quinta-feira, 18 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6017: Notas de leitura (80): Abalada do Pidjiguiti, de Manuel Viana (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Este livro de Manuel Viana (não consegui encontrar dados sobre o autor) é uma completa surpresa.
É uma Guiné fantástica, há lá indícios que coisas que vivemos mas a fantasia e a cavalgada das imagens de um autor muito culto acabam por nos desorientar.
Paciência. É mais um livro sobre a Guiné, não sei se vai deixar saudades.

Um abraço do
Mário


De Bissau para Dakar, de Marselha para Paris, daqui para Lisboa

Beja Santos

“Abalada do Pidjiguiti”, de Manuel Viana (Editorial Escritor, 2001) é um livro de difícil classificação. Aliás, o autor hesita se se trata de novela ou romance ou mesmo de simbiose de géneros. É uma prosa onde abunda a linguagem vernacular, a variedade vocabular, como se o autor se sentisse seguro na floresta de termos, à moda de Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro. Não é por acaso que aqui os invoco. Se é facto que a estrutura narrativa lembra a de uma obra modernista, o barroco das imagens, o rebuscado dos sons, os adágios e os anexins sucedem-se em tropel. Dois jovens amam-se em Bissau, são potenciais candidatos a uma história de Romeu e Julieta, até as famílias estão divididas. Alcino amava Maria. Talvez já desde o princípio, quando ainda era criança. E Maria o vice-versa. Reviam-se na natureza que os envolvia a ambos. A família de Alcino parte para a Guiné, aqui já chegou a guerra, ele e a família vivem num cubículo acanhado frente ao cais do Pidjiguiti. Para o autor, Alcino vive num mundo genesíaco: olores apimentados, trovoadas convulsivas, um rio cheio de tubarões, umas descargas de canhões não muito longe. O pai, um cantineiro, rebaixando a mãe e esmiuçando-lhe os erros do caderno.

Decide fugir, lança-se sozinho pelo mato, corre os mais desvairados perigos, é a imagem da sua Maria que o conduz como estrela ao longe. É assim que chega perto de Bissorã, corre os riscos do macaréu, conhece uma nativa que mais tarde fugirá com ele a caminho do Senegal: passaram rios e ribeiras, saltaram moitas e cômoros; fugiram de cobras verdes e beberam água de coco, comeram mangos e figos de acajueiro. As imagens, para que conste, são lindas, poéticas e exóticas: “Amestraram iguanas e guaribas urradores. Lobos maus da floresta e papagaios palradores de bico em pinça recurva próprio para vazar olhos. Abutres esgargalados de pescoço depenado saltavam de tronco em tronco a rezar-lhes pela pele grasnando lugubremente. Viram gafanhotos verdes devorarem os parceiros a partir do abdómen após cópulas prolongadas com um único fim à vista: perpetuar a espécie... Passaram no meio da mata por um hospital de campanha desmantelado pela força da barbari de que este mundo é feito. Viram passar guerrilheiros nos trilhos do mato grosso, e as tropas regulares nos trilhos de quatro rodas... Durante várias semanas caminharam para norte, umas vezes a direito e outras aos ziguezagues. Evitavam os contactos com a população nativa, e esperavam pela noite para se proverem de víveres ao nível do patamar da pura sobrevivência”. E assim chegaram a Dakar, Alcino e Iolanda.

Ambientam-se, encontraram trabalho, ambos estudam. Introduzindo uma nota erótica, Alcino tem um “caso” com a patroa, a criada de nome Melissa amava-o talvez mesmo sem saber. Os parágrafos são espessos, já se percebeu que estamos num mundo de aventuras, pressente-se que Alcino vai dar a volta ao mundo, ou quase. Mete-se num barco “graneleiro” no porto de Dakar, são dias e dias no inferno do porão, lá dentro também vai Iolanda, não se percebe bem como, chegam a Marselha, ele estuda, ela dedica-se à profissão mais antiga do mundo.

Para que não haja equívocos de que estamos na pura fantasia, Maria aparece em Marselha, mais tarde os pais sabem da existência de Alcino, chovem as ameaças, ele tem que fugir para Paris, no fundo é um indocumentado, um adolescente que tem próximo os deveres militares. Em Paris, Alcino estuda afincadamente. Iolanda, grávida de Alcino, fica em Marselha e agora dedica-se também ao teatro. Já estamos num ritmo de folhetim, todos os papéis se podem trocar, todas as aproximações podem acabar na mais dolorosa distância. Para se provar que a cultura portuguesa é universal, há um tunisino que estuda Francisco Lacerda, um músico açoriano que teve grande projecção internacional como maestro. O amigo de Alcino quer estudar a sua obra de compositor. Em Paris aparece Madame Dupont, aquela senhora consulesa que em Dakar teve prazeres carnais com Alcino. Melissa também veio e revela que a patroa deu à luz um filho de Alcino. Chegou a vez de Iolanda também aparecer em Paris. O grande circo está montado. Imprevistamente, chegam notícias de Lisboa, ocorreu uma revolução, consta que as crianças põem cravos nas espingardas dos soldados. Aos poucos, toda esta gente em permanente viagem chega a Portugal, aqui vão ocorrer catástrofes enquanto prossegue uma revolução muito festiva. Maria, afinal, vai casar com outro; Iolanda encontra um companheiro. Com a descolonização, os pais vêm da Guiné, mergulham na província. Alcino é professor em Lisboa, perto da Praça Paiva Couceiro. Num passeio à Fonte da Telha, Alcino é desconsiderado por Madame Dupont. Como não pode deixar de ser, todos os caminhos vão levar à tragédia, aos poucos toda a gente vai morrendo, por afogamento, durante as barreiras revolucionárias, etc.

Coisa curiosa, é um relato pícaro, imaginativo, de uma inviabilidade que não engana ninguém. É uma aventura truculenta, uma peregrinação delirante, chega-se mesmo a perguntar se a Guiné, o Pidjiguiti, aquela correria de dois adolescentes até Dakar, a sua adaptação a terras francesas, o rocambolesco, as peripécias demenciais, não encerram uma máxima moralizante: pede tudo à vida, oferece-te por inteiro, mas não te tomes a sério, em todas as circunstâncias. Em rigor, esta “Abalada do Pidjiguiti”, mesmo com recorte literário deixa-nos a sensação de uma enorme fluidez de uma escrita laboratorial, é a história de um desastre de um anti-herói que tudo fez para cumprir os seus sonhos, que ganhou mais difícil e se derrotou num torvelinho de banalidades ou de acasos.

O livro ficará como pertença do blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6009: Notas de leitura (79): sairòmeM Guerra Colonial, de Gustavo Pimenta (Beja Santos)

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