sexta-feira, 30 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)









Conheci Carlos Domingos Gomes (nickname, Cadogo, Cadogo Pai ou Cadogo Velho), há mais de dois anos, em Bissau, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008).

Estava ainda no poder o ‘Nino’ Veira. Era presidente do PAIGC Carlos Gomes Júnior (também conhecido na sua terra como Cadogo Júnior, ou apenas Cadogo), e que chegou a ser considerado como delfim do próprio ‘Nino’ Vieira até ao conflito de 1998.

Dez meses depois do Simpósio, o filho de Carlos Domingos Gomes, no final desse ano, seria indigitado para o cargo de Primeiro-Ministro, lugar que ainda hoje ocupa.

Carlos Gomes Júnior nasceu em Bolama em 1949. É filho de Carlos Domingos Gomes e de Maria Augusta. Sabemos que, antes de entrar na política, e chegar a dirigente máximo do PAIGC, o actual primeiro ministro foi um empresário e gestor de sucesso. Não participou na luta armada como combatente.

O Cadogo Pai, em contrapartida, reclama-se da condição de Combatente da Liberdade da Pátria, sem todavia nunca ter pertencido ao PAIGC, e muito menos combatido na guerrilha. Considera-se um nacionalista, embora tenha colaborado com o poder colonial, como autarca, o que lhe trouxe alguns alguns amargos de boca nos primeiros tempos, após a independência. Era amigo de Aristides Pereira. Em contrapartida, teve problemas com Luís Cabral que “tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a Independência” (1ª Parte, p. 2).

Hoje dou início à publicação da história de vida de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, a partir de um texto autobiográfico, policopiado, de que ele me ofereceu uma cópia em Bissau. Conheci-o por acaso, na sala de conferências do hotel onde estava a realizar-se o Simpósio. Na mesma altura conheci o Joseph Turpin (*), sobrinho do Élisee Turpin, esse sim um histórico do PAIGC (**).

Prometi, ao Cadogo Pai, publicar-lhe no nosso blogue as suas memórias, pelo menos alguns excertos ou um versão adaptada. Cumpro essa promessa ao fim de dois anos... Em Bissau, ele ofereceu-me um exemplar autografado. Deu-me inclusive o seu número de telefone de Bissau, onde reside. Daqui vão, para ele, os meus votos de boa saúde e longa vida.

O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

O texto está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.

Cada uma das partes está estruturada por parágrafos, numerados de 1 a 23 (1ª Parte, pp. 1-9) e de 1 38 (2ª Parte, pp. 1-17). O autor assina o documento, no final como “Administrador” e como “Membro do Conselho de Estado” (sic). Não parece haver uma clara separação temática ou uma sequência lógica e cronológica entre as duas partes.

Devo acrescentar que ele não fazia parte dos oradores do Simpósio Internacional de Guiledje. Estava lá, ao que julgo, apenas como participante ou convidado.

Este evento terá sido um bom pretexto para o autor escrever, eventualmente retocar e sobretudo divulgar as suas memórias, quer como cidadão quer como empresário, balizadas entre os anos de 1946 e 1974:

“1. O evento [, o Simpósio,] galvaniza todo o meu pensamento, para tentar arrumar elementos da minha vida política, participativa, na luta pelo desmantelamento do sistema colonial em África” (Parte I, p. 1).

Em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”. Ganhava 120 escudos de salário mensal. Essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

Achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano (proprietária do edifício onde está hoje a Pensão Berta), com várias lojas pela Guiné (Bissau, Bolama, Bissorã…).

Estamos em Agosto de 1946. A escrituração das receitas da loja era feita em francês, língua que ele não dominava, mas iria contar com a ajuda (inesperada) do empregado que fora substituir, nada menos que o José Costa, colega de escola, entretanto transferido para Bissorã. Ele próprio, Cadogo,  será transferido, meses depois, a 24 de Dezembro de 1946, para Bolama. Em Bissau ganhava 250 escudos. Em Bolama, passou a ganhar 300, “quantia exígua para tomar conta da minha vida” (1ª Parte, p. 3).

Fica em Bolama três anos. Em 26 de Dezembro de 1949 é convidado “para vir ocupar o posto de chefia da loja nº 2 em Bissau”, enquanto o José Costa, regressado de Bissorã, chefia a loja nº 1. Tinha 20 anos, “ainda era menor”, só fazendo os 21 em Maio de 1950. É em Bolama que nasce o seu filho, hoje 1º ministro, em 19 de Dezembro de 1949 (conforme consta da biografia oficiosa de Carlos Gomes, no sítio do PAIGC).

Volta a Bolama, em Março de 1951, como chefe operacional da mesma empresa, a Sociedade Comercial Oeste Africana (onde trabalhou como contabilista, de 1942 a 1956, Elisée Turpin, um dos fundadores do PAIGC).

“Foi em Bolama que conheci o camarada Aristides Pereira, muito reservado. Fizemo-nos amigos. Em quase todas as tardes , entre um greupo de amigos, encon trávamo-nos na marginal” (1ª Parte, p. 4). Além de Artistides Pereira, são citados os nomes de Alcebíades Tolentino, Barcelos de Lima, Adelino Gomes e Afredo Fortes. Falava-se de tudo, “mas sobre a política africana nada”

A seguir, o autor conta-nos como foi “parar à política”, isto é, como se tornou um nacionalista, próximo do PAIGC…

“Com a posição do importante posto de emprego, encarregado da operação da SCOA, casa comercial importante na concorrência, fui empurrado muito novo para a política e manutenção [sic]de uma personalidade rija em luta com os encarregados da Gouveia, Ultramarina, Pinto Grande, Ernesto Gonçalves de Carvalho, etc., Europeus. Cabo Verdiano era o falecido Carolino Barbosa” (1ª Parte, p. 4). O “nacionalismo” de Cadogo Pai remontaria a esta época (reconhecido pelo próprio Aristides Pereira, no seu livro, a p. 79).

Terá sido através do Elisée Turpin, seu colega em Bissau, que lhe chegavam a Bolama as notícias das primeiras “movimentações”, de “cariz político”, que surgiam em Bissau. “Pode fazer-se ideia de como foi fácil a minha mobilização em confrontação com as empresas europeias que tentavam espezinhar-me e discriminar-me no importantre posto do meu emprego”. Ou seja, europeus [, leia-se: portugueses,] e caboverdianos  possivelmente não viam com bons olhos que um filho da Guiné fosse encarregado numa empresa francesa…

(Continua)

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Cadogo Pai foi um "histórico militante" do PAIGC ? Não é claro para mim, ao ler as suas memórias...

Vejamos o depoimento do Elisée Turpin, esse, sim, fez parte do "núcleo fundador" do PAI (antecedente do PAIGC).

"... O espírito de revolta contra a presença colonial aumentou consideravelmente, a partir de 1942, altura em que o Governador da Província da Guiné era o Sr. Ricardo Vaz Monteiro, e o Administrador de Bissau era Pereira Cardoso.

"O Governador Ricardo Vaz Monteiro, fortemente influenciado pela esposa Maria Augusta, quis introduzir o sistema de Apartheid na Província, ao tentar impor que nos estabelecimentos comerciais fossem criadas zonas separadas para brancos e pretos. A tentativa gorou, pois foi contestada pelos proprietários dos estabelecimentos comerciais.

"Na sequência dessa tentativa, foi preso o maior comerciante guineense na altura, Sr. Benjamim Correia, alegadamente por se ter queixado junto do Governo Central de Lisboa sobre o ocorrido. Ele foi preso e transportado para Cabo Verde - Tarrafal.

"O mesmo Governador introduziu um código de postura em que era proibido andar nos passeios de Bissau a todo o indígena que não tivesse sapatos nos pés.

"Estes factos e mais outros que ocorreram durante os anos 50, reforçaram o espírito nacionalista e patriótico em muitos guineenses. Foi nesse período dos anos 50 que o Amilcar Cabral regressou à Guiné e começou a fazer contactos com vista à criação duma Associação Desportiva, através da qual levávamos a cabo actividades políticas.

"Alguns de nós eram militantes clandestinos do Partido Comunista Português, nomeadamente, Abílio Duarte e eu (mais tarde soube que o Rafael Barbosa o era também). Os activistas políticos não se conheciam todos, por motivos ligados à segurança.

"Amilcar Cabral nos dizia que devíamos trabalhar como uma pirâmide. Isto é, o núcleo principal e de contactos permanentes seria pequeno, mas cada um devia ter a sua célula. Eu, por exemplo, tendo como célula a Zona Velha da Cidade de Bissau (pois morava nessa zona), nunca tive contacto com Rafael Barbosa. Só mais tarde vim a saber dele, como sendo um dos principais activistas políticos desde anos 40 e um dos mentores da criação do Partido.

"Para além das células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja, elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva.

"Lembro-me de algumas pessoas que se movimentavam na altura como activistas políticos e muitos deles envolvidos na criação do Partido: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa, Luís Cabral, Abílio Duarte, Fernando Fortes, João Rosa, Inácio Semedo, Victor Robalo, Júlio Almeida, João Vaz, Domingos Cristovão Gomes Lopes.

"Contudo, no dia 19 de Setembro de 1956, na fundação (criação formal do Partido, denominado PAI - Partido Africano da Independência), compareceram apenas 6 pessoas: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin" (...)

Antº Rosinha disse...

Luis graça, deve ser interssantíssimo publicar na integra as memórias do Cadogo pai, que provavelmente vai permitir, simultaneamente ficarmos com uma ideia sobre Cadogo filho, 1º ministro e talvez o maior empresário guineense pós independência.

Se o pai não seria histórico do PAIGC?

Podia não ser, mas Luis, nos anos 50 todos os guineenses letrados, chamemos-lhe assim, (não indígenas), tipo Luis Cabral da casa Gouveia, dos correios tipo Aristides, ou o Cadogo, de uma casa comercial, todos eram nacionalistas.

Tanto do PAIGC em Bissau, como do MPLA e outros de Angola, todos eram nacionalistas.

Antes de Março de 1961, não se preocupavam muito em esconder o que pensavam e até o manifestavam entre amigos e colegas metropolitanos.

O que confundia muitos, era essa ligação política ao comunismo, e, veio a ver-se depois de Março/61, as ligações aos americanos através das missões evangelistas em Angola.

Daí haver milhares que, sendo nacionalistas, nunca aderirem aos movimentos.

Daí, tambem se contarem pelos dedos os pouquíssimos dirigentes (letrados) do MPLA e do PAIGC.

É que quando lemos tudo o que há escrito sobre os movimentos, principalmente do PAIGC, que secou os outros em volta, são sempre um pequeno grupo.

No entanto todos eram nacionalistas, desde os que foram cabos e furrieis e Alferes do nosso exercito lado a lado connosco, como os que foram colegas de trabalho.

O Cadogo, incompreensivelmente aos olhos de um tuga, tinha sucesso como empresário, em plena implantação do comunismo mais ortodoxo em Bissau de Luis Cabral.

Cumprimentos.