domingo, 13 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6586: Os nossos camaradas guineenses (26): O regresso do inesquecível Mamadu Camará (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Junho de 2010:

Queridos amigos,
É assim que funciona a roda da fortuna.
Vindo da Irlanda, Mamadu Camará encontrou Queta Baldé no Largo de S. Domingos e soube que ele era uma das pessoas a quem eu dedicara os meus livros sobre a Guiné.
Apareceu-me vestido como chefe de Estado e tirámos fotografia para o blogue e para o meu livro dos amigos íntimos.
Não tenho convicções mitológicas mas tenho que confessar que o Mamadu, no meu coração, é quase mítico.
Por favor, não me peçam explicações para alguém que se considera tão devedor do Mamadu como eu.

Um abraço do
Mário




O regresso do inesquecível Mamadu Camará

Beja Santos

Atendi o telefone e o vozeirão do baixo barítono anunciou do lado de lá: “É o Mamadu. Quero ler os livros que fizeste sobre a nossa guerra. Acabo de chegar de Belfast e quero ver-te. Marca visita”. Do lado de cá, estremeci de alto a baixo, andava há um ror de tempo à procura deste camarada de indiscutível importância na minha vida na Guiné, o bravo, o indómito Mamadu Camará, a quem muito provavelmente devo a vida, como escrevi em “O Tigre Vadio”. Basta ler os meus dois livros relativos à minha comissão militar para se perceber que o Mamadu é um dos meus incontornáveis heróis. Pelas dores de cabeça que me deu a pagar-lhe as dívidas que ele contraía em todo o sector L1, isto num tempo em que o endividamento excessivo não só era proscrito como socialmente deplorável; pelos desaguisados com os civis e militares do Cuor, julgava-se galã, não havia rabo de saia que lhe escapasse, competia a nosso alfero e ao régulo dirimir as excelsas confusões sentimentais armadas pelo Mamadu; pela bravura em combate e um patriotismo manifesto em diferentes ocasiões; pela sua argúcia de onça de mato, ali bem pertinho de mim, disfarçado de discreto anjo da guarda; e pela amizade que se consolidou quando apareceu em Portugal, gravemente sinistrado depois de tiros sofridos nas pernas, numa emboscada em Salancaur, em Março de 1972.

Mentiu, disse que tinha 20 anos quando só tinha 16, para ir para Bolama. Foi um dos 255 instruendos do Rosales, em 1966, foi a fornada dos Pel Caç Nat 51 a 56. Mentiste como, perguntei-lhe. A resposta veio breve: “Olha, já tinha este corpo, até me julgavam mais velho”. Com o Pel Caç Nat 52 saiu de Bolama para Bissau e daqui para o Enxalé, onde estava a companhia dos madeirenses. O Henrique Matos Francisco já contou este episódio. De 1966 para 1967, o Pel Caç Nat 52 percorre Enxalé, Porto Gole, por fim Missirá.

Mamadu Camará nasceu em 1949 em Cubungi, uma tabanca futa-fula perto do Morés. Com 12 anos foi para Braia, como caçador; aos 14 anos trabalhava em Mansoa e daqui partiu para as milícias, também em Mansoa.

Estava à minha espera, a arder de curiosidade, na tarde de 3 de Agosto de 1968, quando o Saiegh me veio buscar para eu cambar o Geba em direcção ao Cuor. Agora, na visita que ele me está a fazer, estamos a reviver situações, a recordar nomes de todos aqueles que saíram do Pel Caç Nat 52 e que foram para as companhias de comandos, Saiegh, Queta Baldé, Ussumane Baldé, Serifo Candé, Cherno Suane, o Mamadu. Ele saiu do Pel Caç Nat 52 pouco depois de eu partir, fez formação em Fá Mandinga, na 2ª Companhia de Comandos, completou essa formação em Tite. Entrou como soldado em Dezembro de 1971, é hoje 2º sargento. A conversa prossegue, ele conta-me as operações em que combateu, sobretudo um banho de sangue que terá ocorrido no Morés, em 23 de Dezembro de1971. Em Salancaur, um dos tiros atingiu-lhe o calcanhar, o pé veio a gangrenar, houve que o amputar. A guerra acabara para o Mamadu. Começava outra, tem hoje seis filhos, quatro deles a viver perto de Belfast, uma filha estuda, os três machos trabalham numa empresa de embalamento de frangos. O seu vozeirão ribomba na sala onde conversamos: “Os machos casaram com irlandesas, até já arranho inglês, os gajos bebem cerveja a toda a hora, tenho netos cor de café com leite”. Peço-lhe encarecidamente para que esta segunda guerra fique para nova conversa. E vamos ao fotógrafo, ao Luís Soares, mesmo ao lado da pastelaria Versalhes, na Avenida da República. Agora estou a comparar as fotografias. A primeira, tirada pelo nosso camarada Sousa Pires em Missirá, tínhamos chegado de Mato de Cão bem enlameados, fomos ao banho e pedi ao Pires que queria mandar fotografias de alguns amigos para Lisboa. Este é o Mamadu ao tempo em que muito provavelmente me salvou a vida. A segunda, dois sexagenários que levaram uma vida atribulada vai para 40 anos e nunca mais se esqueceram. Há amizades que perduram até à consumação do nosso tempo. Este é o caso.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6577: Notas de leitura (121): A Guerra de África, 1961-1974, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 28 de Fevereiro de 2010 > 28 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5909: Os nossos camaradas guineenses (25): José Carlos Suleimane Baldé, ex-1º Cabo, CCAÇ 12 (Contuboel, Bambadinca e Xime, 1969/74), vive em Amedalai e sonha com Portugal, Não tenhas medo, que aqui é Portugal! (Odete Cardoso / J.L. Vacas de Carvalho)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário:

Fico também feliz por teres "reencontrado" o teu e nosso camarada Mamadu Camará... Agarra essa oportunidade (rara) para o convidares, em teu, meu e nosso nome, para ingressar na Tabanca Grande..

Temos finalmente uma foto, actual, dele, temos uma foto do passado, temos as tuas histórias... Talvez tu possa recolher um pequeno depoimento dele, antes de voltar à Irlanda do Norte... Explica-lhe, sumariamente, as regras de funcionamento do nosso blogue e o espírito que presidiu à sua criação. Este blogue é também dele e dos demais camaradas do Pel Caç Nat 52.

Dá-lhe um abraço meu, em meu nome e dos camaradas da CCAÇ 12.

Luís