enviados e, se não forem publicáveis, entram em arquivo morto. Não. Prefiro em letargia, morto ou morte é triste e chato. Esperam um destino, também é palavra que não me agrada muito – destino… é o destino, o fado… esperam, esperam só uma outra oportunidade. Há sempre uma segunda oportunidade. Refiro-me, evidentemente só aos escritos sobre a Guiné.

Li agora a correr vários postes. Gostei de muitos e ia comentar. Depois, pensando melhor, nada escrevi. Isto da escrita, mesmo as simples letras e palavras em imitação de texto, geram certa ansiedade. E se desagrado a… se lanço polémica com… ou se erro na descrição do facto e etc., etc.

Contudo, e arriscando pois é agradável arriscar, parece que contradiz a ansiedade acima descrita, mas não, reforça-a. Contudo, dizia eu, tenho aqui em papel, alguns escritos, prefiro rascunhos. Uns rascunhos então, e tentarei ir teclando, dando-lhes forma de escrita, ao correr da bolha e depois se verá o destino a dar-lhes.


# - 1 – SPM 4758

Entre os documentos que procurava, apareceu, já velhota, a capa de plástico e cartão onde guardava blocos, envelopes, selos e demais artefactos para a correspondência deste velho militar.

No canto inferior da contracapa, uma pequena bolsa plástica com um papel dentro – SPM 4758 – (Serviço Postal Militar e o número). Francamente não me lembrava do número. Procurei avidamente por um qualquer aerograma esquecido. Nada. Folhas para escrita, envelopes para correio aéreo com cores de outro País, selos e papéis velhos.
Afaguei lentamente a velha capa e recordei, tantos anos passados, as cartas que ela guardou, recebidas ou escritas à espera de envio. Se tu comigo falasses o que me dirias, velha capa?

Só recordei esses velhos tempos, essas terras por onde andamos e a Guiné evidentemente, as pessoas para quem mais escrevia e que me escreviam. Recebia mais do que enviava. Que tinha eu para dizer? Pouco. Admirava-me muito ao ver certos camaradas a escreverem durante muito tempo. Questionava-me: - que dirão eles?

Ou então o alvoroço, o desassossego provocado pela vinda dos sacos com correio. Tudo parava, esperava e desesperava. Feita a triagem aí estava a distribuição. Depois o silêncio, um silêncio de morte a prolongar-se por muito tempo.
Geralmente eu, se tinha correio, esperava, observava e não abria logo. Havia um Furriel que, depois de ler a correspondência dele olhava para a minha e dizia-me:

- Já viu o seu correio? Já vi respondia-lhe. Geralmente resmungava entre dentes e saía em protesto.

Ainda hoje penso, não sei se tenho esse direito, que o correio, a correspondência era óptima para os militares mas tinha um senão. Fazia-os voar, a mim também, para milhares de quilómetros dali. O pior é que a maioria ficava demasiado tempo por lá. Se houvesse uma “operação” no dia seguinte ou no outro, alguns ainda por lá andavam.

Hoje afagando a capa da correspondência, bato-lhe levemente e pergunto-lhe: - Diz lá tu, velha capa que tanto viste, tenho razão?
Nada me diz. Se falasse talvez dissesse: eras um desumanizado e com pensamento de merdas.

Não, talvez não. Mesmo agora, aqui e agora, não sei. O que sei, isso sim, é que a guerra – a suprema bestialidade – não se compadece com desatenções e descuidos. Só assim se sobrevive principalmente em grupo.

Que escreveriam os escribas dos abrigos?
Pensavam certamente de forma diversa da minha.
Dou-lhes razão. Agora claro, já nada recebo ou escrevo do SPM 4758!
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Nota de CV:

(*) Vd. poste primeiro poste da série de 10 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1353: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (1): O bababaga e o papa-figos

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