segunda-feira, 26 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6789: Era uma vez um Unimog 411 que morreu nos Nhabijões, em Janeiro de 1971 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
O artista Manuel Botelho pegou numa fotografia relacionada com um desastre largamente referido no blogue (mina anti-carro que destruiu um Unimog 411, matando o soldado condutor Soares e feriu gravemente outros militares da CCaç 12, em Janeiro de 1971) e fez esta aguarela.

Fui economizando uns euros, como bom descendente dos árabes, judeus e fenícios, regateei o preço até ao desespero do seu criador, sou agora o feliz proprietário deste documento que me põe constantemente a pensar como é que por vezes a brutalidade do real se transmuta numa mensagem estética de inquietação e aviso solene aos inconformados com o viver em paz.

Se alguém precisar de mostrar esta obra-prima numa exposição sobre a nossa guerra, é só pedir.

Não sei se existe documento mais eloquente sobre a fúria destruidora, dos homens e das coisas.

Como conheci o soldado Soares e o estimei profundamente, esta aguarela é o testemunho de tudo aquilo que não deve voltar a acontecer, em nome da concórdia e do bem supremo da humanidade.

Um abraço do
Mário


Unimog 411 da CCAÇ 12 destruído por mina AC. Pintura de autoria de Manuel Botelho
© Foto de Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > CCS/BART 2917 (1970/72) > Cemitério de viaturas militares > Em primeiro plano, pode ver-se o estado em que ficou o burrinho, o Unimog 411, depois de accionar uma mina anticarro à saída do reordenamento de Nhabijões, em 13 de Janeiro de 1971, por volta das 11h25. Duas horas depois, era accionada outra mina A/C por uma GMC (parecida com a que está visível ao fundo, na imagem, mas com um maior grau de destruição).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


2. Uma viatura moribunda, um artista investigador que se apaixonou pelo nosso blogue

por Beja Santos

Manuel Botelho é um nome cimeiro das artes plásticas do nosso tempo. Ele já escreveu sobre as motivações que o levaram, em período recente, a interrogar a guerra da Guiné, espiolhando o nosso blogue. Dei-me conta do facto quando o crítico João Pinharanda me convidou para um colóquio à volta de uma exposição que o Manuel Botelho apresentou no Museu da EDP. Já nessa altura ele adquiria compulsivamente tudo o que tivesse a ver com a guerra colonial e emergiu no nosso blogue, catando fotografias de todo o tipo. Há que reconhecer que Manuel Botelho é um dos raríssimos artistas plásticos que se entusiasmou em comunicar artisticamente as manifestações da guerra. Recomendo vivamente que se consulte o site (www.manuelbotelho.com) do artista onde ele confessa o íntimo desta sua curiosidade. Ele escreve:

“Nos últimos anos vi crescer o meu desejo de identificação com os homens da minha geração que há muito tempo embarcaram para Angola, Guiné e Moçambique, escondidos atrás de um camuflado e uma G3. Sei que não fui um deles. Tive a fortuna de estar no último ano do curso de arquitectura quando o 25 de Abril pôs termo ao pesadelo que me ensombrou a adolescência, e já não experimentei a guerra ao vivo e em directo. Mas vivi-a intensamente, numa antecipação obsessiva que durou toda juventude.

Desde então muito tempo passou, e a minha perspectiva da vida mudou também. A guerra na África portuguesa deixou de me interessar enquanto fenómeno político e passei a prestar uma outra atenção aos que a fizeram. Muitos (a esmagadora maioria), ainda estão vivos; têm sensivelmente a minha idade; estão carecas e cansados como eu. Alguns serão um pouco mais velhos, mas pertencemos todos a um mesmo tempo, a uma mesma condição. E eis-me a viver um estranho paradoxo: eu, que andei pelas ruas a berrar “nem mais um soldado para as colónias”, comecei a ter sentimentos de culpa por não ter partilhado esse tempo de abnegação e sacrifício. E a minha pintura começou a falar das memórias dessa guerra, como em “Escombros de Wiryiamu”, o massacre no norte de Moçambique que escandalizou o mundo e que evoquei através de um soldado (eu, já velho), sob a ameaça de insectos gigantescos e segurando desoladamente uma G3. Foi essa G3 que quis fotografar de seguida.

Em 2006, depois da exposição em que apresentei esses trabalhos, senti que alguma coisa devia mudar. Sentia-me enclausurado. A pintura e desenho eram incapazes de traduzir com eficácia o universo temático que tinha em mente… porque, como costumo dizer aos meus alunos, há coisas que são “pintáveis”; outras não.

Comprei uma máquina fotográfica nova e, quando em Setembro fui ao Museu Militar, tudo o que pretendia era fotografar uma G3 e uma Kalashnikov, as armas emblemáticas da guerra colonial. Talvez esse simples acto me apontasse um caminho novo. Talvez um registo impessoal desses vestígios me indicasse para onde seguir. Talvez o rigor metálico de uma G3 ditasse o futuro próximo da minha obra. E foi uma G3 que fotografei; e uma Kalashnikov; e uma FN; e uma Mauser. Às tantas tinha o chão coberto de armas. E aqueles 3 ou 4 dias iniciais começaram a multiplicar-se. Os dias transformaram-se em semanas, as semanas em meses. Em determinado momento já não sabia o que havia de fazer e desatei a inventar outras coisas, dando sequência a desenhos e pinturas anteriores e experimentado territórios completamente novos. E começaram as incursões à feira da Ladra. Comprei equipamento militar da época, velhos camuflados, cinturões, cantis, botas e quicos, e pouco depois estava a invadir o Museu com objectos de toda a ordem, grandes e pequenos: placas de madeira, tapetes de trapos, sardinhas enlatadas, plantas secas e terra, muita terra, cinzenta, vermelha… que fazia agora dialogar com granadas, facas de mato, pistolas, espingardas, minas anti-carro…

Como estavam previstas 3 exposições simultâneas nos primeiros meses de 2008, acabei por isolar 3 núcleos mais ou menos autónomos, deixando de fora muitas dezenas de imagens potenciais. E assim se arrumaram as exposições no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, na galeria Lisboa 20 e na Fundação EDP.

Embora ligadas por um fio condutor comum, foram 3 mostras muito diferentes. O “inventário” de Elvas apresentou quase exclusivamente fotografias de armas utilizadas ou apreendidas pelas forças armadas portuguesas, em registos mais ou menos neutros (isto embora uma das minhas grandes preocupações tenha sido descobrir a luz certa para cada caso, o que tornou essas imagens numa espécie de retratos… se é que isso se pode dizer de objectos inertes cuja função é matar). As outras duas exposições seriam mais alegóricas, evocando a guerra de uma forma quase sempre indirecta. Se na Lisboa 20 a “emboscada” ainda incluía algumas cenas de “acção” (?), outras imagens eram sobretudo rituais, com um velho combatente em dialogo consigo próprio ou à beira da loucura e do suicídio. E na “ração de combate”, exposta na EDP, foi a retaguarda que serviu de pano de fundo, e o tempo sem fim das unidades de quadrícula, esses aquartelamentos que desenharam nos mapas e gabinetes (que não necessariamente na realidade vivida) o domínio português desses territórios, ameaçados pelo desejo de autodeterminação.

Em Setembro de 2008 estava de volta ao trabalho, não já no Museu Militar mas sim num espaço improvisado no quintal de minha casa. Sem um estúdio fotográfico em condições, improvisei uma tenda no terraço com paus e panos velhos. E porque agora tinha a possibilidade de trabalhar com outros actores para além de mim próprio (coisa inviável no Museu), pude convocar para as imagens uma figura que há muito me fascinava e que deu o nome à série: a “madrinha de guerra”.

Personagem algo dúbia, patrocinada ao longo da guerra em África pelo Movimento Nacional Feminino com o objectivo de mitigar o isolamento das tropas através de uma activa troca de correspondência entre os soldados e as raparigas casadoiras na metrópole, a madrinha de guerra transforma-se aqui numa presença real, na materialização de um sonho, aterrando num palco de guerra vinda não se sabe de onde. É nesse mesmo palco que decorrem as cenas diversas, de uma série paralela que também aqui se apresenta pela primeira vez. Nas imagens de “flagelação”, o mesmo soldado que povoa as histórias anteriores procura agora proteger-se de uma agressão iminente, real ou imaginária.

Já lá vão quase 3 anos de trabalho e sinto que ainda não esgotei este filão. Ao longo desse tempo li livros, vasculhei depoimentos sobre a “nossa” guerra, essa guerra de miséria e “pé descalço” tão próxima do Portugal rural da minha infância, mas em nenhum caso pretendi ilustrar factos reais, específicos. Por isso, as imagens muitas vezes escaparam-se à ideia que lhes esteve na origem e tomaram direcções imprevistas. Desligadas de uma leitura fixa e imutável, basta trocá-las de lugar para num instante tudo ser diferente… E a guerra de há 40 anos pode tornar-se na guerra de hoje.”

Tive o privilégio de fazermos amizade e de ele me ir mostrando as diferentes facetas do seu trabalho (fotografia, instalação, pintura, etc.). Nunca imaginei que um artista forjasse, quatro décadas depois, espaços, ambientes, situações em que a envolvente guerra tudo dominasse. Comoveu-me ver o meu Unimog 404, destruído por uma mina anti-carro em Canturé (Cuor), em 16 de Outubro de 1969, a ser objecto de uma aguarela que viria a ser exposta num dos eventos artísticos mais importantes da Europa, a ARCO, de Madrid. Ele tinha visto uma fotografia em que o Humberto Reis se mostrava ao lado da viatura imprestável, como se estivesse a interrogar a essência do sinistro. Eu tinha já outra fotografia do António Silva Queiroz, nosso apontador de morteiro 81, que se fizera fotografar também a olhar todo aquele ferro desconjuntado onde morreu o nosso condutor Manuel Guerreiro Jorge, que pertencia à CCS/BCAÇ 2852. O meu guarda-costas, Cherno Suane, seguia no guincho, foi parar a 20 metros, aterrou num baga-baga, teve sorte, quis o destino que o sinistro se saldasse num duplo traumatismo craniano.
Sinto um grande orgulho neste artista que está permanentemente atento ao que depomos, que ele transfigura em arte. É caso para dizer: demorou décadas a compreender o que vivemos, o produto artístico vai testemunhar-nos até à eternidade.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JC Abreu dos Santos disse...

... que, já agora, e como neste weblog [afectado pela silly season (ou reason, já nem sei), e no qual, à falta de "conteúdos" (como em certos telejornais), parece que ainda] vale tudo – incluso tirar olhos –, talvez não fosse má ideia o camarada Mário António meter a obra-prima no pópó e ir passeá-la até à aldeia dos Alveães, depositava uma flor na campa e depois ia ofertar "aquilo" à viúva Senhora Dona Aldina e demais familiares... O qu'é c'o menino acha?! Pode até levar uma "reportage da tv", sempre obteria mais uns cinco minutinhos de fama! Ou então, melhor ainda: arranje um berloque só para si – tipo "recensões & assim" – ; e dele se goze todos os dias...