quinta-feira, 20 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6439: Ser solidário (70): Novas formas de colonialismo (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira* (ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/7), com data de 19 de Maio de 2010:

Caríssimos editores e amigos.

O texto que junto, resulta de uma leitura atenta do Relatório da AD.
Não sei se "tem pernas para andar" dentro do nosso blogue. Se não tiver paciência.
Por mim creio que o que está escrito no Relatório é um tremendo grito de repulsa, a algumas formas de caridadezinha que se tem vindo a incrementar e que segundo o Pepito, com quem tive oportunidade de conversar sobre este assunto, antes de ler o texto.
O que ele e a AD* pretendem é fazer crescer o povo da Guiné, através da formação, da utilização de meios para por as gentes a agir e não ficarem "penduradas" nos contentores que todos os anos lá aparecem com consumíveis de toda a espécie.

Abraço fraterno
José Teixeira


Novas formas de colonialismo

Por amabilidade do Carlos Vinhal, tive acesso ao Relatório da actividade desenvolvida pela AD – Acção para o Desenvolvimento, ONG, durante o ano de 2009 na Guiné-Bissau.

Li-o apaixonadamente, porque desde há alguns anos, desde que tomei conhecimento da sua existência, graças a este blogue, me apercebi que não se trata de uma ONG qualquer, mas de uma organização, com objectivos muito concretos, uma equipa de técnicos e colaboradores de alto gabarito, a começar pelo querido amigo Carlos Schwars (Pepito), com obra realizada e projectos que devem merecer a nossa atenção e melhor colaboração.

Por mim, estou procurando através da Tabanca Pequena – Grupo de Amigos da Guiné- Bissau**, dar uma pequena ajuda, fomentando a abertura de 10 fontenários em tabancas do interior da Guiné, num projecto já acordado com a AD.

O primeiro vai ser construído por administração directa da AD na tabanca de AMINDARÁ- junto a Guiledje, para o qual, com a colaboração de alguns camaradas, já há a verba (quase) para o equipamento.

Chamou-me à atenção no Relatório da AD um pequeno trecho, que transcrevo abaixo:

Nos últimos tempos, assistimos à chegada em força de projectos de tipo caritativo, sobretudo nas áreas da agricultura e da saúde, que descarregam sem nenhum critério de durabilidade, material, sementes, máquinas e postos de saúde nas zonas que supostamente (?) necessitam de apoio. Esta nova modalidade envolve não só as ong estrangeiras como organismos internacionais especializados que, com uma perna às costas, escolhem com transparência (como havia de ser, pois então!) organizações locais dispostas a serem meninos de mandado e que se prestam a distribuir, por preços de ocasião, toda essa parafernália de material, ao primeiro que apareça e sem a mínima preocupação de apoiar o surgimento de uma dinâmica de desenvolvimento, ou de consolidar uma que já exista, ou assegurar a durabilidade dessa intervenção avulsa.

Como consequência cria-se uma cultura de mendicidade em que as comunidades ficarão todos os anos à espera que os outros lhes venham resolver os problemas. É que há uma diferença abissal entre dar sementes agrícolas todos os anos aos mesmos e criar uma rede de agricultores – multiplicadores que assegurem a existência de sementes em todas as regiões do país. No passado, o DEPA provou que era possível existir na Guiné-Bissau uma política consequente neste domínio.

Mais grave ainda é quando uma organização estrangeira especializada dá gato por lebre, isto é, distribui sementes não certificadas, compradas a bana-banas de material agrícola em que a faculdade germinativa (isto para não falar da pureza específica e varietal e do seu poder germinativo) estão abaixo de 50%. Ou é incompetência, ou irresponsabilidade ou estamos perante o que se chama de “corrupção discreta” que grassa neste país.

Outro dos aspectos notáveis destes tempos modernos, é o da tentativa de descredibilização da competência dos quadros nacionais, como forma de justificar o envio de rapaziada nova, recém-cursada, sem experiência alguma de terreno, sem dominarem minimamente os conceitos teóricos e práticos do desenvolvimento e que apenas são ouvidos porque ao chegarem ao país, metem a mão no bolso, puxam pela carteira, metem-na em cima da mesa e, do alto da sua sobranceria e deslumbramento, clamam: chegou o Pai Natal!

Vamos distribuir fundos.

É uma rapaziada do tipo “inter-rail”, passeiam pelo mundo inteiro sob o chapéu do subdesenvolvimento, estão sempre de passagem, não chegam a conhecer nada e nada aprendem, convencem-se que o mundo começou com eles, que eles são o big-bang e permitem-se dar aulas técnicas a quem passou a vida a queimar pestanas e que têm a modéstia de reconhecer que o muito que ainda têm de aprender será… com aqueles que sabem.

Afinal, cada tempo tem o seu colonialismo… e o seu combate.


(Com a devida vénia. Sublinhados da minha responsabilidade)

Esta parte do relatório, pôs-me a pensar e creio que o remate final diz tudo.

Tenho sido testemunha de situações deste tipo. Não é minha intenção censurar quem as tem praticado, até porque compreendo muito bem as razões que nos levam a nós - guineenses de coração, avançarmos para esta forma de agir, como uma maneira fácil de “ajudar” quem tanto precisa.

Permito-me levantar algumas questões.

- Porque não procuramos saber através de ONGs como a AD, quais as necessidades efectivas do povo da Guiné para organizarmos campanhas direccionadas para colmatar essas necessidades?

- Porque não entregamos a ONGs como a AD os produtos que conseguimos arranjar para que estas façam a gestão dos mesmos?

- Não será que se deva informar as ONGs das dificuldades e problemas que detectamos localmente, (normalmente nos locais por onde passamos outrora) e com as ONGs procurarmos soluções de continuidade que promova o crescimento da pessoa e se combata a “caridadezinha” que tanto criticamos cá em Portugal?

José Teixeira
__________

Notas de CV:

(*) Para consultar postes relativos à ONG AD, clicar no marcador AD - Acção para o Desenvolvimento

(**) Vd. poste de 8 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6342: Ser solidário (69): Sementes e água potável para o Cantanhez - Faltam-nos 500€ para o primeiro poço, em Amindará (José Teixeira)

6 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Zé Teixeira

É curioso que tinha para mim essa idéia que, de facto, será muito mais importante e duradouro acções pensadas e objectivamente dirigidas do que 'empreitadas avulsas'.
Gostei mesmo da imagem do 'inter rail' associada a alguns tipos de 'ajudantes'.
Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Teixeira

"Como consequência cria-se uma cultura de mendicidade", foi isso que um grupo de jovens em Bissau me disseram sobre algumas ONG e o mais grave foi dizerem também que algumas delas fazem os projectos mesmo à sua medida a (deles).

Na altura só não lhes chamei ingratos, porque me pareceu que sabiam do que estavam a falarem, agora acredito mesmo que estariam, a falarem muito provavelmente do "inter rail".

No entanto não devemos generalizar, porque vi obras fantásticas mesmo com as suas dificuldades,ligadas a crianças, em Bula e Bissau.

Um Abraço

Eduardo Campos

JD disse...

Camaradas,
O Relatório da AD, que o CV fez circular, agora publicitado pelo Zé Teixeira, aponta o dedo ao continuado atraso da Guiné-Bissau e à incapacidade dos sucessivos governos (geradores de egoísmos e instabilidades) para canalizarem a ajuda internacional de forma estruturada.
Com razão, refere-se à caridadezinha, àquela que, embora de boa vontade, é incapaz de resolver problemas, mas gera mais desigualdades na comunidade.
Gera desigualdades, porque, se der cem camisas a cem rapazes de uma aldeia de mil rapazes, deixa a maioria invejosa dos beneficiários.
Por isso eu também acho que a nossa preocupação deve ser estrutural, e a falta de água potável na Guiné é uma constante.
Por isso abraço a ideia de ajudarmos a abrir fontanários. E, também por isso, talvez fosse bom sugerir uma relação de acções estruturantes naquele território, com vista à angariação de neios para a sua realização, no todo ou em parte.
É como o ditado chinês: a um pobre não lhe dês comer, ensina-o a pescar.
Na recente viagem que ali fiz, verifiquei a insuficiência e dispersão das ofertas de produtos perecíveis. A perpetuação da pobreza, com acções deste género, está garantida.
Mais grave: as sucessivas ONG cansam-se de não ver transformações sociais, apesar das ajudas. Mas, também elas, por vezes, podem não avaliar convenientemente a qualidade da ajuda.
Por isso há que identificar, pessoas ou entidades locais, capazes de ajudar na implementação de acções estruturantes.
Quiçá, se a as diferentes tabancas encetarem um processo de entre-ajuda, talvez se possam concitar meios de auxílio que se perpetuem para além de uma viajem lúdica.
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Camaradas,
No último parágrafo do comentário anterior, refiro-me às nossas Tabancas, às que gravitam à volta da Tabanca Grande.
JD

Anónimo disse...

Zé Teixeira,

Trabalhei na Guiné durante 13 anos em várias empresas portuguesas bem como "cooperante" em projectos internacionais, para "reabilitar " a Guiné.

Garanto-te que o relatório da AD, levanta um bocadinho muito pequenino do que de negativo é a ajuda internacional.

E a Guiné pode ser um exemplo para examinar o que se passou noutros paises africanos.

É tudo mau de mais, ao ponto de muitos africanos terem localizado e denunciado esse mal, mas, não conseguem antídoto para esse mal, tão insidioso se apresenta.

Antº Rosinha

Zé Teixeira disse...

Eu não tenho dúvidas quanto às intenções das pessoas que se dedicam de alma e coração a projectos de angariação de produtos, (roupas, material escolar, material hospital,sementes, dinheiro, etc.) Não tenho dúvidas e admiro a sua acção. Creio, no entanto, que os objectivos que se pretendem atingir, ficam muitas vezes pelo caminho, dado que não são estas as pessoas que conhecem bem a realidade local que pretender beneficiar nem tão pouco a idoneidade dos voluntários locais que vão gerir a distribuição e os oportunistas habituais surgem de todos os lados.
Por exemplo, as roupas, salvo melhor opinião deveriam ser vendidas a preços simbólicos e os proveitos da venda aproveitados para alimentar projectos que envolvam investimento, na agricultura, saneamento, escolas, etc.
Mas tudo. Tudo mesmo gerido por ONGs SÉRIAS que estão no terreno, conhecem a realidade e as necessidades locais.

O Zé Manel tem razão, quando apela para a sintonização das ONGs. A Tabanca Pequena já o está fazendo na sua ligação com a AD, com a 100Fronteiras e outras, mas ainda há muito caminho a percorrer.