quarta-feira, 26 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6473: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (31): Diário da ida à Guiné - 12 e 13/03/2010 - Dias nove e dez

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 23 de Maio de 2010:

Caro Carlos:
Aí vai mais um relato de dois dias da minha viagem à Guiné-Bissau. Estão a chegar ao fim, mas ainda tenho coisas interessantes a contar, sobretudo da minha segunda ida a Bafata.

Um abraço.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATA - 31

Diário da ida à Guiné – Dias nove e dez (12/13-03-2010)

Dia Nove:


Eram nove e meia da manhã e o Allen ainda não tinha aparecido; nas últimas noites tinha dormido mal e devia estar a recuperar. Já tinha tomado o pequeno almoço com “todos os matadores” e aproveitei para por os apontamentos em ordem e pensar como havia de ir novamente a Bafata e desta vez também a Madina Xaquili.

Já com o Chico presente, pára uma viatura detrás do gembrém e de imediato se ouvem meia dúzia de c… e f… Soubemos logo quem tinha chegado mesmo sem o ver. Na conversa que se seguiu acordei com o visitante o aluguer de um jeep para tornar a Bafata. As saudades já eram muitas, sobretudo da Kadidja. Como ela me tinha dito que o seu marido se chamava Samba, só faltava que fosse o mesmo Samba, porteiro do cinema de Bafata, que há quarenta anos foi o africano com quem mais convivi. Em minha casa, lá em Bafata, tinha sempre umas “fantas” pois ele era muçulmano. Chegou a dizer-me que tinha uma namorada mas nunca ma chegou a apresentar. Oxalá fosse a Kadidja.

Como há dois dias o Chico e eu estávamos sozinhos, ele como chefe de tabanca e eu mais como cozinheiro e feiticeiro, estávamos a levar uma vida de verdadeiros irãs. Almoçámos o resto da lebre, depois de termos aperitivado variadíssimos acepipes locais e outros “gourmet”. Só depois de almoço é que abriu o sol. Os irãs estavam mesmo connosco.

A seguir à sesta, que com aquelas temperaturas, era obrigatória, fui sozinho embrenhar-me na mata, para os lados que já conhecia. Assisti a cenas da vida selvagem (ao nível da Guiné-Bissau, entenda-se) como nunca tinha vivido nos dois anos em que lá estive na guerra. Esquilos a dois metros de mim subindo às árvores, sons dos mais variados pássaros. Tornei a passar pelo charco, no meio duma clareira onde já tinha estado, e aí pude ver grandes aves, brancas, azuis, as tais raiadas de branco e preto que ao voar pareciam prateadas, rolas pequenas às dezenas e outros pequenos pássaros de todas as cores. Vi pela primeira vez ao perto ninhos de pássaros tecelões.

Ninho de pássaro tecelão (já abandonado) que agora está pendurado em minha casa.

No regresso do passeio detectei um trilho, bem marcado, de um qualquer animal. No dia seguinte iria colocar lá uma armadilha com fio que tinha levado, já a pensar nessa possibilidade. Podia ser que arranjasse o nosso almoço para o dia a seguir, embora logo tenha mudado de ideias. Depois de ver a penúria alimentar dos “empregados” do empreendimento e de ter assistido à preparação, por eles, de um esquilo para uma das suas refeições, logo me comprometi a que, se viesse a apanhar algum bicho, seria para eles.

Ao jantar fui limpando o prato com pedaços de pão que fui dando aos três cães residentes: A Maria, com uma ninhada de cachorrinhos lindos mas todos iguais ao pai (ela era castanha e os cachorros cinzentos) e mais dois cachorros quase adultos, o Luís e a Luísa.

A Maria com a ninhada e o Luís.

Como o Chico andava a dormir mal, vá lá saber-se porquê!!!, foi deitar-se mais cedo. Fiquei a dar uma olhada nas cerca de 700 páginas de um dicionário de Crioulo-Português, tese de doutoramento do padre Luigi Scantamburlo (italiano), nem guineense ou português, como não podia deixar de ser…

Como fiquei eu de chefe de tabanca, coube-me dar a ordem para desligarem o gerador, quando tivesse passado um quarto de hora de me ter ido deitar. O silêncio passava a ser total o que era muito agradável.


Dia Dez:

O Inverno ainda não tinha acabado mas à medida que os dias iam passando o calor ia aumentando. Nas horas de mais calor a temperatura rondava os 40º à sombra.

Tomado o pequeno almoço, e por ser Sábado, partimos para a feira semanal de Bula. É como o mercado de rua habitual mas com muito mais gente. Compradores e vendedores são vários milhares de pessoas. O Chico e eu éramos os únicos brancos. É conhecida a cor das vestes, principalmente das mulheres africanas e, como em dia de feira ainda requintam mais a maneira de vestir, a situação era indescritível. Só estando lá… ou vendo as filmagens que fiz.

Tenho pena que as fotos não tenham grande qualidade, mas a maior parte delas são fotogramas de filme.

Aspecto geral da feira de Bula.

A feira de Bula de outros ângulos.

Quanto aos produtos expostos para venda, igualmente indescritível. Achei muito interessante uma banca para carregamento de telemóveis pois, como é sabido, não há energia eléctrica pública em toda a Guiné-Bissau.

A banca para carregamento de telemóveis e outra com toda a espécie de lanternas.

Como no dia seguinte tínhamos convidados para almoçar, resolvemos obsequiá-los com um chabéu de cabrito. Comprámos o coconote fresco para ser pilado na hora, e demais ingredientes. Como tivemos que ir a Bissau comprar gelo (para reforçar as arcas frigoríficas pois o gerador só funcionava à noite), pelo caminho e junto à ponte sobre o Rio Mansôa, comprámos dois baldes de ostras (três euros) para aperitivo no dia seguinte com os convidados.

Mancarra e ao fundo o coconote para fazer o chabéu. O vinho não faltava.

Sandes e bolos de arroz.

Como não nos arranjaram logo o gelo em Bissau tivemos que almoçar lá, desta vez uma óptima caldeirada de cabrito na “Jordani”. Aproveitei para falar com o dono, o Sr. Carlos Lobo, pertencente à “Ajuda Amiga”, sobre todas as indicações que tinha recebido em Portugal do presidente da A.A. Carlos Fortunato, nomeadamente sobre a próxima chegada de um contentor com medicamentos, livros, roupas, etc. Também aí tive duas ofertas de aluguer de um jeep por metade do preço (agora 50 euros por dia) do que me tinha sido proposto no dia anterior.

Antes de anoitecer ainda fui dar uma volta pelo mato. Fui montar a armadilha no trilho que tinha descoberto de animal desconhecido. Podia ser que fosse um manguço (toirão), esquilo ou qualquer outro de semelhante porte. Note-se que o esquilo que os empregados comeram tinha um quilo de carne. E não é demais lembrar, aliás como é do conhecimento geral, que os macacos praticamente desapareceram por terem sido caçados para comer. Há 40 anos, em Bafata, havia-os até nas árvores da cidade, mas agora nem vê-los!

Antes de ir à cama ainda vimos na TV o jogo Académica-Porto (1-1). Também, e porque tive acesso a um bom mapa da Guiné-Bissau, estive a procurar a tabanca de Tabató, como sendo, segundo o Luís Graça, a tabanca onde vivia o grande músico guineense Djabaté. Não a encontrei, no dia seguinte procuraria melhor, pois era minha intenção ir lá.

Até amanhã camaradas
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6451: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (30): Diário da ida à Guiné - 10 e 11/03/2010 - Dias sete e oito

4 comentários:

JD disse...

Meu Caro fernando,
És um africanista! tiveste o azar, ou a sorte, de ficar numacampamento sem mordomias, de teres tido necessidade de uma aculturação.
Já agora, podias aqui passar a receita do chabéu, que muita gente ficaria agradecida.
Só ponho reservas por teres trazido o ninho, isto, porque hà muitas aves que aproveitam os ninhos de umas épocas para as outras, e podem ali chegar mesmo no momento.
Um abraço
JD

JD disse...

Fernando, enquanto nome próprio, escreve-se com Maíuscula. Faz o favor de desculpar.
JD

Anónimo disse...

Kimi Djabate: Músico Tradicional da Guiné-Bissau

Responde pelo nome de Kimi Djabate e é musico tradicional originário da Guiné Bissau. Djabate viu nos últimos dias, o seu segundo trabalho discográfico "Karam" penetrar o mercado discográfico americano.

Kimi Djabate é, por sinal, o primeiro artista do World Music a ser lançado pela editora norte americana Cumbancha e é o convidado desta edição do Magazine de Arte e Entretenimento

http://www1.voanews.com/portuguese/news/a-38-2009-07-31-voa1-92249024.html

Sera esse o musico ?

Nelson Herbert
USA

Fernando Gouveia disse...

Caro Nelson:
Penso que será esse o músico, mas quem poderá confirmar isso será o nosso camarada Luis Graça.
Um abraço.
Fernando Gouveia