quarta-feira, 16 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6600: Notas de leitura (123): O capitão Nemo e Eu, de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2010:

Queridos amigos,
Com esta recensão do último livro de Álvaro Guerra onde aparece a Guiné, penso que o essencial do levantamento dos anos 60 ao fim do século está efectuado.
Nos anos 60, temos Armor Pires Mota, Manuel Barão da Cunha, Amândio César e Álvaro Guerra.
Nos anos 70, temos Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e José Martins Garcia.
Nos anos 80, novelistas como o José Brás e o Armor Pires Mota.
No início dos 90, Armor Pires Mota escreve aquela que será, penso eu, a obra-prima da literatura da guerra da Guiné. Agora estou num mar encapelado, vão surgindo de vez em quando edições de autor, bom seria que os devotados companheiros do blogue me dessem algumas pistas para eu me embrenhar, com o ânimo feliz, dentro da floresta.

Um abraço do
Mário


Quem pode sondar as profundezas do abismo

Beja Santos

Álvaro Guerra inicia a sua carreira literária em 1967, escreve “Os Mastins”. “O Disfarce” (1969), “A Lebre” (1970), “Memória” (1971) e “O Capitão Nemo e Eu” (1973) são os quatro títulos seguintes, aqui o antigo combatente da Guiné, ferido em combate, escancara as suas memórias, não ilude o sofrimento, o horror da guerra, as crueldades vistas e percepcionadas. Guerra é um autor pouco classificável, não esconde uma certa filiação pelo neo-realismo, envereda gradualmente pelo construtivismo e mostra satisfação pelas regras e técnicas do chamado “nouveau roman”, que tanto deve Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet. Faltava uma apreciação de “O Capitão Nemo e Eu” (Editorial Estampa, 1973), é o propósito deste texto.

Alguns críticos que saudaram a obra na época interrogaram-se se se estava perante um romance, uma narrativa ou uma memória. Há um homem que está ferido, preso a uma cama de hospital, que entra num processo de convalescença, que divaga quase em estado de delírio, entre o sono e a vigília, nunca é dado estabelecer as fronteiras entre o que é sono e o que é sonho. Aliás a obra tem como subtítulo “crónica das horas aparentes”. E uma citação extraída das “20 Mil Léguas Submarinas” em torna tudo mais intrigante: “Portanto, à pergunta feita, há seis mil anos, pelo Eclesiastes – Quem pôde jamais sondar as profundezas do abismo? – dois homens têm agora o direito de responder. O capitão Nemo e eu”.

A obra tem um arranque poderoso: “Que perdi a memória – dizem. E logo dão nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancos e no tecto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos rectângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem a existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas – imagem última, única, fria – dureza e frio diversos dos que adivinham nas superfícies polidas do copo e do jarro sobre a mesa, ao meu lado esquerdo, onde, consoante o sol, assim o filtram no seu vidro sem que dele conservem o menor rasto, que não de mim, pois neles vou imprimir com os dedos minuciosos desenhos a lembrar outras matérias, talvez tronco cortado pelo nó, talvez...”

Temos pois um ferido que tacteia o corpo e o meio envolvente, que vigia a fisiologia e que repesca os factos acontecidos, a justificação por estar ali, sujeito a remédios e injecções. A memória faísca lembranças: “... sentado junto do cherno e dos grandes homens da tabanca, à volta da fogueira, mascando cola, rodeado por todas as estrelas e astros conhecidos e desconhecidos e por todos os outros mistérios ainda não nomeados, no planeta Terra, mais ou menos 12º de longitude norte e 17º de latitude oeste, olhando as chamas e dizendo ‘tanaala? nobadeá?’ a quem se chegava ao nosso fogo e, enquanto ouvia a litania das respostas – ‘djam tu, djam tu, djam tu’ – murmurava ‘kodé dadi’, que é uma forma de pensar que as estrelas são livres, se apenas delas o brilho existe”. E entra em cena Safi, uma mulher amada, naquela cama de hospital tal dolorosamente recordada. À semelhança de praticamente todos os seus livros os textos intercalados falam da lezíria ribatejana, da família do narrador, de Paris, de uma diversidade de personagens em trânsito, a Paris onde viveu Álvaro Guerra depois de regressar ferido da Guiné emerge entre a penumbra e fulgor das avenidas, há gente em estranhos exílios. Aos farrapos, a memória do ferido dá consistência ao discurso do capelão militar e, súbito, ganha consistência o drama de Safi:

“... nasceu quase branco, rosto inchado, mãos fechadas, cabelo ralo. Chorava pouco e logo mostrou o amarelo dos olhos. As mulheres torceram o nariz, abanaram as cabeças e murmuram «hum, hum». Mariama veio de Contabane com os seus mezinhos e rezas à margem do Corão – sem ela não havia no Forreá nem parto nem fanado de menina. Colocou a esteira junto de Safi e do recém-nascido e de lá não saiu os três dias que ele durou. Ainda se falou na data do baptizado, à maneira fula, mas ninguém acreditava que Amadu – assim se chamou – resistisse à anemia que começara a miná-lo no ventre da mãe. O médico da tropa deu esperanças e mezinho de branco, ante o cepticismo de Mariama, das outras mulheres grandes e de mim próprio.

Safi olhava-me assustada, metida debaixo dos panos de algodão. Com imenso cansaço, deitei-me a seu lado, olhando o tecto da morança, numa confusa ansiedade.

– ‘Kô dabará?’ Que procuras? – perguntou-me, depois de um silêncio.

– ‘Miró daba’. Estou à procura – respondi-lhe.

Mais tarde, disse-me, esboçando um sorriso e tentando distrair-me:

– ‘Baró okirim guertodê-didi’. Baró deu-me duas galinhas. ‘Mariama oki kam gôrô’. Mariama deu-me cola.

Remexeu entre os panos e passou-me para a mão uma noz de cola. Eu mascava pequenos pedaços amargos, pensava na casa grande, a única que tive. Apertei a mão de Safi, com força, levantei-me e vim até ao terreiro escaldante, suando e mascando cola.

No fim da tarde do segundo dia tive de partir.

– ‘Django bimbi mi araigá si Alá djaven’. Volto amanhã se Alá quiser – disse e, passando a mão pela testa de Safi, olhei o rosto mirrado da criança.

Pela primeira vez, saí para encontrar a morte, numa noite muito longa e cheia de estrelas, escondido no mato, à beira da picada, com oito camponeses da Beira Alta e um ardina de Lisboa.

Voltei de manhã cedo e encontrei o filho morto...”

É sono ou sonho? O autor não faz concessões, a narrativa acelera-se, multiplica-se, o leitor viaja à deriva. Ficamos a saber que Safi é uma mulher muito bela e que o ferido ou quem delira (não tem importância, é quem está sofrendo) não a pode esquecer na profundeza do abismo em que caiu. É bem possível que tenha regressado ferido na perna, tal como Álvaro guerra, tão ferido que volta à infância, vê aparecer no seu quarto um anjo, depois regressa ao Geba e amaldiçoa a sua sorte: “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injectou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo nem a presença da morte o pode aniquilar”. Bastava este parágrafo de Álvaro Guerra para o colocar obrigatoriamente em qualquer antologia referente à literatura da guerra da Guiné.

Talvez agora o ferido esteja a delirar, viaja no Nautilus com o capitão Nemo, é uma viagem absurda, ao lado do capitão Nemo recorda a sua pistola-metralhadora, a viagem que fez num DC-6 atravessando o Atlântico e o Sara até chegar a uma terra escaldante. Aí lhe ocorre outra imagem: “Do alto de uma palmeira sai o voo fulvo do faisão; sobre a bolanha, lentos, passam os grus emigrantes; à beira da estrada, um macaco-cão, de pé, dirige-me estranhas ameaças; em frente da morança, debaixo do cajueiro, está o cherno a ler Shakespeare em árabe; no caminho do rio, uma menina embala um osso de carneiro, um filho; cruzo-me com Mariama, à cabeça a roupa de lavar – ‘Tanaála? no pindá?’. Se não é esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir? Agora estamos mesmo no centro do delírio, viaja-se por Atlântida, surgem os cavaleiros do Apocalipse, há prisioneiros de guerra a serem espancados até à morte. Pedindo explicações sobre tão dolorosas memórias, o autor faz uma amarga constatação: “Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas. E, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao jardim zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”.

“O Capitão Nemo e Eu”, percebe-se agora, é escrita codificada, não podia ser de outra maneira em 1973. Um relato impressionante de um antigo combatente que se revelou um mestre da escrita. Nunca se saberá o que a guerra da Guiné fez para o preparar em tal mestria.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6594: Notas de leitura (122): A Guerra de África, 1961-1974, Volume II, por José Freire Antunes (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Lembro-me do Álvaro Guerra 'antes da guerra'. Era o excelente guarda-redes da equipa de hóquei em patins de uma boa equipa da UDV (União Desportiva Vilafranquense) que na época 'batia o pé' aos habituais 'grandes'.
Eu era um dos seus fãs.
Soubemos mais tarde que foi ferido com gravidade na Guiné e que já não poderia continuar a jogar.

A frase que é citada, “Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injectou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo nem a presença da morte o pode aniquilar”, é realmente quase que um hino sublinhando o que emocionalmente nos liga à Guiné e que curiosamente tem pontos de relação com o "Fado da Guiné" do J. Mexia Alves.

Conhecia outros livros de Álvaro Guerra, mas este não. Vou ver se o leio e se consigo entrar no emaranhado que o MBSantos descreve.

Abraços
Hélder S.

Anónimo disse...

Camarigos
A frase citada, "por lá chafurdei.........é precisamente o que sinto. Oh meu Deus! Como odiei aquela terra vermelha, as bolhanhas, o calor tórrido, as ordens dadas sem nexo por quem nunca se aventurou no mato, ter medo de ter medo de me acobardar à frente dos meus soldados em situações de contacto com o IN (felizmente nunca aconteceu). Mas hoje amo aquela terra, tenho uma tristeza enorme que não tenham a vida que almejavam quando
começaram a guerrilha.
Antes de fazer " a Grande Viagem" tenho de lá voltar, ver a terra vermelha , a algazarra dos djubis, as bolhanhas verdejantes, o calor humano daquelas gentes, o cheiro da terra depois das chuvas, a silhueta do poilão ao pôr do sol, os latidos dos macacos cães nas bolhanhas, enfim recordações...
Abraço Camarigo
Luís Borrega