sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)


O filho mais velho do Cherno Baldé,  de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"


Foto (e legenda):  © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados.



1. Texto, que vamos dividir em duas partes, da autoria do nosso querido amigo  Cherno Baldé (*), e que veio acompanhado da seguinte mensagem, com data de ontem:


Estimado amigo e irmão Luis Graça,



Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena familia, melhor, do seu desajeitadio chefe, no inicio da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do periodo que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este periodo se houver interesse.

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei na construção do novo Estádio de Alvalade Sec. XXI (2001/02), como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a (cunha) ajuda de uma familia Portuguesa com a qual mantiamos excelentes relações de amizade e estima. Os encarregados topavam logo com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Ai reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor.


Apreciem o texto e vejam se tem interesse para divulgação.


Peço desculpa se alguma vez disse o que não devia nos meus comentários e diga ao meu amigo Torcato para guardar a sua G3 porque eu sou, simplesmente, um pequeno rafeiro amigo da malta do quartel.


Com os melhores cumprimentos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS: A foto  [, acima,] mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU/
(CONFLITO POLITICO MILITAR DE JUNHO DE 1998)

(Domingo) - Dia 7 de Junho de 1998– o rebentar do conflito


Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas acompanhadas de rajadas de metralhadoras. Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos a mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
- É um golpe de estado, de certeza! - disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em S. Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e no início da tarde houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado seguido de um compasso de espera. As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.

2º dia > Segunda feira, dia 8 de Junho

A partir do segundo dia (8 de Junho) começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack, (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Ca), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham.-se amotinado contra o regime. As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. Oh,  pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho, convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.

3º dia > Terça-feira, 9 de Junho
  
No terceiro dia (9 de Junho), o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba,  no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha,,  fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. Foi ai que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo,  desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.

4º dia > Quarta-feira, 10 de Junho

Na manhã do quarto dia de conflito (10 de Junho), sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “manel iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar física e verbalmente. Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o status-quo. Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: Matem o macaco preto!. As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas,  doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.

“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível.

No momento, também, estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. à minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela a frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!”1.

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

 Julgo que caminhámos três km, ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
- Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
- Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame. 

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ? 
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.
                                          
É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
- Já cheguei! - diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio - pensei comigo.
- Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho! - repetiu ela.
 Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
 - Kuma kí´ú nomi ?
- Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

 Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. Em casa da Djenaba, reinava uma calma aparente pois,  estando o marido fora,  ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
- Não! - disse-me prontamente . Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.

5º dia > Quinta-feira, 11 de Junho

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão Ad-Hoc de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do norte e do sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.   

  (Continua)

Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanco ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.

________________

Notas de L. G. :


(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente Nino Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as
forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de Julho, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de Agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua.  No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de Maio de 1999. um novo cessar-fogo em 7 de maio de 1999, Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos de exílio em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.

5 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Cherno Baldé:

Estive a ver na TV a Cesária Évora e fiquei pregado ás imagens, ás músicas e senti-me transportado para um Continente, um ou uns Países e gentes que muito me dizem.
Posso ter reagido a quente, se bem me lembro á questão da cultura e "crendices" Guineenses ou á permanência de estudantes do império cá e outros que foram para Leste. Para mim passou e não uso G3, isso não.Vi o teu escrito, comecei a ler e parei antes da história. Ainda não li,depois.
Ontem jantei com um amigo mais velho que eu, andarilho deste mundo e sua quarta mulher, mais nova, muito mais nova do que eu e natural dos Camarões. África foi falada e muito. Vivem em França mas vai com frequência a África e vive o seu País e família. É linda. Ele correu e corre mundo - mais calmamente agora- e eu...senti a saudade de tudo aquilo,a falta, a preocupação por certos acontecimentos. África está demasiado colada a mim. Tinha pensado para comigo e disse a eles ontem-falamos em francês e inglês nalgum lapso meu- não mais comentar aqui e dificilmente escreveria mais (vimos muito por alto o blog).Voltei a pensar nisso hoje, tanto assim que apaguei várias "entradas".
Não esqueço os Amigos e por isso escrevo estas palavras. Não fales em G3. Ainda por cima com uma criança a encimar a escrita.Uma criança que é teu filho. Eu gosto, sempre gostei de crianças. Deve ter aparecido aqui no blogue em escrita e fotos. Não te passe pela cabeça que estou aborrecido contigo. Se estivesse dizia logo e nada mais te diria.Ficavas transparente. Mas não e não sou de palavras vãs. Agora aqui- no blogue- há uma saturação minha. Erro meu...
Agora e só agora vou ler a tua história.Eu gosto das gentes das Tabancas. Paro então.
Se te tratei por tu é por questão afectuosa. Creio ser a primeira vez.
Um abraço fraterno para ti e o melhor para tua familia.
Torcato

Luís Graça disse...

Os portugueses, felizmente, não sabem o que é uma guerra civil desde os anos de 1830 (lutas entre liberais e absolutistas, 1828-1834) nem o que é a invasão do solo pátrio por tropas estrangeiras desde as invasões napoleónicas (1807-1810)...

Podemos, no entanto, pôr-nos na pele dos nossos amigos guineenses, o Cherno e família, o Pepito e família, o Patrício Ribeiro e outros, que estavam lá, em 7 de Junho de 1998 quando a Junta Militar de Ansumane Mané tentou derrubar 'Nino' Vieira (o que viria a acontecer quase um ano depois, em Maio de 1999, ap
os um conflito sangrento, que incendiou todo o país e que levou muitos guineenses aO exílio: caso do Pepito e da Isabel,, por exemplo, que foram viver para Cabo Verde).

É um período da história recente da Guiné-Bissau mal conhecido dos antigos combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial... Nessa altura (1998/99) andávamos distraídos com outras coisas e, se calhar, tínhamos pouca pachorra para sequer ouvir e entender os eternos problemas dos pobres guineenses... Além disso, Lisboa estava em festa, com a Expo 98, que decorreria entre Maio e Setembro de 1998...

O Cherno dá a verdadeira dimensão, humana, ao conflito político-militar que levaria à queda de um regime, à invasão do país de tropas estrangeiras (Senegal e Guiné-Conacri), à desertificação e pilhagem de Bissau, ao agravamento, ainda mais brutal, das condições de vida dos guineenses...

No caso do Cherno, era preciso pôr a família a salvo, numa viagem de mais de uma semana, de sobressaltos, de Bissau a Fajonquito, passando por Nhacra, Mansoa, Bambadinca e Bafatá... Tinha o seu filho mais velho três anos...

Obrigado, Cherno, é mais um depoimento comovente mas ao mesmo atravessado por surpreendentes reflexões filosóficas sobre a condição humana... Espero publicar a II Parte mais logo...

Hélder Valério disse...

Caro Cherno

Já pensaste em desenvolver a tua escrita?

É que os relatos das tuas memórias são de facto bem interessantes, belos nacos de prosa que além de nos ajudarem a compreender o tempo que vivemos através dos olhos e sentimentos duma criança, também acabam por ser uma boa fonte de informações sobre como as coisas evoluiram.

Hoje, no entanto, não nos contas memórias do tempo longe, do 'nosso tempo', mas sim duma outra época e de outros acontecimentos, a que já se iam habituando, como referes, e que para nós é pouco conhecida, pelo menos pelos pontos de vista que relatas, afinal o comum aos elementos da população...

Acontece é que, em paralelo, desenvolves uma criatividade narrativa em que a descrição da tua caminhada guiada pela imagem da bajuda é de uma frescura ímpar. Tenho a certeza que todos quantos a leram o fizeram com um sorriso nos lábios e se calhar a pensar baixinho: "sim senhor, saiu-me melhor que a encomenda, este Cherno!", "com que então, na hora da fuga, fica alheio ao perigo envolvente e só tem olhos para um certo movimento ondulante...".

É por esse motivo que te incentivo a passar a escrito não só as tuas memórias mas também a que dês largas à tua criatividade e produzas mais literatura, com sabor africano, tendo em conta todas as tuas experiências em tantos e variados locais e circunstâncias.

Uma última e pequena observação: não precisas de pedir qualquer desculpa pelos teus pontos de vista, que são os teus, pois os amigos devem saber conviver com opiniões diferentes e, no caso concreto do Trocato, embora não tenha qualquer procuração dele, não vejo nenhuma animosidade.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Olá amigo Cherno Baldé, saudações guinéuas.

Fazes muito bem indo visitar as tuas origens e acompanhado dos familiares.

É com com muito apreço que faço a leitura da tua crónica, sobre acontecimentos da Guiné oa quais presenciaste e contas os factos na 1ª pessoa não se alterando assim a sua veracidade.

Quanto a algum comentário menos a-prepósito, não há que dar relevância porque sem apercebermo-nos já estamos a ficar usados e a data do BI vai ficando mais distante.

Todos sabemos que muitos de nós reagimos por dá aquela palha, quando o assunto não vai no sentido aparente da n/concordância e estala o verniz sem arrepiar caminho.

No fim a amizade e o respeito é que perduram.

Um abraço de um mouro algarvio
Arménio Estorninho

Anónimo disse...

Olá caro Cherno Baldé
Fico contente muito sinceramente,com as tuas histórias sobre a Guiné e mais uma vez é caso para dizer que o mundo é pequeno e o nosso blogue é grande pois acabo de constatar que a foto de SAFIM é de autoria de um colega de companhia (cart 3521)que esteve sediada em Safim.
Manda sempre mais histórias que a gente da tabanca grande gosta de as ler.
Um abração.
Castro da CART 3521.