quinta-feira, 1 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6086: Ser solidário (63): Gente feliz... com lágrimas: a Cadi e a sua filha, a Maria Alice do Cantanhez (Pepito / Luís Graça)












Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 6 de Março de 2010 > O Pepito e o Domingos Fonseca, da AD - Acção para o Desenvolvimento, fez a entrega pessoal de roupinhas enviadas pelo correio (!) pela Alice de Lisboa para a Alice do Cantanhez, a filha da Cadi, nascida a 17 de Janeiro último, neta de Abdul Indjai,  antigo guerrilheiro do  PAIGC (onde foi fuzileiro), e bisneta de um antigo militar que serviu o Exército Português em Macau durante a II Guerra Mundial.

Fotos: © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Direitos reservados


1. O subtítulo deste poste (Gente feliz... com lágrimas) é roubado, com a devida vénia,  ao título homónimo de um romance (1988) do  nosso ilustre camarada  açoriano João de Melo, furriel miliciano enfermeiro em Angola, na CART 3449 (1971/74), experiência que já o tinha levado a escrever Autópsia de um mar entre ruínas (1984), seguramente um das obras de referência da já vasta literatura da guerra colonial.

Conheci a Cadi (ou melhor, conhecemos, a Alice, a Júlia, o Nuno Rubim e eu) por ocasião da nossa visita ao sul da Guiné, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). Tinha o ar de pequena gazela frágil, meiga, carente de afecto... Estava grávida. Essa história já aqui foi contada:


Cadi, de seu nome.
Amorosa.
Uma ternura.
Uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu.
Vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando vêem uma Mulher Grande, branca. (...) (*)

A Cadi caíu nas boas graças das nossas senhoras, adoráveis, amorosas e maternais: a Júlia Rubim, a Alice Carneiro, a Isabel Levy Ribeiro, esposa do Pepito... Vivia em Farim do Cantanhez. Uns meses depois, em meados de 2008, viemos a saber que ela tinha estado  às portas da morte. E que  perdera o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses (Nuninho, em homenagem ao capitão fula, o Cor Art Ref Nuno Rubim). Como eu escrevi na altura: "Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil"...

Valeu-lhe na altura a solidariedade dos novos amigos, Júlia e Nuno Rubim (dois seres humanos de eleição!), bem como do jovem Moisés Caetano Pinto, o Tino, que trabalha para a AD, a ONG do nosso amigo Pepito (**). A Júlia e o Nuno proporcionaram à Cadi os cuidados médicos de uma clínica privada, em Bissau, sem o que muito provavelmente teria morrido, juntamente com o seu neném...

Em 2010, a Alice e eu mantivemos alguns contactos telefónicos com a Cadi.   Em Dezembro de 2009, o João Graça, médico  e músico, está de férias na Guiné (com uma semana de voluntariado em Iemberém, no Centro de Saúde Materno-Infantil, local) (***). Na sua bagagem, levava roupas, um telemóvel e algum dinheiro para a Cadi. Recomendaram-lhe que  só fizesse a entrega no último dia da sua estadia em Iemberém...

Espantosa coincidência, o João vai observar em Iemberém uma jovem grávida que virá a descobrir um ou dois dias depois ser a Cadi. Na conversa possível com alguém que mal fala o português, o João ficou a ser o nome do futuro cidadão guineense:
- Si for menino, será Luís... Si for minina, será Maria Alice - esclareceu a grávida, de sete meses...
- Estranho, são os nomes dos meus pais... - lá pensou ele, para os botões da sua bata branca...

Ao fim da tarde, o João está a telefonar-nos, em plena Iemberém, a relatar o seu primeiro dia... Diz-nos que ainda não  encontrara a Cadi, ou melhor, ainda não sabia quem era nem como encontrá-la... Sugerimos-lhe que perguntasse a alguém...
- A Cadi é aquela que te vai servir o pequeno almoço todos os dias...

A Cadi estava ali mesmo, por detrás dele.. Trabalhava agora na estrutura hoteleira da AD, em Iemberém, servindo à mesa. A família vivia em Farim do Cantanhez, onde o João irá uma manhã, muito cedo, com os guias, para observar um dos grupos de daris (chimpanzés) que circulam pelo Parque Nacional do Cantanhez. Conheceu o pai (***) e também a avó da Cadi...

O João que acabara de observar  a Cadi como médico, ganhou um nova amiga...Na altura, a grávida parecia estar de boa saúde e o bebé também, embora com riscos de nascer prematuramente.  Umas semanas depois,  soubemos que a Cadi  tinha  parido uma moça (como se diz no Alentejo), a que pôs o nome Maria Alice... Data de nascimento: 17 de Janeiro de 2010. 

A madrinha portuguesa, Alice Carneiro,  aproveitou as facilidades concedidas pelos CTT portugueses e pela AD para mandar as primeiras roupinhas para a Alice do Cantanhez... Mandou duas caixas, pelo correio (tarifa:  2,98 € por caixa até 2 quilos/ endereço postal: AD - Acção para o Desenvolvimento, Caixa Postal 606, Bissau, República da Guiné-Bissau).

E a verdade é que dois dias depois (!) a encomenda chegava ao destinatário... O Pepito, simpaticamente, fez questão de nos dizer que entregava pessoalmente a encomenda à Alice do Cantanhez logo que fosse em trabalho a Iemberém...

A 6 de Março, o Pepito mandou-nos um mail, com fotos em anexo:


Luís: Estou a regressar do sul onde entreguei à Alice de Cantanhez as roupas que vocês mandaram. A Cadi delirou e agradece muito. Regressou a Farim,  toda satisfeita.  Seguem 10 fotos em 2 emails. Tenho mais noticias dos bloguistas que te irei enviar. Abraços, Pepito.

Respondi na volta do correio:

Pepito: Não imaginas a alegria da Alice de Lisboa ao saber notícias de (e ver pela primeira vez a) Alice do Cantanhez, que ela já assumiu como afilhada!... Recebemos a tua surpresa, com emoção, são estas pequenas coisas da vida que também nos dão alegria e satisfação. Da tua parte foi um gesto muito bonito, que nos tocou muito, fazeres questão de ir pessoalmente a Iemberém entregar a encomendazinha... Estou também grato ao Domingos, tenho que lhe mandar uma lembrança, um dia destes (Ele gosta de ler ?).

Olha, Pepito, a Alice de Lisboa quer que a Alice do Cantanhez aprenda a falar a e a escrever bem o português para ser uma grande mulher e uma cidadã orgulhosa da sua terra e ela poder comunicar com ela e com a mãe... Está disposta a em pagar-lhe a escolinha, em Farim ou em Iemberém. Mas até lá é preciso que a Alice se torne forte e saudável... Gostávamos de saber algo mais sobre a  Cadi (que mal fala o português, ao telefone, o João deixou-lhe um telemóvel...), o marido, a família da Cadi, em especial o pai, antigo combatente...

Descobri também há dias um antigo soldado meu, o José Carlos Suleimane Baldé, que foi meu intérprete, guia, guarda-costas, cozinheiro, confidente e amigo, e que eu ajudei a fazer a 4ª classe!!! Vive em Amedalai, a seguir ao Xime, na estrada para Bambadinca... Já lhe publiquei um poema, e ele escreve bem, tem uma letra bonita... Há uma jurista do Tribunal de Contas, a Dra. Maria Odete Cardoso, que se corresponde com ele... Se alguém da AD passar por lá, vê se sabes notícia dele...

 Um abração do Luís. Chicorações da Alice e do João e da Joana.


_____________

Notas de L.G.:

(*)  Vd. poste de 24 de Setembro de 2008 > Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné [Luís Graça]



(***) O pai da Cadi, Abdú Indjai,  nalu, é um "combatente da liberdade da pátria", guerrilheiro do PAIG, desde 23 de Janeiro de 1963. Nasceu em 1947, em Farim de Cubucaré. O seu pai, avô da Cadi, esteve ao serviço do exército português em Macau, possivelmente durante a II Guerra Mundial. Publicaremos em breve a "biografia" que nos foi enviada pelo Pepito.

3 comentários:

Anónimo disse...

Amigo LUÍS GRAÇA
Que lindo gesto e exemplo!...
São gestos com esta simplicidade de doação e amor ao próximo, que altera o curso do sorriso de uma criança e nos dá esperança, de termos um Mundo melhor.
São estas posturas modelares, perante a vida, que deviam orientar a nossa conduta de relacionamento com o semelhante.
São comportamentos, com esta grandeza de alma, que enobrecem e temperam a personalidade humana. Infelizmente nem todos nascemos com as mesmas possibilidades e potencialidades.
São fermentos como este, que impulsionam, esta conturbada sociedade, para moldes mais humanistas e equitativos.
Muita saúde e felicidade, para a bebé Alice, na companhia dos seus Pais.
Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

Amigos Luís e Alice

Cada vez Vos admiro mais.

Não há palavras que traduzam estes gestos de doação, num Mundo cada vez mais economicista e egoísta que nos vão impondo.

Que a nova Alice seja um Farol na "nossa" Guiné, que teimam em tornar num País inviável, são os meus votos.

Um abração
Jorge Picado

Hélder Valério disse...

Caros amigos

O título, embora 'desviado' de outro autor, diz tudo.
De facto, trata-se mesmo de gente feliz, com lágrimas. De quem recebe e de quem oferece.

Tem que se apostar nas novas gerações porque, está visto, e como diz o Jorge Picado, parece que há quem esteja apostado em tornar o país totalmente inviável.

Um abraço
Hélder S.