quarta-feira, 9 de junho de 2010

Guiné 63/74 – P6565: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (38): A guerra marcou-nos para sempre (Mário G R Pinto)


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 38ª mensagem, em 6 de Junho de 2010:


Camaradas,

Ao aproximar-se o dia 10 de Junho, com tudo o que esta data representa para nós os ex-Combatentes e capitalmente pela homenagem anual aos nossos saudosos Camaradas mortos na guerra, a nossa adrenalina e nostalgia aumentam para altos índices de intensidade.

Além de recordarmos, justamente, aqueles que pereceram, não nos podemos alhear, seja a que título for, à injustiça de que são vítimas, por esta sociedade cruel, selvática e amorfa, grande parte dos que ainda permanecem vivos e afectados pelos graves problemas que, infortunadamente, os traumatizaram tanto ao nível psíquico como fisico.

Estamos todos no último terço das nossas vidas, por isso já pouco tempo nos resta para deixarmos todos os sinais possíveis, claros e inequívocos às gerações vindouras, através os nossos melhores e mais fiéis testemunhos, por todos os meios possíveis, do nosso descontentamento e revolta.

É os devastadores efeitos psicológicos da guerra nas nossas mentes de ex-Combatentes que importa combater! Alguns conseguem-no com ajuda de familiares e amigos, mas a que custos? E os outros, aqueles que apenas contam com eles próprios, quem os ajuda?

Sob uma capa polida com mais ou menos brilho e sob os adornos com que nos ataviamos às vezes parecemos como que meretrizes de feira, e continuamos tão “nus” e tão “brutos” como os homens que nós combatemos nas matas, nas bolanhas e nos aquartelamentos da Guiné.

A GUERRA MARCOU-NOS PARA SEMPRE

Numa época de suposto progresso industrial, as populações da Guiné vivem quase primitivamente e em paupérrimas instalações. São preparados para a ausência de felicidade e de bens materiais e isso levou-os á descrença total nas diversas políticas adoptadas pelo poder instituído, e à constatação mais que evidente que o desenvolvimento contínuo não passa de uma ilusão utópica.

Se a selvajaria, a brutalidade e a barbaridade populares, próprias dos instintos nativos e tribais, com resquícios de eras ancestrais se confundiram, muitas além do nosso entendimento racional europeu, tais sentimentos deveriam ter sido esbatidos pela sociedade agora livre, em prol de um futuro melhor e mais promissor.

O domínio “bestial” continua hoje activo e em força, fazendo questão de irromper nas veias do ser étnico, dilacerado pela fome, pela miséria, pelo tratamento diferente entre sexos, pelo segregacionismo, pelo ódio, pelos combates mortíferos, etc.

Raros são os mais pacíficos que continuam como sempre frágeis face à força bruta e primitiva. O progresso quase não existe ou nada representa.

Enquanto combatentes experimentámos o terror sob diversas perspectivas: O terror de morrer, o horror dela matar, a tensão nervosa permanente, a cedência psíquica perante a adversidade, dias e dias sem dormir, as horríveis visões de camaradas e amigos estropiados, mortos e feridos, etc.

Com o decorrer do tempo vamos ficando indiferentes e insensíveis ao terror e aos horrores recorrentes das vicissitudes da guerra.

A violência provocada pelos combates poderia, nas retaliações vingativas, originar nos seus protagonistas alguma espécie de “prazer” instintivo, sádico e desumano, mas como é óbvio isso só poderia ser resultado de desgostos, revolta, angústia, dor e sofrimento.

Os aquartelamentos eram as muralhas ou bastiões de refúgio dos que combatiam, mas não só, pois eram também lugares de tensão e locais perfeitamente localizados e identificados, tornando-se alvos fáceis, pela sua estaticidade, cada vez batidos pelo fogo atacante e retaliador do PAIGC, para desespero dos seus “enjaulados” ocupantes.

A guerra é tão velha como a humanidade. Pelo que temos vindo a constatar ao longo dos séculos, até aos dias de hoje, a barbárie primitiva e inerente é algo instintivo que não desaparece do peito do ser humano, sejam eles muito ou pouco desenvolvidos intelectual ou cientificamente.

Por incrível que pareça, os instintos dos homens do século XXI, quando espicaçadas a digladiarem-se entre si, continuam tal como o teriam sido na época pré-histórica, primitivas e selváticas.

Lembro-me bem que no conflito que vivi em Mampatá, em nome da minha própria sobrevivência, só pensava em: ”Viver e matar!"

Eram os impulsos naturais interiores que, tendo começado por ser irracionais, foram ganhando forma consciente e me levavam a responder à violência de que éramos vítimas por parte do IN, com uma violência idêntica que eu desconhecia em mim.

No auto-domínio pessoal dessa violência interna, é que eu notava a superior estatura moral e categórica dos nossos militares, relacionando-os intestinamente.

Pelo que me foi dado testemunhar e acabo de vos tentar relatar, concluo que a paz é um sonho irreal e inatingível nos tempos mais próximos.

Os homens são por natureza violentos e as suas origens, quer queiramos, quer não, remontam a tempos muito primitivos, onde sempre se matou e, quase sempre, pelos motivos mais fúteis.

Por isso não nos devemos admirar com o que se passa na Guiné, é o destino dum povo com usos e costumes ancestrais, divididos por cerca de 30 etnias diferentes, que só poderá mudar com a alteração das mentalidades e esforços concertados, sérios e respeitados mutuamente, que obrigatória e necessariamente terão que partir de exemplos concretos e firmes dos seus actuais líderes.

Não haverá futuro para os guineenses enquanto não houver união e trabalho de todos para o desenvolvimento e criação de riqueza.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art da CART 2519

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6528: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (37): Um básico super operacional (Mário G R Pinto)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Na Guiné, como infelizmente em muitas outras partes do mundo, e como aconteceu num passado não muito longínquo na nossa Europa "civilizada", a paz é o intervalo entre as guerras.

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Caro Mario Pinto

Paz?

Mas...se a guerra se faz para alcançar a paz ,como poderá haver paz sem guerra ?!

Então a guerra será um intervalo da paz!

Ou será como escreve o A Graça Abreu ?

Vou desligar...mais vale !
Um abraço

Luis Faria

manuelmaia disse...

CARO MÁRIO PINTO,

O AVOLUMAR CONTÍNUO DAS DESIGUALDADES,O DESENCANTO CRESCENTE DOS POVOS FACE À SISTEMÁTICA DESONESTIDADE POLÍTICA E ATÉ INTELECTUAL, EVIDENCIADA PELOS LÍDERES,SEJAM ELES GUINÉUS,EUROPEUS OU MUNDIAIS,TEM COMO CONSEQUÊNCIA,MAIS CEDO OU MAIS TARDE,O "DESCAMBAR PARA O TORTO" QUE LEVA INEVITÁVELMENTE,DEPOIS DOS PROTESTOS MAIS OU MENOS MENOS VIOLENTOS, A UMA GUERRA CIVIL QUE PODERÁ VIR A TER CONTORNOS DE MAIS COMPLICADA AINDA, AGORA QUE ESTAMOS INSERIDOS NUMA AMÁLGANA DE POVOS A QUEM,DE FORMA POUCO ORTODOXA, E, PORQUE NÃO DIZÊ-LO,SEM QUAISQUER REFERENDOS,OS MEROS CAPATAZES - NO PAPEL DE LÍDERES - FORÇARAM A UMA VIVÊNCIA DEGRADANTE,EM NOME DE UM PROGRESSO ECONÓMICO E SOCIAL QUE SABIAM NÃO SER POSSÍVEL DE OBTER...
ESTÁMOS A UM CURTO PASSO DESSE ESTADO E MUITOS DE NÓS SERÃO OBRIGADOS A TOMAR POSIÇÕES QUANDO ESSA HORA,QUE DEMORA,APARECER FINALMENTE.
COMETER-SE-ÃO,DE NOVO, ACTOS IMPENSÁVEIS PORQUE A GUERRA NÃO SE COMPADECE DESSAS SITUAÇÕES,E DAQUI A UNS ANOS ESTARÃO OUTROS A FALAR DESTA FUTURA E ENTÃO EX-GUERRA, DESNECESSÁRIA, MAS ACONTECIDA.

ABRAÇO

MANUEL MAIA