terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6419: Notas de leitura (107): Os Resistentes de Nhala, de Manel Mesquita (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2010:

Queridos amigos,
Conhecer o testemunho do Manel Mesquita vale todos os pequenos enfados eventualmente sofridos.
Que agradável surpresa! É indispensável que uma editora o estimule a reformular este seu espelho de alma, não conheço melhor cântico de soldado.

Um abraço do
Mário


O admirável soldado Manel Mesquita

por Beja Santos

É uma edição de autor, dá pelo título “Os Resistentes de Nhala, 1969 – 1971”. É um documento impressionante pela bondade e solicitude. O ofício de escrever empurra-nos para uma composição sempre comprometida entre a cultura, valores como o pudor, o voo imaginativo e o charme discreto pelo dever cumprido. Quem escreve sobre a guerra colonial são fundamentalmente oficiais e alguns sargentos. Não é um problema de classe, tudo passa pelas regras da comunicação, há bloqueios que muitos não se sentem afoitos a transpor. Começamos a ler o livrinho, apercebemo-nos que é alguém que tem um diário de campanha para nos comunicar. Ficamos logo a saber que o Manel Mesquita fez parte da companhia CCaç 2614, detentora da divisa “Poucos Quanto Fortes”. É um homem que se comove com o seu amor a Nhala, pelas amizades feitas, pela solidariedade construída. É um homem que constantemente procura rezar, para aliviar a sua solidão ou dissipar os seus sofrimentos.
Acima de tudo, de tudo quanto já li sobre o teatro de operações da Guiné, ninguém como ele anuncia o encantamento dos discursos, das falas do quotidiano, a métrica dos sentimentos. Li e reli, e empurrado pela emoção, telefonei para os contactos que ele estampa no seu livrinho de 300 exemplares: 22 762 07 36 / 96 35 25 912. Encontrei-o a caminho de Fátima, já ia perto de Pombal. Rendi-lhe homenagem e admiração, pedi-lhe encarecidamente que tivesse em conta a magnitude do seu testemunho: falei-lhe em certas imprecisões, muitos erros ortográficos, eventos que mereciam desenvolvimento, aliciei-o para uma edição comercial, este documento é de uma humanidade tal que não pode circunscrever-se às mãos de uns tantos. Disse que vai pensar, ofereceu-se para ser mediador meu nas suas orações. Aí comovi-me até às lágrimas. Adiante, vamos ao tutano da questão.

Na Rocha do Conde de Óbidos, o Manel sobe para o Uige e lembra-se do que lhe disse a irmã mais velha: “Entra com o pé direito”. Entrou e perguntou ao marinheiro para onde devia seguir. Resposta pronta: “Desenrasca-te, a tropa ainda não te ensinou a desenrascar?”. Indigna-se com o porão do navio, aquelas zonas frias, húmidas, sem luz natural, uma lâmpada envergonhada e triste. Há quem fume apressadamente, as garrafas de vinho andam de mão em mão. O Manel começa a conversar com o Zé Lourenço, falam da família, de gente desaparecida, do trabalho na vida civil. A tensão, a expectativa, as incógnitas da guerra, atravessam todas as conversas. E assim se chega a Bissau, dias depois embarcam numa LDG para Buba. O Manel regista: “Passámos o resto da noite a bordo. O orvalho molhava-nos as fardas e todos os nossos haveres. A noite parecia gelada. Das margens vinham árvores e arbustos de uma vegetação muito densa e fechada, nada deixando ver para além. Algumas dessas árvores vergavam-se até à água, parecia que nos queriam homenagear com cortesias. Águas pareciam de prata, brilhavam com o luar, bem cedo se começou a notar que o sol espreitava com os seus bonitos rigores coloridos por entre algumas árvores. Há um brilho cristalino ao encontro do sol com o orvalho e resíduos de luar. Parece pintura de artista. A água do rio, essa, estava ali à altura do nosso braço, ia ficando para trás. A natureza é bela! É pena que nem sempre o espírito nos dá a tranquilidade necessária para a deleitarmos como merece. É bonito ver o nascer do sol durante esta viagem neste rio”. E assim chegam ao Buba, onde cai chuva com muita intensidade. Há pelotões que ficarão em Buba, outros irão para Nhala, outra tropa seguirá para a Aldeia Formosa.

Começa a viagem. O Manel deslumbra-se com aquelas árvores talvez centenárias, observa que há locais onde o sol nunca secará as águas que escorrem junto das estradas. Há um sinistro na viagem, uma arma que se disparou imprevistamente, o ferido grita pela mulher e pela filha, quem cometeu o imprevisto ameaça suicidar-se, contristados chegam a Nhala. Novo registo: “Há um soldado sentinela num posto de vigia. Tem as roupas velhas. Os olhos e a arma voltados para nós. As palhotas estão velhas e desalinhadas. A palha que serve de cobertura vem quase até ao chão foi feita sem ordem. À frente há uma tenda de tecido muito velho, será provavelmente para as tropas”. Começa a adaptação. Para tomar banho vão armados, é uma poça com dois metros de diâmetro e dois palmos de profundidade, tinha pedras de lavadouro, estavam lá algumas africanas a lavar a roupa. Invadido pelo pudor, o Manel sente que não pode despir-se naquelas circunstâncias, seria desrespeito pelos outros. Mas o bom senso imperou, despiu-se, fez a sua higiene, no regresso é informado que às seis da tarde irá para o posto de vigia. Sente-se revoltado com a comida que lhe dão ao jantar, em grupo comem o resto de um naco de presunto.

O Manel relembra tudo, como veio lá do Norte até RI 16 em Évora, nunca esqueceu a cidade quando regressaram das marchas finais e os saudaram, vinham cansados e sujos, o povo saúda-os. Em Évora recebeu 500 escudos em dinheiro e guia de marcha, nunca o número 120156/69 fora tantas vezes pronunciado e escrito.

Tinham um pouco mais de uma semana de comissão quando descobrem, dentro da tenda, a primeira hostilidade da natureza: estavam a ser atacados por formigas, houve que regar toda a zona com gasóleo. Aquele primeiro Natal foi muito duro de passar. Depois chegou o alferes Giesteira, vinha tapar uma falta desde o embarque. E começam os patrulhamentos na estrada nova de Uane. Houve logo contacto. O que resta da estrada é espectral: esqueletos das máquinas queimadas ou enferrujadas, até niveladoras e camionetas. Agora o capim cresce por todos os lados.

O Manel é católico praticante, esteve no seminário, é contra a violência, há mesmo que insinue que ele é comunista. Foi castigado por ter dito que não aceitava pegar numa G 3 para matar pretos, chegou mesmo a ser interrogado por vários oficiais, proibiram-lhe que frequentasse a escola de cabos. O Manel explica aos seus camaradas que vem ali procurar ser útil às populações, não o move qualquer hostilidade a quem quer ser independente. É tocante o modo como ele nos conta o seu dia-a-dia, desde a manutenção e faxina ao aquartelamento, o apoio à construção de moranças, os patrulhamentos. Na sua casa, o Manel construiu uma lápide onde está escrito: “Qui venit in nomine Dei focare placet bene (Quem vem em nome de Deus será bem aceite)”. No carreiro de Uane, os pelotões da CCaç 2614 continuam a ser emboscados, por vezes consegue-se reagir energicamente, outras vezes o factor surpresa joga a favor das tropas do PAIGC. Em todo o sofrimento, o Manel procura a aceitação: “Tenho que reconstruir-me e tudo recomeçar. Tentaremos que recomece melhor e de maneira mais perfeita. Tentarei distinguir a amargura da vida diária. Nhala tem que continuar a evoluir. Nós queremos melhorar as condições de permanência e habitualidade em Nhala”.

Este testemunho deixa-me emudecido, o Manel é um coração pacífico, nunca mais esquecerá Nhala. E o que ele vai registar de tipos humanos, camaradas que encontrou, gente inesquecível, é surpreendente.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6409: Notas de leitura (106): Bissau Em Chamas, de Alexandre Reis Rodrigues e Américo Silva Santos (Mário Beja Santos)

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